Análise do caso da “repercussão geral” vai fixar a interpretação jurídica dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras. Sessão do Supremo está prevista para às 14h.
A reportagem é publicada por Instituto Socioambiental – ISA, 29-06-2021.
O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia, nesta quarta (30/6), o julgamento que pode definir o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs) no Brasil.
A Corte vai analisar a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à uma área da TI Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Em 2019, o STF deu status de “repercussão geral” ao processo, o que significa que a decisão servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.
Foto: Pepyaká Krikati | Cimi
Os ministros também vão analisar a determinação do ministro Edson Fachin, de maio do ano passado, de suspender os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU). A norma oficializou o chamado “marco temporal”, entre outros pontos, e vem sendo usada pelo governo para paralisar e tentar reverter as demarcações. Na mesma decisão do ano passado, Fachin suspendeu, até o final da pandemia da Covid-19, todos os processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de procedimentos demarcatórios. Essa determinação também deverá ser apreciada pelo tribunal.
O “marco temporal” é uma interpretação defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das TIs que restringe os direitos constitucionais dos povos indígenas. De acordo com ela, essas populações só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, se não estivessem no território, precisariam estar em disputa judicial ou em conflito material comprovado pela área na mesma data.
A tese é injusta porque desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.
O julgamento estava marcado anteriormente para 11 de junho, mas foi suspenso por um pedido de “destaque” do ministro Alexandre de Moraes, um minuto após começar. Os demais ministros sequer chegaram a depositar seus votos. Apesar disso, o voto do relator, ministro Edson Fachin, foi divulgado.
A análise do caso será transmitido pela TV Justiça, com apresentação dos votos e possibilidade de debate. Não há garantia que ela seja concluída nessa data ou mesmo na sessão extraordinária já marcada para o dia seguinte porque os ministros podem pedir para avaliar o processo melhor, com um pedido de “vistas”, suspendendo-o e transferindo-o para uma data incerta.
Demora na demarcação
“A demora na demarcação das terras indígenas é muito preocupante. Porque, a cada tempo que se passa, se encontram grandes dificuldades para a demarcação de terra no Brasil. Os povos indígenas precisam ter reconhecidos seus direitos tradicionais”, diz Brasílio Priprá, uma das principais lideranças Xokleng. “E nós gostaríamos que fosse julgada a repercussão geral, que fosse a favor, que não se falasse mais em marco temporal”, complementa.
A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, 236 km a noroeste de Florianópolis (SC). A área tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrasta por todo o século XX, no qual foi reduzida drasticamente. Foi identificada por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, como pertencente ao povo Xokleng, em 2003. Os indígenas nunca pararam de reivindicar o direito ao seu território ancestral.
“A gente espera que o Supremo possa adotar uma interpretação mais justa, razoável, e que possa ajudar a efetivar direitos. E não mais utilizar, por exemplo, a tese do marco temporal, para limitar o reconhecimento de direitos a nós, povos indígenas”, afirma Samara Pataxó, advogada da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “[O julgamento] também pode fortalecer a nossa luta nesse enfrentamento com os outros poderes, que utilizam do marco temporal como um critério para restringir direitos”, complementa.
“A forma como o povo perdeu o território foi a forma mais violenta, mais vil, mais terrível”, explica Rafael Modesto, advogado da comunidade Xokleng e também assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “Houve, no início do século passado, a demarcação sem critérios técnicos. Perdeu-se, na década de 20, parte significativa do território. Em 1950, a mesma coisa. Depois, a construção de uma barragem levou as melhores terras. E nesse contexto se dá a disputa do povo Xokleng, para que de fato seja garantida a devolução dessas áreas roubadas”, informa.
Modesto conta que era comum que fazendeiros interessados no território Xokleng contratassem jagunços especializados, chamados de “bugreiros” na época, para caçar e matar os indígenas. O trabalho era comprovado pela entrega das orelhas cortadas das vítimas.
Tudo o que você precisa saber sobre o caso de repercussão geral no STF
Do que trata o RE 1.017.365?
O Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, que tramita no STF, é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da TI Ibirama-Laklanõ. O território em disputa foi reduzido ao longo do século XX e os indígenas nunca deixaram de reivindicá-lo. A área já foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional.
Por que esse julgamento é central para o futuro dos povos indígenas no Brasil?
Em decisão do dia 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a “repercussão geral” do julgamento do RE 1.017.365. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do Judiciário.
Há muitos casos de demarcação de terras e disputas possessórias sobre TIs que se encontram, atualmente, judicializados. Também há muitas medidas legislativas que visam retirar ou relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ao admitir a repercussão geral, o STF reconhece, também, que há necessidade de uma definição sobre o tema.
Quando e como ocorrerá o julgamento?
O julgamento está pautado para o dia 30/6. Ele ocorrerá virtualmente, com apresentação oral dos votos, possibilidade de debate e transmissão pela TV Justiça. Não há garantia de que o julgamento seja concluído na data prevista. Há outros itens na pauta do STF. Além disso, antes dele ser iniciado, o presidente da corte ou o relator pode retirar o processo de pauta. Outra possibilidade é o pedido de vista, que pode ser feito por qualquer ministro. Aquele que fizer a solicitação deverá devolver os autos para prosseguimento da votação, no prazo de 30 dias (prorrogável por mais 30 dias), contado da data da publicação da ata de julgamento. Ocorre que nem sempre o prazo é respeitado e alguns processos ficam parados por anos. Os prazos também serão suspensos durante o recesso do STF.
O que está em jogo?
No limite, o que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra. Há, em síntese, duas teses principais que se encontram atualmente em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, uma tradição legislativa que vem do período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito “originário” – ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição ao garantir aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
Do outro lado, há uma proposta restritiva, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado “marco temporal”.
Há ainda a possibilidade de reavaliação das chamadas “salvaguardas institucionais”, conhecidas como “condicionantes”, fixadas, em 2009, no julgamento do caso da TI Raposa Serra do Sol (RR) e que igualmente restringem a posse e o usufruto exclusivos dos povos indígenas sobre suas terras.
O que é marco temporal?
O marco temporal é uma tese jurídica que busca restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas. Nessa interpretação, defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988. Alternativamente, se não estivessem na terra, teriam que comprovar a existência de disputa judicial ou conflito material na mesma data de 5 de outubro de 1988.
A tese é perversa porque legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. Por tudo isso, os povos indígenas vêm dizendo, em manifestações e mobilizações: “Nossa história não começa em 1988!”.
Os povos indígenas participarão do julgamento?
O relator do caso, ministro Edson Fachin, defendeu a ampla participação de todos os setores interessados no tema, dada a importância da matéria. Tal participação se dará a partir da figura do amicus curiae – termo em latim que significa “amigo da corte” e que permite que pessoas, entidades ou órgãos com interesse e conhecimento sobre o tema contribuam num processo, subsidiando o tribunal com informações. Mais de 50 amici curiae foram admitidos e estão habilitados a contribuir no caso, entre eles, muitas comunidades e organizações indígenas. Além disso, a própria comunidade Xokleng também é parte no processo, tendo em vista que é diretamente afetada por ele.
Que consequências esse julgamento pode ter para os povos indígenas?
Caso o STF reafirme o caráter originário dos direitos indígenas e, portanto, rejeite definitivamente a tese do marco temporal, centenas de conflitos em todo o país terão o caminho aberto para sua solução, assim como dezenas de processos judiciais poderão ser imediatamente resolvidos.
As TIs que estão estagnadas em alguma etapa do processo de demarcação já não teriam, em tese, nenhum impedimento para que seus processos administrativos fossem concluídos.
Por outro lado, caso o STF opte pela tese anti-indígena do marco temporal, acabará por legalizar as usurpações e violações ocorridas no passado contra os povos originários. Nesse caso, pode-se prever uma enxurrada de outras decisões anulando demarcações, com o consequente surgimento de conflitos em regiões pacificadas e o acirramento dos conflitos em áreas já deflagradas.
Esta decisão poderia incentivar, ainda, um novo processo de invasão e esbulho de terras demarcadas – situação que já está em curso em várias regiões do país, especialmente na Amazônia.
Além disso, há referências de povos indígenas isolados ainda não confirmadas pelo Estado, ou seja, ainda em estudo – um procedimento demorado, em função da política de não contato. Se o marco temporal de 1988 for aprovado, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, abrindo a possibilidade do extermínio desses povos.
Há outros casos, como o do povo Kawahiva, em que a comprovação da existência desse povo isolado se deu, para o Estado brasileiro, em 1999, ou seja, muito depois de 1988. Como vai ficar a situação desses povos? Ademais, não é possível contatá-los para saber se já estavam lá em 1988.
O julgamento pode afetar os povos indígenas isolados?
Os povos indígenas isolados também podem ser impactados pela tese do “marco temporal”. Isso porque, em muitos casos, seria difícil ou até impossível comprovar a presença desses grupos em 5 de outubro de 1988 nas terras onde hoje habitam, o que inviabilizaria a demarcação de seus territórios. O Estado brasileiro até hoje desconhece a existência dessas comunidades.
Não é razoável exigir que, numa data específica, esses povos estivessem reivindicando formalmente o reconhecimento e regularização de seus territórios. Por outro lado, a comprovação de que se encontravam em situação de conflito deflagrado tampouco é tarefa fácil em vista da perseguição e ocultação de sinais da sua presença por invasores e da omissão do Estado em protegê-los.
Foram vítimas notórias desses problemas os Canoê, Akunt’su e o “Índio do Buraco” (RO); os Piripkura Kawahiva e Kawahiva do Rio Pardo (MT), por exemplo. No último caso, a Funai só recebeu informações sobre a presença de povos indígenas isolados no final dos anos 90. A interdição da área foi feita em 2001 e o processo de demarcação se estendeu até a declaração da área como Terra Indígena em 2016.
Dos 115 registros da presença de indígenas isolados no Brasil, 86 ainda não foram confirmados – ou seja, caso sua existência venha a ser confirmada, ainda não se sabe ao certo qual é o território tradicionalmente ocupado por esses grupos.
Destes 86 registros não confirmados, 35 se encontram fora de terras indígenas reconhecidas, em alguns casos em áreas pressionadas pela realização de atividades ilícitas, por empreendimentos de infraestrutura, pela expansão do agronegócio e pelo proselitismo religioso. Essas pressões também incidem sobre terras indígenas reconhecidas. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), há 115 registros da presença de indígenas em isolamento no país, apenas 29 deles confirmados, outros 26 registros estão em estudo e 60 são informações coletadas pela Funai.
Um levantamento do ISA identificou 56 obras de infraestrutura em operação impactando 28 TIs, 13 Unidades de Conservação (UC) federais, 4 UCs estaduais e 5 áreas sem proteção, onde estão localizados 67 registros de povos indígenas isolados – 9 confirmados, 15 em estudo e 44 informações ainda não confirmadas.
A ideia usada por ruralistas para defender restrições às demarcações de que há “muita terra para poucos índios no Brasil” faz sentido? As terras indígenas tomam terra disponível da agropecuária brasileira?
Considerando o conjunto de serviços ecossistêmicos providos pelas TIs, elas são fundamentais para a manutenção da agropecuária brasileira.
Além disso, não é verdade que há “muita terra para pouco índio” no Brasil, isto é, não se pode afirmar que as demarcações comprometem o estoque de terras disponíveis para a produção rural.
Considerando os processos de demarcação já abertos na Funai, quase 14% do território brasileiro hoje está contido em TIs, mas mais de 98% da extensão total dessas áreas está na Amazônia Legal, grande parte em regiões remotas e sem vocação agrícola ou pecuária. Fora da Amazônia, onde está a maior parte do PIB agropecuário, as TIs ocupam algo como 0,6% do território. Em contrapartida, segundo o IBGE (2017), 41% de todo o território brasileiro é ocupado por estabelecimentos rurais privados.
Além disso, há uma enorme discrepância na distribuição da população das TIs. Das 517,3 mil pessoas que moravam nessas áreas protegidas conforme o Censo IBGE de 2010 (último dado oficial disponível), 62% estavam na Amazônia Legal, enquanto os outros 38% espremiam-se nos 2% restantes da extensão total das TIs localizados fora dessa região, o equivalente a menos de 21 mil km2, ainda considerando os processos de demarcação já abertos na Funai.
Em alguns dos estados mais importantes para o agronegócio, a extensão de terra ocupada pelas TIs é insignificante em relação ao território total, a exemplo de São Paulo (0,3%), Minas Gerais (0,2%) e Goiás (0,1%), igualmente levando em conta os procedimentos demarcatórios já abertos na Funai. Onde os conflitos de terra são mais intensos, a extensão total das TIs também não alcança 1% do território, como na Bahia (0,5%), Santa Catarina (0,8%), Rio Grande do Sul (0,4%) e Paraná (0,6%). No Mato Grosso do Sul, o percentual é de 2,4%.
Enquanto isso, o Brasil é um dos campeões mundiais de concentração de terras. Pouco mais de 1% do número total dos estabelecimentos rurais (51,2 mil estabelecimentos) detém 47% da área total dos estabelecimentos rurais ou quase 20% do território nacional, o equivalente a 1,6 milhão de km2.
Fontes: IBGE e ISA.
Qual a im portância ambiental e climática das Terras Indígenas?
Além de serem indispensáveis à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, as TIs têm papel fundamental na conservação ambiental. As grandes extensões de vegetação nativa conservadas nas Terras Indígenas são responsáveis pela manutenção de serviços ecossistêmicos essenciais, como a regulação climática e do regime de chuvas, a manutenção dos mananciais de água, a estabilidade e fertilidade do solo, controle de pragas e doenças, entre outros. Todas essas funções são benéficas não apenas à agricultura e à pecuária, mas também à manutenção da indústria e das cidades.
Esses territórios são os mais preservados entre as áreas oficialmente protegidas pela legislação, sendo reconhecidos pelas pesquisas como as principais barreiras contra o desmatamento e o avanço da fronteira agropecuária. Na Amazônia, cerca de 98% de sua extensão total está preservada. Fora da região, em geral as TIs abrigam o pouco de vegetação nativa que restou.
Os territórios indígenas resfriam a superfície e influenciam as circulações atmosférica e oceânica globais, ajudando a baixar a temperatura do planeta. Por exemplo, a substituição das florestas para o cultivo de pastagens ou culturas agrícolas resulta em um aumento de temperatura regional de 6,4 oC e 4,2°C, respectivamente. Como consequência, ocorre uma variação no ciclo hídrico regional, que coloca em risco a qualidade de vida, a agricultura e a pecuária.
As diferenças entre áreas dentro e fora do Território Indígena do Xingu (TIX), no nordeste do Mato Grosso, por exemplo, podem chegar a um intervalo entre 4 oC e 8 oC, conforme estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Fora da TI, é mais quente por causa do desmatamento.
Cerca de 5,2 bilhões de toneladas de água são transpiradas diariamente pelas árvores existentes nas TIs da Amazônia. Para comparação, o volume despejado no Oceano Atlântico pelo Rio Amazonas é de pouco mais de 17 bilhões de toneladas por dia. O volume de água fornecido pelas florestas das TIs amazônicas daria para encher diariamente quase 80 vezes todas as caixas d’água do Brasil.
Na Amazônia brasileira, as comunidades indígenas protegem e manejam áreas que armazenam 27% dos estoques de carbono da região, o que representa aproximadamente 13 bilhões de toneladas. Esta quantidade não considera o carbono armazenado no solo, que possui, em média, um estoque entre 40 e 60 toneladas por hectare. Esta retenção do carbono pelas florestas ajuda a conter o acúmulo de CO2 na atmosfera, com efeitos positivos na redução do aquecimento global.
Fontes:
IPAM (2015). Terras Indígenas na Amazônia Brasileira: reservas de carbono e barreiras ao desmatamento.
Nobre, A.D. (2014). O Futuro Climático da Amazônia – Relatório de Avaliação Científica. São José dos Campos, ARA Ed., CCST-INPE – INPA.
Leia mais
- “Marco temporal”: indígenas questionam interesse por trás de mais um adiamento no STF
- Relatoria da ONU enviou carta ao STF alertando sobre perigos do marco temporal, tese base do Parecer Antidemarcação
- STF adia julgamento sobre direitos indígenas, mas mobilização continua
- Julgamento histórico pode definir o futuro das Terras Indígenas do Brasil
- O futuro das terras indígenas nas mãos do STF
- Ideologia da legitimação do esbulho territorial indígena no século XIX
- STF pode decidir demarcações no mês de aniversário da Constituição
- Em defesa dos direitos indígenas e contra a antipolítica que vislumbra o genocídio dos povos. Artigo de Roberto Liebgott
- Prestes a ser julgado, “marco temporal” pode extinguir povos indígenas, diz defensor
- Entenda o que é o “Parecer Antidemarcação” e o que está em jogo no STF
- Por que julgamento no STF sobre parecer da AGU poder ser nova grande derrota de Bolsonaro?
- Pela inconstitucionalidade do Parecer 01/17 e o reconhecimento do direito originário dos povos indígenas às suas terras
A questão da terra no Brasil é o nervo central que produz toda a sorte de desigualdades, seus dispositivos de reprodução e multiplicação. “A história do Brasil é a história da extrema concentração fundiária nas mãos de uma elite colonial escravista que se perpetua até nossos dias. Em meu modo de ver, é a conformação fundiária colonial consolidada juridicamente no império e protegida com unhas e dentes desde então pelos proprietários de terras que está no cerne do inacreditável fosso da desigualdade social no país”, pondera o pesquisador e doutor Leonardo Barros Soares, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Nesta quarta-feira, 30 de junho, o STF vota o Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata das demarcações de terras indígenas e com repercussão geral, em que, caso a ofensiva não seja freada, as consequências tendem a ser, como classifica o entrevistado, catastróficas. “A tese do marco temporal ganhará um fôlego renovado para tentar se impor como a tese majoritária; a vedação da ampliação de terras indígenas já homologadas dará respaldo legal a muitas situações de injustiça histórica; os militares aumentarão a ingerência sobre terras indígenas em áreas de fronteira ou no caminho de projetos desenvolvimentistas; os ecossistemas e as sociedades indígenas sofrerão severos impactos da liberação da exploração econômica desenfreada em terras indígenas”, explica Soares.
Estamos diante, nada mais, nada menos, da decisão mais importante no âmbito da garantia dos direitos dos povos indígenas desde a Constituição Federal de 1988. “O processo demarcatório, hoje, no Brasil, respira por aparelhos. A aprovação do PL 490 seria desligar de vez esses aparelhos. A mensagem para o mundo será clara: ‘O Brasil não vai mais reconhecer novas terras indígenas’”, pontua.
É preciso, inclusive, que a própria esquerda esteja, de fato, comprometida com a causa indígena. “Os povos indígenas e suas organizações são aceitos nas mobilizações políticas desses partidos, mas isso não se reflete na implementação concreta de sua pauta. A derrota dos povos indígenas será a nossa derrota também, podem estar certos disso”, complementa.


Leonardo Barros Soares é psicólogo formado pela Universidade Federal do Ceará – UFC, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Realizou estágio doutoral em 2017 na Université de Montréal junto ao Centre de recherche sur les politiques et le développement social – CPDS. É membro do Réseau d’études latino-américaines de Montréal – Rélam e desenvolve pesquisas na área de democracia participativa, instituições participativas, teoria deliberacionista, política urbana, etnopolítica, política indigenista comparada, povos indígenas americanos, movimentos sociais e associativismo étnico e políticas de reconhecimento territorial indígena.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a questão do acesso à terra se constitui em um dos principais problemas do Brasil e até que ponto ele é a fonte das desigualdades brasileiras?
Leonardo Barros Soares – A questão do acesso à terra é central para o entendimento da constituição do estado brasileiro e suas mazelas. A história do Brasil é a história da extrema concentração fundiária nas mãos de uma elite colonial escravista que se perpetua até nossos dias. Em meu modo de ver, é a conformação fundiária colonial consolidada juridicamente no império e protegida com unhas e dentes desde então pelos proprietários de terras que está no cerne do inacreditável fosso da desigualdade social no país. O livro de Caio Prado Jr, A questão agrária no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2014), mostra muito bem todo esse processo e quem são os atores envolvidos, tanto os beneficiados quanto os prejudicados. Quem tem terra, quer mais. Quem não tem, defronta-se com todo tipo de dificuldade para tê-la. Além disso, Prado Jr demonstra com clareza que não há uma separação entre elite agrária e burguesia industrial. No Brasil, quem tem terra em grande quantidade acumula muito poder e o estende para setores da indústria, comércio, serviços, empresas de mídia, dentre outras. A composição do Senado brasileiro é uma forte evidência que corrobora esse argumento.
Ressalte-se que estamos falando não apenas das terras para pequenos agricultores, mas também da terra urbana – que segue o mesmo padrão concentracionário – e de terras de ocupação tradicional. O interessante nesse último caso é que essas terras – notadamente as terras indígenas – “saem” do mercado de compra e venda de terras e das possibilidades de exploração econômica, algo intolerável para a dinâmica capitalista de acumulação de terras cultiváveis, atualmente em uma fase de agressiva expansão sobre terras na América Latina, África e Leste Asiático.
Note-se que a existência de terras indígenas é uma espécie de paradoxo brasileiro. Num país tão desigual em termos fundiários, não deixa de ser notável que ainda tenhamos conseguido reconhecer quase 13% do território nacional como de ocupação tradicional indígena.
A história do Brasil é a história da extrema concentração fundiária nas mãos de uma elite colonial escravista que se perpetua até nossos dias – Leonardo Barros Soares
IHU On-Line – Qual é o objetivo do PL 490/2007?
Leonardo Barros Soares – O PL 490/2007 é a mais nova “variante” de uma proposta que tramita no Congresso Nacional desde os anos 2000, a Proposta de Emenda Constitucional 215. O projeto apresenta como proposta principal algo aparentemente singelo: a mudança do ciclo da demarcação de terras indígenas, consignando sua aprovação por meio de lei do Congresso Nacional e não por meio de decreto presidencial, como está estabelecido no Decreto 1775/1996. Os apensos ao projeto trouxeram todas as outras questões de interesse dos ruralistas já em tramitação, tais como a questão do marco temporal e da vedação de ampliação de terras indígenas já homologadas. É uma boiada e tanto. Parlamentares anti-indígenas farejaram a oportunidade de terem aliados na presidência da Comissão de Constituição e Justiça e na presidência da Câmara e estão tentando aproveitá-la.
O processo demarcatório, hoje, no Brasil, respira por aparelhos. A aprovação do PL 490 seria desligar de vez esses aparelhos – Leonardo Barros Soares
IHU On-Line – Quais devem ser as consequências para os povos indígenas caso este projeto de lei seja aprovado?
Leonardo Barros Soares – As consequências serão nada menos que catastróficas. A tese do marco temporal ganhará um fôlego renovado para tentar se impor como a tese majoritária; a vedação da ampliação de terras indígenas já homologadas dará respaldo legal a muitas situações de injustiça histórica; os militares aumentarão a ingerência sobre terras indígenas em áreas de fronteira ou no caminho de projetos desenvolvimentistas; os ecossistemas e as sociedades indígenas sofrerão severos impactos da liberação da exploração econômica desenfreada em terras indígenas.
A consequência mais imediata, no entanto, é sobre a demarcação de terras indígenas propriamente dita. Mesmo sendo um processo realizado inteiramente no âmbito do Executivo, o tempo médio de demarcação é de dez anos, podendo, em alguns casos, chegar a vinte ou mesmo trinta anos, algo francamente inaceitável. Imaginem, então, que esses processos devam ser tramitados na forma de lei ordinária, num congresso com mil e uma outras pautas, e nenhum interesse em votá-los. O processo demarcatório, hoje, no Brasil, respira por aparelhos. A aprovação do PL 490 seria desligar de vez esses aparelhos. A mensagem para o mundo será clara: “O Brasil não vai mais reconhecer novas terras indígenas”.
IHU On-Line – O projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ da Câmara na última semana e agora deve ir a plenário. Como deve ser a votação tanto na Câmara quanto no Senado?
Leonardo Barros Soares – É difícil cravar um resultado. A tendência, evidentemente, é que seja aprovada na Câmara, devido à grande coalizão de interesses anti-indígenas na casa e ao alinhamento entre o presidente da Câmara, a presidenta da Comissão de Constituição de Justiça e o governo de Jair Bolsonaro. Já no Senado é um pouco mais difícil, mesmo sendo uma casa com intensa presença de proprietários de terras que, em última instância, se beneficiariam do projeto.
A questão decisiva, a meu ver, é a mobilização que os povos indígenas estão fazendo para barrar o projeto. Recordemos que as organizações indígenas têm conseguido barrar a PEC 215 há 21 anos, mesmo em legislaturas com maior número de parlamentares ruralistas do que a atual, o que não é nada trivial. Além disso, os movimentos indígenas têm se articulado fortemente em nível internacional, o que aumenta a pressão sobre o governo brasileiro. Em resumo, o jogo ainda está em aberto, mas a ameaça de retrocesso é grave e iminente.
A derrota dos povos indígenas será a nossa derrota também, podem estar certos disso – Leonardo Barros Soares
IHU On-Line – O cardápio de ameaças recentes inclui o PL 191/2020, que regulamenta a mineração em terras indígenas. Quais as implicações destas ofensivas?
Leonardo Barros Soares – Mais uma vez, as implicações são severas e potencialmente genocidas. Costumo dizer que quem se diz a favor de um tal projeto ou está se beneficiando diretamente dele ou nunca passou perto de um sítio de mineração. Ninguém, em sã consciência, pode achar agradável ter no seu quintal maquinário pesado, explosões, poeira, barulho, escavações, pilhas monstruosas de rejeitos, barragens inseguras, poluição por metais pesados. Por que os povos indígenas tolerariam isso? Em nome de quê? De uma indenização? Participação nos lucros? Promessas de emprego? Claro, essas propostas podem ter seu apelo num contexto de extrema fragilização das condições de vida de muitos povos indígenas, mas não vejo sua aceitação por parte das lideranças e das organizações indígenas.
O projeto de lei está na ordem do dia do governo Bolsonaro desde seu início. As mineradoras têm um apetite incontido pelas jazidas minerais, reforçado pelo novo boom de commodities que se avizinha. É um pleito antigo e tem força, mas depois dos desastres de Mariana, Barcarena e Brumadinho e da renovada praga dos garimpos em terras indígenas, creio que o argumento contra o projeto tem boa chance de prosperar também devido à sua repercussão na opinião pública.
IHU On-Line – O que a experiência canadense nos ensina sobre mineração em territórios dos povos nativos?
Leonardo Barros Soares – A mineração em terras indígenas canadenses e australianas é sempre mencionada nas argumentações dos defensores do PL 191/2020 como exemplos a serem seguidos. É fato que alguns povos indígenas canadenses se beneficiam financeiramente de empreendimentos minerários em seus territórios. É preciso notar, todavia, que as condições jurídicas, econômicas e políticas envolvidas são completamente diferentes e muito específicas. Em outras palavras, funciona somente para alguns povos indígenas do Canadá e, ainda assim, esse “funciona” é muito questionável.
Já tive uma visão mais aberta sobre isso, talvez pensando que pudessem existir formas de coexistência entre a atividade minerária e as terras indígenas. Depois de estudar mais e sobretudo após conhecer de perto algumas minas e seus impactos, além de conhecer algumas terras indígenas, fiquei bem mais cético. Ainda não é uma questão fechada para mim. Preciso investigar mais. No entanto, parece-me que não é apenas que o modelo canadense não seja transponível para o caso brasileiro – e, evidentemente, não é –, mas trata-se sobretudo de refletir sobre o caráter eminentemente destrutivo da atividade mineradora. A destruição pode ser compensada financeiramente? Sim, claro… mas tudo realmente tem um preço? É intolerável para o capitalismo que existam pessoas e coletividades que ainda resistam à financeirização da existência. A simples existência das terras indígenas nos relembra que ainda é possível pensar fora da lógica do capital. Mas a pressão é avassaladora, sem dúvida.
É intolerável para o capitalismo que existam pessoas e coletividades que ainda resistam à financeirização da existência – Leonardo Barros Soares
IHU On-Line – De onde vem a narrativa de que os povos indígenas são “incivilizados”?
Leonardo Barros Soares – Essa narrativa é tão antiga quanto a conquista do continente americano. Ganhou os contornos atuais no século XIX, sobretudo com as teses do racismo científico, que buscava dar um amparo “científico” para as atrocidades cometidas em nome do “progresso” e da “civilização”. O binômio “selvagem-civilizado” parece ainda estar no cerne do pensamento de muitas sociedades sobre povos indígenas, não apenas no Brasil, como atesta a malfadada recente declaração do presidente argentino. Aqui, no entanto, ela se atualizou com a retórica anti-indígena do governo Bolsonaro, com a reedição do integracionismo militarista da ditadura militar de 1964. Para muitos brasileiros, só é “índio de verdade” aquele que “anda nu na selva”. O “índio de Hilux”, que fala português e acessa a internet, já estaria “civilizado” e não teria motivos para ter direitos específicos. É apenas uma das manifestações do racismo contra indígenas, que creio ser o mais tolerado no Brasil.
A simples existência das terras indígenas nos relembra que ainda é possível pensar fora da lógica do capital. Mas a pressão é avassaladora, sem dúvida – Leonardo Barros Soares
IHU On-Line – O Supremo Tribunal Federal marcou o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata das demarcações de terras indígenas e com repercussão geral, para o dia 30 de junho de 2021. O que podemos esperar deste julgamento?
Leonardo Barros Soares – O julgamento em tela é decisivo para o futuro dos povos indígenas, pois diz respeito ao embate entre as teses do indigenato e do marco temporal como as balizas constitucionais para o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação de terras indígenas. O Recurso Extraordinário faz parte de um contexto mais amplo de intensa judicialização dos processos demarcatórios no país. Na minha tese de doutorado, apresentei alguns dados preliminares relativos ao número de Ações Cíveis Originárias – ACOs que contestam demarcações de terras indígenas no país e cheguei à conclusão de que há uma verdadeira guerra federativa contra os povos indígenas. Grande parte dos estados brasileiros – com destaque para Roraima e Mato Grosso do Sul – habituaram-se a contestar, nas cortes, os processos demarcatórios. No caso em questão, o debate gira em torno de uma ação de reintegração de posse movida pelo estado de Santa Catarina contra a Fundação Nacional do Índio – Funai e indígenas do povo Xokleng.
Se a tese do indigenato vencer, pacifica-se de uma vez por todas uma longa tradição jurídica consubstanciada na constituição de 1988 – Leonardo Barros Soares
Esses dados serão aprofundados no meu próximo ciclo bienal de pesquisas, a começar no próximo ano, mas já é possível afirmar que o resultado do Recurso Extraordinário terá profundas implicações sobre esses processos. Se a tese do indigenato vencer, pacifica-se de uma vez por todas uma longa tradição jurídica consubstanciada na Constituição de 1988. Caso contrário, estarão abertas as comportas para a explosão de ACOs contestando demarcações concluídas há décadas, aumentando ainda mais a insegurança jurídica no campo. Não creio que o STF queira ir por esse caminho.
Por tudo o que está em jogo e pela quantidade de atores envolvidos no processo, não é exagero dizer que esse é, sem dúvida, o julgamento mais importante para os povos indígenas desde a promulgação da Constituição de 1988.
IHU On-Line – Até que ponto é possível, futuramente, recuperarmos os prejuízos decorrentes do atual desmonte da política indigenista brasileira?
Leonardo Barros Soares – É difícil saber. O desmonte é profundo, grave e potencialmente irreversível. Note que essa resposta poderia ser estendida para qualquer outra política pública do estado brasileiro em tempos bolsonaristas. O presidente Jair Bolsonaro sempre foi muito claro com relação ao que pretendia para com o incipiente estado de bem-estar social estabelecido pela Constituição de 1988 e ainda mais para com a política indigenista: o objetivo, desde sempre, foi o de destruir, não o de construir algo. Felizmente, os movimentos indígenas, suas organizações e lideranças são combativos e são sempre o sul a ser seguido na busca de uma nova política indigenista que reorganize as relações entre o estado brasileiro e seus povos originários. Mas se não sabemos nem o que acontecerá até o fim da próxima semana, fica difícil fazer qualquer análise prospectiva mais clara.
Por tudo o que está em jogo e pela quantidade de atores envolvidos no processo, não é exagero dizer que esse é, sem dúvida, o julgamento mais importante para os povos indígenas desde a promulgação da constituição de 1988 – Leonardo Barros Soares
IHU On-Line – A esquerda desenvolvimentista compreende a causa indígena?
Leonardo Barros Soares – Penso que os partidos de todos projetos ideológicos, de um modo geral, compreendem de forma muito limitada a questão indígena. Uma análise simples dos programas partidários e as plataformas dos candidatos/das candidatas revela facilmente que a temática indígena entra quase sempre de forma muito instrumental, quando entra. Ainda falta uma investigação mais rigorosa, no campo da ciência política, sobre como os partidos políticos brasileiros lidaram com questões indígenas ao longo das décadas, mas, preliminarmente, penso que isso tem muito a ver com a origem dessas agremiações.
Os partidos de esquerda têm uma forte base nas camadas médias urbanas, sindicatos, movimentos sociais com pautas afetas ao cotidiano das cidades, e as questões indígenas certamente parecem muito distantes ou simplesmente menores frente a questões “realmente importantes”, tais como política energética, valorização salarial, geração de empregos etc. Os povos indígenas e suas organizações são aceitos nas mobilizações políticas desses partidos, mas isso não se reflete na implementação concreta de sua pauta.
Os povos indígenas e suas organizações são aceitos nas mobilizações políticas desses partidos, mas isso não se reflete na implementação concreta de sua pauta – Leonardo Barros Soares
O projeto neodesenvolvimentista retomado no governo Lula e reforçado no governo Dilma proporcionou, em larga medida, um conjunto amplo de graves violações de direitos dos povos indígenas. Isso não pode, de forma alguma, ser escamoteado. Infelizmente, até onde posso ver, não penso que essa tendência tenha mudado de forma significativa. Espero, sinceramente, estar errado.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Leonardo Barros Soares – É importante que os leitores e leitoras se interessem pela tramitação do PL 490/2007 e, mais amplamente, sobre a questão indígena brasileira como um todo. Qualquer ataque ao esteio fundamental da existência dos povos indígenas – as terras tradicionais em que habitam – é um ataque a nós todos como sociedade. É um erro fatal achar que não temos nada a ver com os territórios indígenas. Hoje, mais do que nunca, sua existência e sua integridade são fundamentais para a manutenção da vida no globo e, consequentemente, têm impacto na nossa vida cotidiana. Está faltando água e a energia vai aumentar? As cidades estão ficando mais quentes a cada ano que passa? Você come comida envenenada? Há novas doenças emergindo? Tudo isso está em conexão direta com a destruição do meio ambiente, e, portanto, com o fim anunciado das demarcações de novas terras indígenas. A derrota dos povos indígenas será a nossa derrota também, podem estar certos disso. Pressione seu/sua representante no Congresso para que se posicione contra o projeto. A demarcação de terras indígenas precisa ser aperfeiçoada, tornada mais célere, e não o contrário.
Leia mais
- O racismo contra povos indígenas e o mito do índio improdutivo. Artigo de Leonardo Barros Soares
- Dizer que povos indígenas estão sentados sobre imensas reservas minerais é racismo puro e simples. Entrevista especial com Leonardo Barros
- Após mobilização dos povos indígenas, STF retoma julgamento que define o futuro das demarcações no país
- Julgamento de Terra Indígena Ibirama-Laklanõ no STF traz à tona importância de assegurar direitos aos povos originários. Entrevista especial com Eloy Terena
- STF começa julgamento do século sobre Terras Indígenas nesta quarta
- Ruralistas e bolsonaristas aprovaram o PL490, projeto de lei inconstitucional que abre caminho a mais um genocídio indígena. Os indígenas recorreram ao STF e precisam da nossa ajuda
- Pela manutenção dos modos de vida dos povos indígenas e do direito de dizer não à mineração! Dizemos #NãoPL490 #NãoPL191
- “A guerra continua, perdemos uma batalha”, diz líder indígena sobre PL 490
- Aprovação do PL 490 na CCJC e brutalidade policial representam dupla violência contra os povos indígenas do Brasil, aponta o Cimi
- Indígenas são atacados pela polícia em Brasília durante protesto pacífico contra PL 490/2007
- PL 490 ataca direitos territoriais indígenas e é inconstitucional, analisa Assessoria Jurídica do Cimi
- “Marco temporal”: indígenas questionam interesse por trás de mais um adiamento no STF
- Prestes a ser julgado, “marco temporal” pode extinguir povos indígenas, diz defensor
- O absurdo do ‘marco temporal’ e a violação dos direitos originários
- Brasil é citado na ONU por risco de genocídio de indígenas
- “Desgoverno transformou genocídio em projeto e encontrou eco”, diz professora indígena
- Levante Indígena denuncia Bolsonaro, pressiona Congresso e apela ao STF
- Nota do MPF reafirma inconstitucionalidade de mineração em terras indígenas
- Bolsonaristas e ruralistas aprovam em comissão maior ameaça a direitos indígenas em décadas
- Lira diz que vai discutir mineração em terra indígena com líderes
- PL da mineração e garimpo coloca em risco a existência dos povos indígenas amazônicos
- “Desrespeito aos direitos indígenas ameaça o futuro do Brasil”
- O futuro das terras indígenas nas mãos do STF
Marco temporal vai ao pleno do STF e define demarcação: o que esperar do julgamento?
Tese jurídica levantada no início dos anos 2000 é considerada “absurda” por organizações ligadas à causa indígena

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar na quarta-feira (30) o julgamento do chamado “marco temporal”, uma das teses jurídicas utilizadas por representantes do agronegócio para questionar a demarcação de terras indígenas.
Uma vez julgada, a ação terá repercussão geral, ou seja, poderá ser usada como base para decisões judiciais em casos semelhantes, definindo o futuro de milhares de indígenas brasileiros. A sessão está marcada para as 14h e será realizada por meio de videoconferência.
O julgamento imediato é de interesse dos povos originários, já que o ministro Marco Aurélio Mello marcou aposentadoria para o 5 de julho de 2021. Com isso, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) poderá indicar um novo membro para a Corte, o que aumenta as chances de validação do “marco temporal”, tendo em vista o alinhamento do governo federal aos interesses ruralistas.
:: “Caráter originário dos direitos territoriais”: procuradores rechaçam marco temporal ::
“A gente não sabe quem será e qual o posicionamento desse novo ministro, então isso nos preocupa”, disse Samanta Pataxó, assessora jurídica da Articulação dos Povos Indígenas (Apib). “Porém, considerando outros ministros, que têm um entendimento mais razoável e proporcional ao que traz a Constituição, isso nos dá esperança de que haja a construção de uma tese que possa efetivar direitos e não mais limitar o reconhecimento de direitos constitucionais dos povos indígenas”.
De onde surgiu
O processo que volta a ser analisado pelos ministros diz respeito à posse do território do povo Xokleng, de Santa Catarina. Trata-se de uma ação de reintegração de posse movida em 2009 pelo governo do estado referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, declarada em 2003, habitada por mais de 2.000 indígenas também dos povos Guarani e Kaingang, segundo o Instituto Sócio Ambiental (ISA).
Rejeitado por organizações ligadas à causa indígena, o “marco temporal” entrou na pauta do STF no dia 11 de junho, mas a análise foi interrompida por um pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes. O relator do processo, ministro Edson Fachin, deu voto contrário à utilização do critério para demarcação de territórios.
O governo catarinense obteve ganho de causa nas instâncias inferiores. Agora, as decisões anteriores são contestadas no STF pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
O que é o “marco temporal”?
Pelo “marco temporal”, os territórios só podem ser demarcados se os povos indígenas conseguirem provar que estavam ocupando a área anteriormente ou na data exata da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, ou se ficar comprovado conflito pela posse da terra.
“Essa tese perversa desconsidera o histórico de violência a que foram submetidas as populações indígenas antes de 1988, bem como as ameaças e assassinatos que resultaram na expulsão das comunidades de suas terras”, avalia Antônio Eduardo Oliveira, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
“Mas essas terras são inalienáveis, indisponíveis, ou seja, o direito sobre elas é imprescritível e seu usufruto é exclusivo. A posse e uso dessa terra só pode ser usufruída pelos povos originários”, continua o integrante do Cimi.
A tese foi usada pela primeira vez para questionar a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Em 2009, o Supremo determinou a demarcação contínua da TI e retirada da população não indígena, afastando a necessidade de os povos originários provarem que estavam lá em 1988.
:: No Central do Brasil, a luta contra o PL 490 e o Marco Temporal, com Sônia Guajajara ::
“Eles [os indígenas] de fato não estavam na sua terra nessa data porque foram expulsos, tiveram suas terras tomadas por fazendeiros”, afirmou a assessora jurídica da Apib. “Embora a decisão tenha sido favorável ao indígenas, esse critério começou a ser aplicado de maneira indevida e descabida em outros processos de demarcação que não têm nenhum aspecto parecido com esse processo em específico”.
“Assim, o “marco temporal” acabou sendo o grande trunfo, principalmente da bancada ruralista, que tem interesses contrários às demarcações”, explica a Samanta Pataxó.
STF x Legislativo
O “marco temporal” foi embutido pela bancada ruralista no Projeto de Lei (PL) 490, que abre as áreas protegidas ao agronegócio, à mineração e à construção de hidrelétricas. A tramitação da matéria foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara na semana passada, sob forte oposição de lideranças. A matéria ainda não foi a votação no plenário da Casa.
:: Terras não demarcadas dificultam acesso de indígenas a vacina e políticas públicas ::
Caso o STF decida favoravelmente aos povos indígenas, a decisão deverá se sobrepor a qualquer legislação aprovada pelo Congresso que seja baseada na tese do “marco temporal”, conforme avalia a assessora jurídica da Apib. “O que tem que prevalecer é o entendimento do STF porque ele é o guardião da Constituição. Logo, os preceitos do PL 490, e futuramente a lei que pretende se criar, serão inconstitucionais”, afirmou Samanta Pataxó.
Isolados ameaçados
Se o “marco temporal” já tem a aplicabilidade questionada no caso de povos que mantêm contato permanente com não-indígenas, o retrocesso seria ainda maior para os isolados, aqueles que preferem não manter contato com o restante da população.
Conforme aponta o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), na maioria dos casos é impossível comprovar a presença de isolados em determinada área e em uma data específica. Isso porque essas populações estão em constante deslocamento, recuando para áreas mais preservadas em função da pressão sofrida pelo desmatamento.
“Se o “marco temporal” se tornar uma lei, praticamente todas as terras indígenas demarcadas de isolados seriam extintas. Não dá para perguntar para eles [indígenas] se eles estavam lá em 1988. Provavelmente não estavam”, explica o membro da OPI Fabrício Amorim. “Fica muito fácil entender por que essa é uma tese totalmente absurda e inaplicável para todos os povos indígenas, em especial para os isolados”.
Edição: Vinícius Segalla