Restrição ao acesso a livros

DOM TOTAL

A história já mostrou que restrição ao acesso a livros significa restrição a liberdades

Para os pobres, alíquota de 12% sobre livros representa um aumento considerável e prejudicial

Para os pobres, alíquota de 12% sobre livros representa um aumento considerável e prejudicial (Unsplash/Ismail Salad Hajji dirir)

Michel Reiss*

Há uma norma constitucional que praticamente não gera polêmica entre os estudiosos do tema. Trata-se do art. 150, III, “d”, que veda a criação de imposto sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”. Trata-se, a toda evidência, de norma visando o incremento da leitura e, consequentemente, da cultura, do conhecimento e da própria educação como um todo. Enfim, o ser humano só se torna intelectualmente completo com a leitura. (Obviamente não se está a exigir conhecimento enciclopédico da maioria absoluta da população brasileira, mas apenas que não se pode admitir um povo iletrado, sem senso crítico algum).

Acrescente-se ainda que, apesar de a norma proibir apenas a criação de impostos, nada obsta a criação de outros tributos. Mas, felizmente, lei de 2014 também concedeu isenção de PIS e Cofins.

Esse “estímulo fiscal” se revela mais do que pertinente. A leitura tem papel fundamental no exercício das liberdades constitucionais, em conjunto, por exemplo, com a democracia e com uma imprensa livre (sem qualquer censura prévia).

Na nossa área, o Direito Penal, não apenas o trabalho, mas também o estudo gera remição da pena (art. 126 da Lei de Execução Penal – LEP). Nessa linha, o Conselho Nacional de Justiça chegou a editar a “Recomendação n. 44”, que regulamenta a remição pela leitura, em uma clara analogia à norma que concede o benefício pelo estudo. A análise é simples: não há comparação entre ter um preso ocioso e um preso lendo, seja para o próprio preso ou até mesmo para a sociedade (cf. https://www.cnj.jus.br/cnj-servico-como-funciona-a-remicao-de-pena/ Acesso em 12.04.2021).

Por outro lado, a história já mostrou como a restrição ao acesso a livros significa restrição a liberdades, significa ditadura e várias outras violações a direitos fundamentais. Citemos um exemplo emblemático: em plena Alemanha, terra de filósofos da grandeza de Kant e Hegel, já no século 20, houve um fatídico fato histórico. Em 10 de maio de 1933, houve uma imensa destruição, ou melhor, queima de livros “proibidos” pelo recém implantado governo hitlerista. Na lição do Museu do Holocausto de Curitiba: “Em 1933, o Dr. Wolfgang Hermann, chefe da biblioteca de Berlim, publicou uma lista de livros que se desviavam dos padrões impostos pelo regime nazista. Foi ele quem incentivou a queima e incitou os universitários da cidade a destruir as obras no dia 10 de maio”. Em seguida, a conclusão do museu, a qual aderimos: “‘Aqueles que começarem a queimar livros, logo acabarão queimando pessoas’ – Heinrich Heine”.

Talvez uma maneira mais capciosa de restringir o acesso aos livros é fazendo-o de forma velada, como por exemplo criando ou aumentando taxações, como estamos lamentavelmente presenciando no Brasil, num evidente movimento contrário à leitura.

Nova proposta de reforma tributária encaminhada ao Congresso prevê a unificação do PIS e da Confins, criando assim a (CBS), com alíquota proposta de 12%, que também incidiria sobre os livros.

Segundo a Receita, o argumento para se tributar livros é o seguinte: “De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019, famílias com renda de até dois salários mínimos não consomem livros não didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos”, segundo documento apresentado pelo mencionado órgão federal.

Trata-se de movimento contrário ao que tem se tentado implementar no Brasil nos últimos anos. Dados de 2018 revelam que 44% da população brasileira não praticava o hábito da leitura. Portanto, torna-se necessário alguma forma de política pública capaz de aumentar a proporção de brasileiros lendo, passando pela família e pela escola. Nesse sentido, houve uma manifesta evolução com a Lei nº 12.244/2010, que por sua vez exige que “as instituições de ensino públicas e privadas de todos os sistemas de ensino do país contarão com bibliotecas”. O ponto crucial está no art. 3º, que prevê que “os sistemas de ensino do país deverão desenvolver esforços progressivos para que a universalização das bibliotecas escolares […] seja efetivada num prazo máximo de dez anos”. Apesar dos dez anos já terem se expirado, sempre haverá tempo para que a frequência dos alunos às bibliotecas seja cada vez maior.

A taxação que é proposta vai em sentido oposto. E, como se não bastasse, há argumentos bastante simplórios para os fundamentos apresentados pela Receita Federal:

“Números da pesquisa Retratos da Leitura deste ano, que será divulgada pelo Instituto Pró-Livro ainda neste mês, adiantam que para 22% dos brasileiros leitores, o preço é o principal fator na hora de escolher um livro para comprar. Para quem tem renda de um a dois salários mínimos, o percentual salta para 28%. Na classe A, o preço influencia a escolha de 16% dos entrevistados.

Há ainda, segundo o estudo, 27 milhões de consumidores de livros nas classes C, D e E, o que vai de encontro à ideia que o governo tem ventilado, classificando-o como um produto restrito a uma elite capaz de pagar mais impostos. Aquelas pessoas seriam as mais prejudicadas por um aumento de preços que, como já alerta o mercado editorial, seria uma certeza diante de um novo tributo de 12%.

Ainda assim se defende que é o caso de taxar aumenta a arrecadação, já que não haveria gastos substancialmente maiores para os ricos. E para os pobres, que devem sim ler, o aumento é irrelevante?

Terminamos com uma última indagação, sempre feita quando a pauta é reforma tributária. Por que não propor uma lei complementar para efetivar a criação do imposto sobre grandes fortunas, que inclusive já está previsto na Constituição (art. 153, VII)? Por que nenhuma proposta de reforma nesse sentido? A resposta é bastante óbvia. Por outro lado, teríamos um grande aumento na arrecadação, infinitamente superior à taxação de livros pela “CBS” e, consequentemente, muito mais condições de viabilizar leituras (no plural!) para a parcela menos favorecida da população, implementando cada vez mais políticas públicas como aquela prevista na mencionada Lei nº 12.244/2010.

*Michel Reiss é mestre pela UFMG, doutor pela ESDHC/PUC-Rio e professor na ESDHC e advogado criminalista

 

fonte: https://domtotal.com/noticia/1510307/2021/04/restricao-ao-acesso-a-livros/

 

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