Convivi com padre Virgílio Uchôa desde o início dos anos 60. Fomos contemporâneos em Roma, no Colégio Pio Brasileiro, fazendo o curso de teologia na Universidade Gregoriana. Diga-se com muito orgulho, em pleno Concílio Vaticano II, onde o clima eclesial realizou um verdadeiro novo Pentecostes. Além do curso previsto, conseguíamos acompanhar palestras significativas para a atualização teológica dos bispos brasileiros, numa casa da ação católica italiana, onde residiam nossos bispos no período conciliar.
Isto revela que Virgílio mergulhou no espírito do Concílio e bebeu do cálice da esperança que marcava a Igreja e os novos presbíteros. Por isso, não é de admirar que Virgílio tenha assimilado um espírito missionário fruto do contexto.
Quem era Virgílio? Um jovem da melhor estirpe mineira que optou pelo sacerdócio dentro de um estilo original. Era estudante de engenharia na Universidade e, ao mesmo tempo, integrava o Movimento da Juventude Universitária Católica (JUC) que concretizava o espírito do Vaticano II no grande estilo de missão. Decidiu ser padre. Fez parte dos
estudos no Seminário de Belo Horizonte e foi enviado pela diocese para continuar seus estudos em Roma.
Conheci seus familiares mais próximos. Seu pai médico, sua mãe poetisa. Eram provenientes da cidade de Governador Valadares. Sua família lhe ofereceu uma educação sólida, com valores dignos e profundos. Virgílio era um homem de princípios fortes de honestidade, caráter e muita sensibilidade para os mais fragilizados da sociedade. Todos estes elementos ofereciam a Virgílio chegar à ordenação sacerdotal como um presbítero do espírito do Vaticano II. E de fato concretizou.
Após poucos anos como sacerdote em Belo Horizonte, foi convidado para trabalhar na CNBB no campo das vocações. Mas, sua missão se estendeu tanto que concretizou seus dons em várias áreas da Conferência.
Pessoalmente, retomei meu convívio com ele em Brasília, também como ele, convidado a realizar a missão de assessoria em campos muito semelhantes. Ele agora no campo da economia-administração da entidade e eu como assessor dos leigos/as e, logo depois, como assessor político. Pensávamos juntos nossa missão, realizamos juntos muitas iniciativas sensíveis aos sinais dos tempos do momento.
Vivíamos na segunda metade da década de 80. Exatamente, um período de muita vitalidade na sociedade. Período da Constituinte. A CNBB se dispôs acompanhar o processo novo para a elaboração da nova Constituição. Para tanto, nomeou uma equipe de bispos, coordenada por Dom Cândido Padin, formado em direito e um bom jurista. Para acompanhar mais de perto o emaranhado do processo constituinte, Dom Padin nos escolheu (Virgílio e eu) para o trabalho de maior aproximação com os constituintes e para com eles refletir os desafios que a sociedade com ânsia aguardava.
Vivemos uma interessante experiência nesse campo específico da nossa missão, quando em sintonia com Dom Padin e com a direção da CNBB, demos início a um trabalho exigente e muito importante. Formamos uma pequena equipe com dois professores de direito da Universidade de Brasília (José Geraldo de Souza e João Gilberto Coelho), além de mim e do Virgílio. Elaborávamos um boletim semanal com notícias do que acontecia no Congresso Nacional e toda 2ª feira almoçávamos juntos para definir um roteiro de entrevistas com parlamentares expressivos. Em seguida, redigíamos um texto, que servia de base para publicação do boletim da CNBB, que era transmitido pela rádio Medianeira de Santa Maria/RS, onde Dom Ivo era o arcebispo e presidente da CNBB. Esse boletim era retransmitido para várias rádios, chegando até às rádios da Amazônia.
Também a equipe realizava debates com parlamentares na sede da Conferência onde explicitava suas preocupações e esperanças.
Virgílio vinha de uma experiência notável durante o período da ditadura militar onde ele foi mediador para acolher vítimas do momento autoritário. E o fez com dignidade e altivez. Daí ele conhecer pessoas de significativas informações com sede de justiça e solidariedade. Nesse mesmo período, a direção da CNBB nos solicita prepararmos uma análise de conjuntura durante a reunião mensal da então CEP (Conselho Episcopal de Pastoral). Esta análise era transmitida para os senhores bispos pelos órgãos de comunicação da entidade.
Esta dinâmica intensa oferecia para Virgílio crescer numa sólida mística eclesial. E sofria quando sentia que não havia correspondência em alguns dos seus membros. Mas, padre Virgílio não só estava envolvido com economia, administração e política. Tinha muita preocupação com a espiritualidade. Para alimenta-la, fazia parte das Fraternidades sacerdotais da Espiritualidade do irmão Charles de Foucauld. Levava muito a sério a participação dos retiros anuais de uma semana e as reuniões mensais da equipe em Brasília para revisão de vida e oração em comum.
Rezava com fervor a oração do Abandono (do irmão Carlos): “Fazei de mim o que quiserdes. O que de mim fizerdes eu vos agradeço”.
Virgílio também foi um dos fundadores da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, uma proposta fruto do documento Gaudium et Spes do Concilio Vaticano II. A Comissão no Brasil teve início no Rio de Janeiro, onde funcionava a sede da CNBB e depois transferida para Brasília. Também colaborou muito com a criação da Comissão de Justiça e Paz de
Brasília sob aos auspícios do cardeal Falcão que participou da abertura com entusiasmo. A Comissão de Brasília se empenhou em várias atividades em defesa dos pobres, sobretudo em áreas de invasão da cidade, como no caso mais conhecido – da SQN 110 – que levou a Comissão a várias iniciativas em defesa destas famílias abandonadas pelo Estado. Penso que posso afirmar Virgílio ter sido um presbítero modelo da teologia eclesial do Vaticano II, tanto da Lumen Gentium como da Gaudium es Spes, sem subestimar os outros documentos que tanta influência tiveram na renovação da Igreja. Ele estava presente e oferecendo ajuda sincera e eficiente lá onde surgiam novas inciativas eclesiais do período: CIMI, Pastoral da Terra, MEB e tantos outros…
Nos últimos anos, ele foi pároco da Paróquia Nossa Senhora dos Migrantes, no lago oeste da cidade, onde residia numa chácara e acolhia alguns grupos para encontros. Lá findou seus dias.
Agradecemos a Deus a vida de Virgílio; seus dons foram colocados com muita gratuidade a serviço de uma Igreja em saída sonhada pelo Papa Francisco. Ele deixa muita falta. Saudades. ”Mas, …se o grão de trigo morre produz muito
fruto”(Jo 12,24)
Padre José Ernanne Pinheiro – Brasília, 14/11/2021