“A renda básica não é novidade portanto. O conceito original é o pagamento periódico de uma quantia sem vinculação ao trabalho e qualquer exigência de contrapartidas, correspondendo ao direito de cada pessoa ter meios de viver com dignidade”, escreve Altamir Tojal, jornalista, em artigo publicado por UniNômade Brasil, 22-05-2020.
Eis o artigo.
É previsível que a renda básica seja cogitada, no cenário pós-pandemia, como fator de aumento da demanda e também de reorganização do sistema de proteção social. E, na perspectiva de um pacto pela vida e pela sustentabilidade, poderá configurar uma proposta de adequação da economia aos novos paradigmas de produção e trabalho, lastreados no conhecimento, tecnologia e inovação. [1]
Quase 100 milhões de brasileiros pediram o auxílio emergencial de 600 reais mensais para sobreviver ao colapso das possibilidades de trabalho imposto pela crise da Covid-19 no Brasil. Destes, cerca de 50 milhões estão sendo chamados de ‘invisíveis’ porque não estavam nas estatísticas e cadastros oficiais de desempregados, pobres e vulneráveis.
Chamar de ‘invisíveis’ quase 50 milhões de pessoas que se declaram agora sem renda ou sem meios para sobreviver deveria causar estranheza a qualquer vivente no Brasil, onde a informalidade, a precariedade e insuficiência ou ausência de proteção social foram naturalizadas e passaram a ser a regra em todo momento, lugar e circunstância.
O despreparo do país para enfrentar as carências e a desigualdade, agora potencializadas pela pandemia, põe em evidência a necessidade de uma agenda de reconstrução econômica associada a um amplo programa social no qual deverá estar em debate a introdução da renda básica não apenas como ajuda de emergência ou como benefício condicionado e temporário, mas como direito de cidadania e fator de sustentabilidade da economia.
Mudanças e direitos
Se antes da Covid-19 o interesse e o debate sobre a renda básica já eram crescentes no planeta, agora isso tende a se intensificar.
Por um lado, a necessidade de pagamento de um ‘auxílio emergencial’ às pessoas sem renda suficiente se impôs em quase todo o mundo por razões humanitárias e também para que a estratégia sanitária de distanciamento e isolamento social funcione com redução da circulação para trabalhar ou procurar trabalho. E ainda para que a demanda econômica se mantenha em níveis capazes de evitar o colapso de diferentes cadeias produtivas.
Por outro, apesar das dúvidas sobre a configuração pós-pandemia das sociedades e economias, já se intensificam e parece que serão acelerados os processos de uso mais intensivo de tecnologia, com maior automatização e robotização nas fábricas e na produção em geral, nos serviços e na vida. Um dos resultados deste processo já vinha sendo o aumento do desemprego e da precarização , recomendando mecanismos de continuidade de renda sem contrapartida de trabalho formal e mesmo de outras formas de ‘trabalho produtivo’.
O desafio de redefinir direitos e proteção social adequados a estas mudanças já tinha ultrapassado a agenda de movimentos sociais. No rastro das mudanças que ocorrem na produção e na natureza do trabalho na economia pós-industrial, quando se produz cada vez mais com menos trabalho e menos capital, o tema da renda básica tem estado presente em programas de governo e campanhas eleitorais de diferentes orientações ideológicas e em pronunciamentos e propostas não só de cientistas e filósofos mas também de líderes empresariais como alguns dos gigantes da nova economia.
Pelo mundo
Apesar das dúvidas sobre resultados, da briga com o senso comum contrário à ideia de “distribuição de dinheiro sem contrapartida de trabalho” e dos riscos de exploração populista de suas possibilidades e resultados, as iniciativas de introdução da renda básica já vinham se multiplicando no mundo.
Embora argumentos de igualdade e eliminação da miséria estejam quase sempre presentes nas propostas de renda da cidadania, existe uma ampla variedade conceitual conforme as motivações e intenções de quem propõe, que podem ser identificadas na sua diversidade léxica: renda básica ou mínima, suficiente ou insuficiente, incondicional ou condicionada, universal ou seletiva.
Na prática, a maior parte das experiências realizadas até agora tem sido de pagamento de pequenos valores a pessoas mais pobres, quase sempre sob condições estabelecidas por governos e gestores, entre elas as de procurar e aceitar trabalho, vacinar os filhos e mantê-los na escola, entre outras.
Existe nos EUA a mais antiga experiência contínua de renda básica universal e incondicional, no estado do Alaska, desde 1986. Há notícias no país de experiências mais recentes de governos locais, empresas e instituições para enfrentar problemas sociais e econômicos, em complementação a mecanismos existentes como o seguro desemprego. No campo político, um dos pretendentes a candidato à presidência pelo Partido Democrata na eleição deste ano foi Andrew Yang, jovem empreendedor das áreas de tecnologia e educação, com plataforma focada na renda básica.
Diversas experiências têm sido realizadas em outros países e regiões há alguns anos. Praticamente todos os países da Europa têm programas de renda mínima condicional. O Irã manteve desde 2011 até há alguns anos um programa de renda universal e incondicional. Segundo a BIEN (Basic Income Earth Network) existem atualmente programas de renda básica, pilotos ou em projeto, também na Índia, Canadá, Finlândia, Escócia, Holanda entre outros, com aplicação mais ou menos ampla em termos de alcance social, com abrangência regional ou nacional.
No Brasil existem programas de distribuição condicional de renda, com destaque para o Bolsa Família. E temos a Lei da Renda Básica de Cidadania, proposta por Eduardo Suplicy, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo então presidente Lula, que não saiu do papel.
O relatório “A natureza mutável do trabalho”, do Banco Mundial, sugere que programas semelhantes à renda de cidadania podem ser considerados para lidar com a crescente desigualdade e mudanças profundas na natureza do trabalho nas próximas décadas, embora existam prós e contras e problemas de aceitação.
Uma linha conceitual preconiza a renda básica como princípio voluntário e volitivo, sem depender do estado nem de fundos públicos. Além disso, existem ativistas que não acreditam que governos e instituições oficiais venham a apoiar efetivamente a ideia e trabalham na formação de redes de pessoas e organizações civis dispostas a criar e manter fundos para pagar a renda básica aos mais pobres.
Conceitos e efeitos
A renda básica não é novidade portanto. O conceito original é o pagamento periódico de uma quantia sem vinculação ao trabalho e qualquer exigência de contrapartidas, correspondendo ao direito de cada pessoa ter meios de viver com dignidade. Um dos seus formuladores foi Thomas Paine, pensador e ativista que influenciou a independência dos EUA e a Revolução Francesa.
A ideia pode ser achada em teses revolucionárias, humanistas, libertárias, comunistas e em receitas reformistas liberais. Cabe tanto em programas de eliminação da miséria e redução da desigualdade como em fórmulas para assegurar consumidores em cenários de queda na renda do trabalhador e de desemprego.
A tese de uma renda mínima de subsistência, formulada como providência humanitária e assistencialista, serviria também para reforçar a modelagem contemporânea do capitalismo. Já a ideia de uma renda básica suficiente, universal e incondicional seria um direito de cidadania, instrumento de comunhão por todos da riqueza gerada pelo desenvolvimento das forças produtivas.
Estas podem não ser necessariamente propostas excludentes. Podem ser etapas de um processo. Mas os seus vários e distintos propósitos e efeitos precisam ser considerados e avaliados com transparência.
Economistas de diferentes tendências como Keynes, Hayek, Milton Friedman, James Tobin e Galbraith trabalharam ou desenvolveram propostas relacionadas ao tema. A renda de cidadania está, há algum tempo, na agenda do Fórum Global de Davos e tem estado em manifestações de empresários da nova economia. Elon Musk, da Tesla, preconizou que o modelo de renda básica pode ser a melhor solução para lidar com a fartura de bens e a falta de emprego geradas pela tecnologia. E Mark Zuckerberg, do Facebook, disse: “Chegou a hora de nossa geração definir um novo contrato social. Deveríamos explorar ideias como a da renda básica universal para garantir que todos tenham segurança para testar novas ideias”.
No plano da economia globalizada e na configuração mais liberal, a distribuição de uma renda mínima ajudaria a proteger mercados da competição de países com mão de obra mais barata, viabilizando reduções reais de salários e a flexibilização de direitos trabalhistas em áreas supostamente menos competitivas em razão do custo do trabalho.
Depois do vírus
Uma crise econômica profunda é agora realidade em quase todo o planeta com a Covid-19 e a sua superação se apresenta como grande desafio no cenário pós-pandemia. É previsível que propostas de renda básica ganhem mais espaço no debate, certamente em nome da retomada do dinamismo econômico, mas também, a depender de mobilização política, por um programa de redução da pobreza e da desigualdade.
Assim, a renda básica poderá ser cogitada, no conjunto de alternativas para vencer a crise, como fator de aumento da demanda e também de atualização e reorganização do sistema de proteção social. E poderá, na perspectiva mais ampla de um novo pacto pela vida e pela sustentabilidade, configurar uma proposta de adequação da economia aos novos paradigmas de produção e trabalho, lastreados no conhecimento, tecnologia e inovação.
Um dos obstáculos às experiências de implementação da renda básica e de programas de distribuição de renda em geral é o questionamento na sociedade de que os beneficiários são induzidos à acomodação. Este é um dos ‘problemas de aceitação’ indicados no estudo do Banco Mundial e em outras análises, embora as avaliações das experiências mais relevantes mostrem que a maioria dos beneficiários não para de trabalhar ou de procurar trabalho. Outro problema tem sido a manipulação política por governos e lideranças políticas, como tem ocorrido no Brasil com programas como o Bolsa Família.
Seja qual for o mundo que surgirá após a Covid-19 não deverá mais ter lugar para a naturalização do vírus da desigualdade e muito menos para tantos milhões de pessoas vulneráveis, chamadas ou não de ‘invisíveis’. Para se tornar realidade, a renda básica terá de ser vontade e conquista da sociedade. Problemas e desafios terão de ser enfrenados e corrigidos com informação, transparência e debate, em um processo que possa conduzir a plataformas viáveis, justas e efetivamente democráticas de proteção social.
Notas:
[1] Texto publicado originalmente na edição especial ‘Por una Renta del Común. El ingreso social garantizado como nueva institución’ (clique aqui), da revista Ignorantes, em 10 de maio de 2020. Além deste artigo, a publicação conta com textos de Carlo Vercellone, Andrea Fumagalli, Ana Rameri, Ariel Pennisi, Daniel Raventós (entrevista), Rubén Lo Vuoloe Claudio Lozano (conversación en Pensando la Cosa). Disponível aqui.
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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/599250-renda-basica-e-os-invisiveis-que-todo-mundo-ve
Renda emergencial deveria se tornar permanente, defende economista
Economista Laura Carvalho analisa medidas para estimular a economia no cenário pós-pandemia. Ela diz que a retomada da economia deve ser lenta, principalmente nos segmentos mais afetados pelo isolamento social
Publicado 21/05/2020 23:20 | Editado 21/05/2020 23:47
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Filas do auxílio emergencial em frente à Caixa Econômica Federal
A economista Laura Carvalho, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP), acredita que a renda emergencial que o governo federal está pagando aos trabalhadores afetados pela crise sanitária do coronavírus deve se tornar permanente. Ou, ao menos, ser também um instrumento para ajudar a economia do país no cenário pós-pandemia.
“Tem medidas para isso que podem ser pensadas nessa segunda fase. Investimentos públicos, em infraestrutura, tornar permanente a renda básica são coisas que poderiam ajudar a uma saída mais rápida de um quadro de alto desemprego e de um quadro que já era de uma estagnação desigualitária, porque os mais pobres perderam renda e só o meio e o topo (da sociedade) recuperaram um pouco. Mas para essas medidas funcionarem você antes tem que combater o vírus”, afirma a economista em conversa com o jornalista Juca Kfouri, no Entre Vistas desta semana, que foi ao ar nesta quinta-feira (21) na TVT, às 22h.
No programa gravado ontem e exibido ao vivo no YouTube, a economista analisa o cenário de crise sanitária, econômica e política no país, em que falta orientação clara do governo Bolsonaro para combater a pandemia de coronavírus. No início da entrevista, Laura destaca que a pandemia ajudou a revelar papéis importantes do Estado, que o neoliberalismo queria liquidar, como a atuação por meio do sistema público de saúde.
Na perspectiva do cenário pós-pandemia, Laura comenta que a retomada da economia deve ser lenta, principalmente nos segmentos mais afetados, como os restaurantes. Isso deve ocorrer pelo fato de as pessoas permanecerem por algum tempo com medo de enfrentar situações de aglomeração. Essa situação, comenta a economista, tem sido percebida em cidades pelo mundo que já estão reabrindo a economia.
Na entrevista, a economista fala também da questão do endividamento do país frente aos problemas causados pela crise sanitária. Segundo ela colocar a questão de imprimir ou não dinheiro, como tem sido apontado em alguns debates, não chega a ser a questão mais relevante. O ponto central é que o país está promovendo um aumento da dívida para combater a crise, seja como for a forma desse combate.
Taxação de fortunas
Segundo a professora, entre as medidas após a crise sanitária seria importante ter também a taxação sobre fortunas. Ainda que as fortunas possam migrar entre os países em busca de paraísos fiscais, o que requer uma ação global de coordenação de impostos que ainda não existe, Laura defende é que essa medida tem um forte apelo simbólico. “Tem um simbolismo, porque vai no ponto exato da concentração de riqueza e isso representa atacar as desigualdades”, afirma.
Outro ponto defendido pela economista para o cenário futuro é o aumento da tributação de renda, já que a alíquota máxima é de 27,5%, o que beneficia os mais ricos. Ela entende que poderia ver uma progressão maior da tributação do Imposto de Renda. Laura também defende que seria necessário acabar com a isenção de lucros e dividendos, bem como combater um dos maiores escárnios da legislação tributária no país, que é a tributação do consumo igualmente para ricos e pobres. Por essas razões a economista entende que a reforma tributária deve emergir como a mais urgente no cenário pós-pandemia.
A economista fala também de geopolítica e dos papéis de China e Estados Unidos, que podem sofrer alterações diante das tendências de crise do neoliberalismo e da globalização. A crise política no Brasil também é analisada pela economista.
Confira o Entre Vistas: https://www.youtube.com/watch?v=HZOSHTLmBZs&feature=youtu.be