“Era o dia 28 de agosto de 1961. Ali estava, sem dúvida, deixando-se vislumbrar, o Povo mobilizado. Por que o Povo? Porque não há estatística que cubra aqueles 100 mil, e os demais que passaram a se espalhar pela cidade, levando bandeiras, panfletos e palavras aladas conclamando a defesa da Legalidade“, escreve Flávio Aguiar, jornalista e escritor, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 24-08-2021.
Em 1961, resistência popular impulsionada por Leonel Brizola barrou golpe desencadeado por renúncia de Jânio Quadros (Foto: n: Museu da Comunicação Hipólito José da Costa)
Eis o artigo.
Será que o povo existe? Será que ele é como o monstro do Loch Ness, na Escócia, que quanto mais se deixa vislumbrar em fotos fugidias, mais se levantam as dúvidas sobre sua existência? Dizem as constituições que o povo é soberano e que os poderes serão exercidos em seu nome, mas a gente sabe que isto é uma quimera.
As esquerdas, em geral, não gostam de o povo, vendo nele uma artimanha das classes dominantes para manter o jugo sobre as classes subalternas. Mas as esquerdas, em geral, também não gostam das palavras “nação” e “nacionalismo”. No entanto, elas existem, e mobilizam. Claro, podem mobilizar à direita, com xenofobia e outros preconceitos. Mas também podem mobilizar à esquerda, junto com a luta anti-imperialista.
São palavras que podem mudar de sentido, conforme a latitude e a longitude em que estejam. Na Europa, em 90% dos casos, “nacionalismo” aparece nos discursos da direita, com “xenofobia” e “autoritarismo” em conexão. Porém, ao cruzar o Atlântico, a palavra foi mudando de cor, se avermelhando, até florir na América Latina junto com as lutas de libertação contra o jugo colonial e imperialista.
Aqui e ali, o Povo, de fato, se deixa vislumbrar, num alumbramento, para quem o viu e ouviu. Um destes momentos foi o do final de agosto de 1961, sessenta anos atrás. Eu tinha 14 anos e meio. Um belo dia, 25 de agosto, como um raio em céu de brigadeiro, estourou a notícia: o presidente Jânio Quadros renunciara.
Por que ele fez aquele gesto? Para dar um auto-golpe, dizem uns, esperando que o Povo aparecesse e o reconduzisse ao poder com poderes excepcionais, descartando a Constituição Federal. Mais ou menos como o atual usurpador do Palácio do Planalto quer fazer, sem recorrer a renúncia. Há uma diferença entre ambos: Jânio queria mesmo que o Povo, assim com maiúscula, o reconduzisse. Já a usurpador de hoje, cada vez mais acuado, espera que o “seu povo” o reconduza, essa arraia miúda composta pela soldadesca, oficiais de ou sem pijama, por milicianos, bandidos, motoqueiros da segunda e da terceira idade, a escória empresarial, os ruralistas e caminhoneiros de cabeça quente e arma debaixo do casaco, a lumpen-burguesia, os negociantes dos templos em nome de Jesus, a ralé, a escória e quejandos. A ver.
Mas há também quem diga que Jânio renunciou porque faltou alguém que o trancasse no banheiro. Provavelmente ambas as versões têm sua dose ou ponta de razão. Hoje se sabe que Jânio padecia de momentos de profunda depressão. Sobretudo a partir de quinta ou sexta-feira à tarde, quando todo o mundo político saía de Brasília, até segunda ou terça-feira, quando o mesmo mundo voltava. O presidente tinha de ficar em Brasília, sozinho. Há relatos pungentes – não confirmados, também como o monstro do Loch Ness – de que o presidente, nas noites de sexta-feira e sábado, sentava-se na sala de cinema do Palácio do Planalto com uma garrafa de uísque ao lado e ficava assistindo um faroeste até que ambos – o filme e a garrafa – terminassem. Vá se saber.
O fato que se sabe é que, para provável surpresa do presidente, o Congresso Nacional aceitou a renúncia. E outro fato que se sabe é que os ministros militares – Odylio Denys, da Guerra (hoje se diz do Exército), Grum Moss (da Aeronáutica) e Silvio Heck (da Marinha) – vetaram a posse do vice João Goulart, que se encontrava em viagem à China, a mando do presidente Jânio Quadros.
Para muitos isto corrobora a hipótese da auto-conspiração janista: que no momento da renúncia o vice se encontrasse num país comunista, o que aumentaria a suspeita de que ele quisesse instaurar um regime revolucionário e sindicalista. Logo Jango!, sempre hesitante, timorato e conciliador.
Entretanto, o inesperado aconteceu. O governador Leonel Brizola não aceitou o golpe, mobilizou a Brigada Militar (a PM do Rio Grande do Sul), entrincheirou-se no Palácio Piratini, sede do governo estadual, requisitou a rádio Guaíba e deu começo àquilo que entraria para a História como o Movimento e a Rede da Legalidade.
Insatisfeitos com a pregação do governador, os ministros militares deram ordem para que ele se calasse. Consta que o general Costa e Silva telefonou para ele, exigindo que interrompesse as emissões radiofônicas da Rede da Legalidade. “Ninguém vai dar o golpe pelo telefone”, foi a resposta que o general recebeu.
Depois de momentos excruciantes, o comandante do III Exército, sediado em Porto Alegre, então o maior e mais bem armado do país, aderiu ao movimento de resistência contra o golpe. O ponto mais dramático desta expectativa foi a chegada da notícia de que uma coluna de blindados saíra do seu quartel, no bairro da Serraria, e vinha para o centro da cidade. Para onde apontariam os tanques? No final, um alívio: os tanques ocuparam o cais do porto, onde navios da Marinha ali estacionados, com comandantes favoráveis ao golpe, ameaçavam bombardear o Palácio Piratini. Mas outros momentos dramáticos se seguiriam.
Desesperados diante do sucesso da resistência, os ministros golpistas deram ordem para que os aviões da 5a. Zona Aérea, sediada em Canoas, na Grande Porto Alegre, levantassem voo e bombardeassem o Palácio. A senha era: “Tudo azul em Cumbica”, porque os jatos Gloster Meteor deveriam executar a ordem e rumar para São Paulo, pousando na Base Aérea assim chamada, em Guarulhos. Um rádio-amador captou a ordem e avisou o governador Leonel Brizola, que fez uma despedida histórica pela Rede da Legalidade, dizendo que resistiria até o fim e pedindo a todos que ficassem em casa. Aconteceu o contrário.
Pois foi no meio deste torvelinho que o Povo entrou em cena. Quando o carro do general Machado Lopes chegou à Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, a multidão compacta deteve o veículo. E começou a cantar o Hino Nacional. O militar saiu do carro, se perfilou e cantou junto. Foi o sinal dado de que ele vinha para aderir ao movimento, não para sufocá-lo.
Na sequência, chegou um jipe da Aeronáutica. A multidão, que nesta altura era calculada em 100 mil pessoas (Porto Alegre, na época, rinha uns 650 mil habitantes), bloqueou-lhe o caminho, aos brados de “golpistas” e “assassinos”, pois já sabia da ordem de bombardeio, mas não recuava. Começaram a tentar virar o veículo. Desesperado, o sargento que dirigia o carro, com um acompanhante, gritou (mentiu) que era primo do governador Brizola, e que vinha lhe pedir ajuda. A multidão deixou os dois passarem.
Nova notícia: durante a madrugada os sargentos da Base Aérea rebelaram-se, e, armados, cercaram o alojamento onde os oficiais se preparavam para levantar voo e cumprir a ordem assassina.
A situação era tensíssima. Alertado, o general Machado Lopes enviou um destacamento para ocupar a Base de Canoas. Os oficiais golpistas fugiram para São Paulo, em aviões desarmados. Assumiu o comando o tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, legalista.
Era o dia 28 de agosto de 1961. Ali estava, sem dúvida, deixando-se vislumbrar, o Povo mobilizado. Por que o Povo? Porque não há estatística que cubra aqueles 100 mil, e os demais que passaram a se espalhar pela cidade, levando bandeiras, panfletos e palavras aladas conclamando a defesa da Legalidade. Qual o percentual de trabalhadores ali presentes? De estudantes? De classes médias? De médicos, engenheiros, advogados, funcionários públicos, aposentados, professores, etc.? De jovens e velhos? De homens e mulheres? Até de militares à paisana, além dos da Brigada Militar, armados até os dentes nas trincheiras de sacos de areia improvisadas ao redor do Palácio? É impossível saber. Não só porque não se fez esta estatística, mas porque o que ali estava era o resultado de uma transubstanciação, uma mudança de identidade e de natureza, mesmo que fugaz e momentânea. A massa de gente dispersa e acomodada pusera-se de pé e transformara-se em “o Povo”.
Paulo César Pereiro, inspirando-se na Marselhesa, compôs a música e a poeta Lara de Lemos a letra do Hino da Legalidade: “Avante, brasileiros, de pé,/Unidos pela Liberdade./Marchemos todos juntos com a bandeira/Que prega a Lealdade.//Protesta contra o tirano/Que prega a traição,/Que um Povo sé será grande/Se for livre sua Nação!”. Nas manifestações, tornou-se o complemento do Hino Nacional e do Hino Riograndense, que relembrava os legendários Farrapos e Garibaldinos de antanho.
O que se seguiu depois foi a série atribulada de movimentações militares, de negociações palacianas, com a adoção provisória do regime parlamentarista (desativado pelo plebiscito de 1963). Houve uma decepção generalizada quando, já de retorno ao Brasil, ainda em Porto Alegre, João Goulart aceitou a chamada emenda parlamentarista, desarticulando o Movimento da Legalidade. O Povo, novamente reunido na Praça da Matriz, vaiou-o sem dó nem piedade, jogando-lhe um rosário de palavrões impublicáveis aqui. A tal ponto chegou a fúria da multidão que Brizola decidiu tirar dali o vice-presidente, fazendo-o sair pelos fundos ou pelos subterrâneos do Palácio até um ponto seguro de onde ele pudesse tomar rumo.
Ainda houve outros momentos trepidantes, como aquele em que um grupo inconformado de oficiais da Aeronáutica decidiu derrubar o avião em que Jango seguiria de Porto Alegre para a capital, na chamada “Operação Mosquito”. Uma complexa “Operação Tática” de resposta àquela foi montada a partir de Porto Alegre, garantindo o voo e o pouso em segurança no aeroporto de Brasília.
Nos anos que se seguiram os conspiradores de 61 tornaram-se os vitoriosos golpistas e canalhas de 64, quando o Povo perdeu e se desarticulou, para reaparecer, apenas nas manifestações pelas Diretas, em 83/84, com ganhos e perdas, até os funerais de Tancredo Neves, em 1985.
O antes mencionado tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, já promovido a coronel aviador, foi assassinado em 4 de abril de 1964, na mesma Base Aérea de Canoas, cujo comando assumira em 1961, como oficial legalista. Naqueles dias logo depois do golpe de abril, as luzes das ruas de Porto Alegre não eram acesas à noite. Lembro de uma dessas noites, em que eu estava à porta de nossa casa, e meu pai me falou: “entra, meu filho, hoje anoiteceu mais cedo”. Acho que era a noite deste mesmo dia 4 de abril.
De qualquer modo, as imagens e o canto de o Povo permanecem indeléveis nos olhos e nos tímpanos de quem O viu e ouviu, ainda que estejam um tanto desgastados pelo tempo.
P S – Para quem não viu, recomendo o filme (ficcional e histórico) Legalidade (2019), dirigido por Zeca Brito. Uma surpresa: o pai do diretor atua como o Leonel Brizola já ancião, ao final do filme. Sua parecença com o ex-governador é tamanha, que houve quem pensasse que o próprio Brizola tivesse encenado seu papel, no fim da vida.
Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
No dia 2 de setembro (quinta-feira), às 17h30, o Prof. Dr. Jorge Ferreira, da UFF, ministra a palestra O contexto da Legalidade e seus legados para a democracia brasileira. A atividade integra o IHU ideias.
O contexto da Legalidade e seus legados para a democracia brasileira
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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/612304-rede-da-legalidade-1961-quando-o-povo-venceu
A experiência da ‘Legalidade’ e uma lição que ainda não aprendemos. Entrevista especial com Diego Martins
Historiador analisa a resistência concebida por Brizola que, sem uma perspectiva messiânica, é capaz de atrasar o avanço totalitário, mas que, atualmente, volta a ameaçar a democracia brasileira
Há quem ainda discuta se a História é realmente capaz de se repetir como tragédia ou farsa, mas o que parece mais pacífico é que se não acertamos as contas com o passado, a conta vem e é alta. É nessa direção que vai o historiador Diego Martins, quando analisa a resistência articulada por Leonel Brizola e sua Rede de Esclarecimento em prol da Legalidade que foi capaz de adiar a imposição do fim da democracia. “O legado do Brizola dos anos 1960 é o da defesa da organização dos trabalhadores, e essa lição nós ainda não aprendemos como deveríamos”, observa, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Para ele, este mês de agosto, em que lembramos tanto o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, como a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, e todo o movimento da Legalidade desencadeado por Brizola para assegurar a posse de João Goulart nos ensinam algumas lições. A primeira delas é identificar “a preocupação de Brizola com o que ele chamava de ‘momento de desfecho’. Aparentemente, já em 1963 se vivia a expectativa de ruptura da democracia, e o líder trabalhista foi uma das pessoas que, naquela conjuntura, tentou organizar a resistência possível a essa ruptura”.
Foi justamente por apreender isso que ele vai organizar a resistência articulada em diferentes perspectivas, como destaca o professor. Porém, o mais interessante é apreender o caráter de organização dessa resistência. “O projeto dos Grupos de Onze deixa um ensinamento: é preciso se organizar”, aponta. E dispara: “sem organização, os mais pobres e desamparados deste país são facilmente derrotados, basta ver os eventos mais recentes, desencadeados a partir do golpe de 2016. É uma sucessão de derrotas, que deve ser explicada pela politização dos setores da direita, não pode ser compreendida sem referência também à desmobilização popular promovida pelo lulismo”.
Martins faz, assim, esse convite para revermos essa história do passado, mas com sobriedade e sem messianismos, diferente do que temos visto atualmente. “Brizola foi uma figura importante em 1961, mas dizer que a resistência ao golpe se deveu principalmente à sua atuação e ao seu suposto carisma, capaz de mobilizar as massas… isso me parece exagerado”, sopesa. Para ele, “uma etapa importante dessa luta é a organização, e isso Brizola nos ensinou nos anos 1960”. Organização que, para o historiador, é justamente o que nos falta. “Precisamos estar preparados para a luta, para a disputa política. Na verdade, não temos opção, já que os progressistas e os democratas são os que estão sob duros ataques”.
Diego Martins Dória Paulo é graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio e doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF. É autor da dissertação Leonel Brizola e a “Rede do Esclarecimento” (1963-1964) e da tese As contradições da democracia e o Instituto Fernando Henrique Cardoso (2004-2019).
Confira a entrevista.
IHU – O que foi a chamada Rede do Esclarecimento, orquestrada por Leonel de Moura Brizola?
Diego Martins – A Rede do Esclarecimento ou Rede Nacional do Esclarecimento não parece ter sido mais do que um projeto de Leonel Brizola e de alguns petebistas que estavam nas alas à esquerda do partido. Mas se trata de um projeto importante, que tentou organizar uma força política capaz de resistir ao que o próprio Brizola, a partir de 1963, entendia como um movimento de ataque à democracia a ser desencadeado pelo “antipovo” – como ele denominava os setores mais reacionários da classe dominante brasileira.
A investigação sobre o que se poderia chamar de Rede do Esclarecimento tem as peculiaridades de uma pesquisa científica. Em minha dissertação de mestrado, trabalhei com três tipos de fontes. Da polícia política da época, porque ela gravava intervenções feitas por Brizola a partir da Rádio Mayrink Veiga, sediada no Rio de Janeiro, e aí hoje em dia temos acessos a programas inteiros e a longos discursos desse líder político – que gostava e tinha muita habilidade para falar ao rádio, como se sabe. Trabalhei também com fontes impressas, especialmente o jornal O Panfleto, que circulou entre 17 de fevereiro e 30 de março de 1964, com sete edições – que me foram gentilmente cedidas pelo professor Jorge Ferreira, então professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense, a quem sou muito grato por isso. E, finalmente, trabalhei também com fontes de memórias escritas sobre os anos 1960.
Nesse conjunto de dados, consegui identificar a preocupação de Brizola com o que ele chamava de “momento de desfecho”. Aparentemente, já em 1963 se vivia a expectativa de ruptura da democracia, e o líder trabalhista foi uma das pessoas que, naquela conjuntura, tentou organizar a resistência possível a essa ruptura.
Aparentemente, já em 1963 se vivia a expectativa de ruptura da democracia, e o líder trabalhista foi uma das pessoas que, naquela conjuntura, tentou organizar a resistência possível a essa ruptura – Diego Martins
Três dimensões da Rede do Esclarecimento
A Rede do Esclarecimento parece ter sido um projeto pensado a partir dessa preocupação. Foi algo informal, espécie de projeto que indicava muito mais um caminho que deveria ser trilhado do que algo que efetivamente tenha existido de modo formal. Em todo o caso, congregou três dimensões, então entendidas por Brizola como fundamentais para se promover a organização dos trabalhadores. A dimensão do rádio, a partir da Mayrink Veiga. A ideia era utilizar esse veículo, já extremamente popular, para estabelecer canal direto de comunicação com nacionalistas organizados.
A dimensão do impresso, que trazia artigos mais aprofundados, sobre diversos temas quentes da conjuntura, de política nacional e internacional. E a dimensão dos Grupos de Onze, que expressava mais diretamente a preocupação de Brizola com a organização dos trabalhadores. A Rede do Esclarecimento é sobre isto: organização, organização e organização, como o próprio Brizola fala em uma de suas intervenções no rádio naquela conjuntura.
A Rede do Esclarecimento é sobre isto: organização, organização e organização, como o próprio Brizola fala em uma de suas intervenções no rádio naquela conjuntura – Diego Martins
IHU On-Line – Que leitura o senhor faz do Movimento da Legalidade? Que relações pode estabelecer com a Rede do Esclarecimento?
Diego Martins – Há um certo consenso historiográfico sobre a liderança de Leonel Brizola no movimento de oposição ao golpe que poderia ter sido desencadeado em 1961. Eu acredito que essa avaliação está fundamentalmente correta. Brizola parece mesmo ter sido um líder político naquela conjuntura. Ocorre que essa observação não pode ser exagerada. Há pesquisas interessantes, como a de João Marcelo Pereira Santos sobre trabalhadores porto-alegrenses entre 1958 e 1963, que revelam outras fontes de mobilização, como o Partido Comunista. Quer dizer, Brizola foi uma figura importante em 1961, mas dizer que a resistência ao golpe se deveu principalmente à sua atuação e ao seu suposto carisma, capaz de mobilizar as massas… isso me parece exagerado.
Leia o artigo de João Marcelo Pereira dos Santos Aqui
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Acredito que a verdade passe mais pela ação de um líder progressista que tenta se promover junto do movimento – o que traz como consequências a nacionalização da resistência, com a Cadeia da Legalidade varando o país, mas também a popularização do nome de Leonel Brizola, que se apropria de muito capital político na ocasião.
Brizola foi uma figura importante em 1961, mas dizer que a resistência ao golpe se deveu principalmente à sua atuação e ao seu suposto carisma, capaz de mobilizar as massas… isso me parece exagerado – Diego Martins.
Talvez isso explique mesmo a formação desse projeto de Rede do Esclarecimento em 1964. Quero dizer, quando Brizola se vê confrontado por nova ameaça à democracia, ele recorre ao que deu certo no passado: ao rádio, à imprensa, à organização dos trabalhadores. Só que dessa vez a situação era diferente, porque havia uma ação política mais organizada por parte dos golpistas – e aí a historiografia sobre o golpe tem ficado cada vez mais farta, mas o trabalho principal segue sendo, para mim, o de René Dreifuss “1964: a Conquista do Estado” sobre a ação política das organizações das classes dominantes na conjuntura. Acho que ali se encontram boas respostas sobre por que a resistência em 1964 não conseguiu manter o regime democrático.
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1964: a Conquista do Estado sobre a ação, de Dreifuss (Petrópolis: Companhia das Letras, 2006) | Foto: divulgação
IHU – O grupo de Brizola fazia uma defesa das chamadas “reformas de base”. Em que consistiam essas reformas? Que conexões podemos fazer a ideias das reformas, tão presentes nas discussões políticas de hoje?
Diego Martins – As reformas de base representaram a plataforma de governo de João Goulart. A ideia era levar o Brasil para um estágio mais democrático do capitalismo, como se isso fosse possível em um país como o nosso. Então, se tinha defesa da reforma agrária, que atacaria fundamentalmente a concentração de terra, com o fito de criar uma espécie de “classe média rural”, composta por pequenos produtores que formariam também um mercado interno mais amplo e dinâmico, capaz de servir de mola para impulsionar o desenvolvimento econômico do país.
As demais reformas tinham lógica parecida, e Brizola insistia particularmente na reforma eleitoral, isto é, em um conjunto de mudanças das regras do jogo político. Ele queria principalmente estender o direito dos votos aos analfabetos, cuja limitação é de fato absurda, pensando que a democracia deveria ser a expressão da soberania popular. Mas essa conquista não foi alcançada. Só depois da ditadura iniciada em 1964 é que conseguimos ampliar esse direito para as pessoas que não são alfabetizadas – e nos anos 1980 o impacto da mudança foi menor do que ele seria se tivesse ocorrido nos anos 1960, porque o número de analfabetos no Brasil já tinha caído um pouco.
É claro que muitos observadores falam com razão sobre os interesses políticos de Brizola na extensão do direito do voto ao analfabeto: pesquisas revelavam à época que os mais pobres e menos escolarizados tendiam a votar em maior escala no PTB, seu partido. Mas críticas dessa natureza têm uma certa origem elitista difícil de disfarçar. Tudo bem que havia interesses em jogo, mas que bom que os interesses ali se identificavam com causas populares. É sempre melhor para a democracia de um país.
As muitas ideias de cabem na ‘reforma’
Agora, sobre a segunda parte da pergunta, temos de ter certo cuidado. A ideia de reforma é muito antiga. Se forçarmos a história, acharemos referências a reformas no Império Romano – a história da Igreja também é cheia de episódios que mobilizam o conceito, da Reforma Gregoriana no século XI ao conjunto de reformas celebrado em Trento no século XVI. Quero dizer, a ideia de reforma se presta a muitos sentidos, ainda que em nosso tempo ela tenha uma origem progressista, surgindo no debate entre comunistas e social-democratas no século XIX.
Por isso temos de ter certo cuidado com o termo, porque ele é algo inerentemente positivo, no sentido de indicar transformações para melhor – quando você reforma um ambiente da sua casa, ele tende a ficar melhor do que antes. Mas reformas podem ser positivas ou negativas, dependendo da posição social que você ocupe. Basta lembrar que a ditadura instaura o Estatuto da Terra já em novembro de 1964, isto é, uma espécie de reforma agrária, mas diferentemente do que pretendia o movimento de esquerda no período. Essa foi uma reforma que favoreceu a concentração da propriedade fundiária.
Assim, a ideia de reformas de hoje, defendidas por Paulo Guedes e pessoas do tipo, difere muito do conjunto de propostas defendido por Brizola nos anos 1960. O sentido social é radicalmente oposto. As reformas de base eram democratizantes.
Os Grupos de Onze, ou comandos nacionalistas, eram um grupo para luta política. Não eram “para tomar chá ou fazer crochê”, como Brizola dizia na época, até com uma tonalidade bem machista, mas para organizar o “povo” na luta pela democracia – Diego Martins
IHU On-Line – O que foram os Grupos de Onze e o que estava no seu ideário? Que legado essa experiência de luta pela defesa do regime democrático deixa?
Diego Martins – Os Grupos de Onze, ou comandos nacionalistas, eram um grupo para luta política. Não eram “para tomar chá ou fazer crochê”, como Brizola dizia na época, até com uma tonalidade bem machista, mas para organizar o “povo” na luta pela democracia. Pelo que sabemos hoje, não foi um movimento armado, como se defendeu à época na grande imprensa e mesmo depois, em livros consagrados de História (penso no de Thomas Skidmore, De Getúlio a Castelo). Foi, sim, um movimento para organizar o povo. A partir desse ponto de vista que ele se vincula àquelas iniciativas de Brizola no rádio e no jornal impresso.
Por isso entendemos que os Grupos de Onze – montados como um “time de futebol”, formato que, para Brizola, o “povo pegava rápido” – devem ser entendidos em conjunto com iniciativas como os programas na Rádio Mayrink Veiga e o jornal o Panfleto. Inclusive porque nesses veículos eram constantes as referências de Brizola aos Grupos de Onze.
Essas células de organização popular, assim, faziam a luta política. Panfletavam, montavam pequenos comitês de debate e, no que parece ter sido mais importante para Brizola, reuniam-se para ouvir suas intervenções no rádio, ler o Panfleto e discutir suas ideias. Trata-se, portanto, de uma forma de organizar o povo, mas uma forma que colocava Brizola na posição de líder, o que parece ter sido também um objetivo do político naquela conjuntura.
O legado do Brizola dos anos 1960 é o da defesa da organização dos trabalhadores, e essa lição nós ainda não aprendemos como deveríamos – Diego Martins
Legados
Em termos de legados, acho que o projeto dos Grupos de Onze deixa um ensinamento: é preciso se organizar. Sem organização, os mais pobres e desamparados deste país são facilmente derrotados, basta ver os eventos mais recentes, desencadeados a partir do golpe de 2016. É uma sucessão de derrotas, que deve ser explicada pela politização dos setores da direita, não pode ser compreendida sem referência também à desmobilização popular promovida pelo lulismo. O legado do Brizola dos anos 1960 é o da defesa da organização dos trabalhadores, e essa lição nós ainda não aprendemos como deveríamos.
IHU On-Line – Como o senhor analisa o contexto que culmina com o golpe de 1964? Que relações e dissociações precisamos fazer com o Brasil de nosso tempo?
Diego Martins – A conjuntura de 1964 expressa transformações na estrutura das classes sociais no Brasil. Desde meados dos anos 1950, já ocorria no país a associação acelerada de setores do empresariado nacional ao capital estrangeiro, o que ajuda a promover o capitalismo monopolista no Brasil. Em síntese, acredito que essas transformações de fundo explicam a mudança de regime político no Brasil – com a instauração de uma ditadura que foi fundamentalmente desmobilizadora.
No entanto, o golpe também expressa o poder de organização dos setores dominantes, identificável na formação de novas organizações da sociedade civil – como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – e das vitórias logradas em batalhas travadas no interior das Forças Armadas, com o setor dito nacionalista perdendo terreno frente ao avanço daqueles militares identificados com as ideias dominantes no hemisfério ocidental durante a Guerra Fria.
Entendo o sucesso dos golpistas em 1964 a partir dessa dupla dimensão, muito mais rica e diversa do que isso, por óbvio. Acredito que essa perspectiva – de relacionar as transformações na estrutura das classes à organização política – deve lastrear também nossos estudos sobre o golpe de 2016 e o Brasil recente, mas isso é algo que não se vê muito na academia – na imprensa menos ainda, mas de lá não se espera muita coisa. Precisamos estudar muito mais o nosso tempo presente, até para saber como reagir aos novos desafios. A sensação que tenho é que, neste momento, navegamos às cegas.
Precisamos estudar muito mais o nosso tempo presente, até para saber como reagir aos novos desafios. A sensação que tenho é que, neste momento, navegamos às cegas – Diego Martins
IHU On-Line – Hoje o Brasil se vê numa disputa polarizada entre Jair Bolsonaro e Lula. Ainda temos espaço para falar de uma terceira via?
Diego Martins – Estou entre os que acreditam que o que se chama de primeira, segunda e terceira vias hoje é, a longo prazo, o mesmo projeto de desenvolvimento capitalista, cujos resultados já são conhecidos por nós na forma dos ataques à democracia e do pauperismo. É claro que há diferenças de intensidade. Um governo de Jair Bolsonaro é profundamente mais ameaçador do que um de Lula, tanto para nossa democracia quanto para a melhora de vida dos mais pobres. Mas não podemos esquecer que o lulismo também é responsável por estarmos aqui, com setores populares desmobilizados e desorganizados. Não acredito que o que se chama hoje de trabalhismo fosse ser muito diferente.
Acredito na democracia que é arrancada à força dos dominantes, e isso depende de organização popular. Neste sentido, vejo com esperança o projeto de formação dos Centros Socialistas, tocado por gente como o deputado Glauber Braga, do PSOL-RJ, e o professor Alysson Mascaro, um dos grandes intelectuais brasileiros de nosso tempo. Acho que é um primeiro passo em um caminho certo. Ainda que seja um passo pequeno, tímido, se for na direção correta já é algo muito melhor do que tivemos pelo menos nos últimos 20 anos.
É preciso se organizar desde já, mas de uma forma que garanta autonomia aos trabalhadores e trabalhadoras. De uma forma que eles e elas coloquem suas demandas e façam ouvir suas vozes. O tempo de falar em seu lugar passou. É preciso ouvir – Diego Martins
IHU On-Line – Que caminhos vislumbra para o Brasil a partir de 2022?
Diego Martins – Não sou otimista. Ainda que uma vertente relativamente mais democrática vença as eleições em 22, teremos de lidar com uma extrema direita organizada e mobilizada. Como será um governo mais progressista em uma sociedade na qual o bolsonarismo ainda inspira um terço do eleitorado? Não me parece que vamos ter, em um futuro próximo, chances de atingir estabilidade política que seja favorável ao desenvolvimento de um Brasil mais democrático e igualitário. A eleição de Lula e qualquer outro do tipo não será o sinal do novo tempo na Terra – não fará jorrar leite da terra e mel das árvores.
Precisamos estar preparados para a luta, para a disputa política. Na verdade, não temos opção, já que os progressistas e os democratas são os que estão sob duros ataques. Uma etapa importante dessa luta é a organização, e isso Brizola nos ensinou nos anos 1960. Organização passa por entendermos que o Dia D e a Hora H, para usar a expressão de um dos tantos facínoras que estão aí no governo, é hoje e agora. Não devemos esperar 2022, porque não devemos mais restringir a política à competição eleitoral. É claro que o pleito presidencial é uma etapa importante da disputa política em uma democracia como a nossa, mas é só isso. Uma etapa importante dentre várias. É preciso se organizar desde já, mas de uma forma que garanta autonomia aos trabalhadores e trabalhadoras. De uma forma que eles e elas coloquem suas demandas e façam ouvir suas vozes. O tempo de falar em seu lugar passou – e nem deveria ter existido. É preciso ouvir.
Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
No dia 02 de setembro (quinta-feira), às 17h30, o Prof. Dr. Jorge Ferreira, da UFF, ministra a palestra O contexto da Legalidade e seus legados para a democracia brasileira. A atividade integra o IHU ideias.
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