Raça. As categorias que não existem

“Ontem eu me perguntava qual era o motivo de manter a palavra raça – cuja verdade histórica, se existiu, se exauriu – nos documentos da comunidade europeia, e a única resposta razoável que me dei é a introjeção, de um impulso de mercificação para preservar e criar caixas para inserir os seres vivos para que depois possam ser trocados uns com os outros, intercambiáveis, como as cédulas de dinheiro. São, aliás, nós somos, o único recurso natural ainda amplamente disponível no planeta, nossa reprodução custa algumas calorias, mas nos dá prazer. Portanto, somos exploráveis. Nós colonizadores de nós mesmos, como sempre, mas mais do que nunca. Portanto, precisamos dos rótulos, das caixas, da raça”, escreve Chiara Valerio, em artigo publicado por La Repubblica, 31-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

Você já jogou com uma bola invisível e um árbitro que pode gritar “Fora!” à vontade?

Assim é a raça. Em uma enciclopédia chinesa que existe apenas em um conto de Borges, aparece uma classificação de animais. Que se dividem em “aqueles que pertencem ao imperador”, as sereias, os leitões, os fabulosos, os treinados, outros rótulos e, por fim, “aqueles que de longe parecem moscas”. Para mim, todos os seres humanos pertencem à última categoria. Aqueles que de longe parecem moscas. Por outro lado, como já lemos nos livros escolares, somos uma espécie sem raças. A raça é uma invenção cultural.

Já que, no entanto, estamos em um ponto da história humana em que a nossa natureza e a nossa cultura tendem a coincidir, é correto observar as coisas a partir daquela que é a característica específica da nossa espécie e que nos assemelha às máquinas calculadoras: a linguagem.

Na capa deste jornal ontem Maurizio Molinari escreveu sobre um e-mail recebido por todos os jornalistas da redação sobre dados sensíveis que poderiam ser objeto de atenção. Um desses dados sensíveis era ‘a origem racial ou étnica‘.

Embora o e-mail tenha sido um erro burocrático, o que se lia nele, e em particular “a origem racial ou étnica” é uma fórmula que está no texto do regulamento da UE 2016/679, presente no Código de Privacidade da nossa República pelo decreto 101 de 2018. Raça, observou Molinari, é uma das palavras que polui a nossa linguagem. Além disso, o artigo 3 da Constituição italiana afirma: “Todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas, condições pessoais e sociais”.

Molinari propõe alterar a palavra não só dos documentos da União Europeia, mas também da Constituição.

Quando chego perto o suficiente para que os animais não pareçam mais com moscas e olho para eles pelas magníficas lentes da Constituição italiana – deformante, porque ao lê-la irradiamos democracia, projeto e igualdade – releio, de fato, que esta raça é a segunda característica que não deveria ser motivo de discriminação: a primeira é o sexo biológico – mas sabemos que o nosso ainda é um país diferente para mulheres e homens -, a segunda é a raça que, sendo inexistente, pode se tornar motivo de qualquer distinção, exclusão e abuso.

Começamos a catalogar, dando nomes às coisas, no Jardim do Éden; além da Encyclopédie des sciences, liderada por Diderot e d’Alembert, uma das grandes conquistas do Iluminismo europeu foi o colonialismo. Quem explora e quem é explorado. Categorias. Para marcar uma diferença racial – inexistente – entre ser humano e ser humano, é preciso inventá-la.

Ontem eu me perguntava, lendo o editorial, qual era o motivo de manter a palavra raça – cuja verdade histórica, se existiu, se exauriu – nos documentos da comunidade europeia, e a única resposta razoável que me dei é a introjeção, de um impulso de mercificação para preservar e criar caixas para inserir os seres vivos para que depois possam ser trocados uns com os outros, intercambiáveis, como as cédulas de dinheiro. São, aliás, nós somos, o único recurso natural ainda amplamente disponível no planeta, nossa reprodução custa algumas calorias, mas nos dá prazer. Portanto, somos exploráveis. Nós colonizadores de nós mesmos, como sempre, mas mais do que nunca. Portanto, precisamos dos rótulos, das caixas, da raça.

Fleur Jaeggy – que, aliás, está comemorando seu aniversário hoje – escreveu em La Paura del Cielo (Adelphi, 1998) “se o tempo tivesse uma forma, teria a forma de uma tampa“, e como a matemática nos ensinou que os seres humanos são feitos da mesma substância que o tempo – tudo contamos e tudo medimos, somos nostálgicos, esperamos sim, mas quanto? – e não só de longe parecemos moscas, mas as nossas linguagens, que somos nós, e os nossos sistemas jurídicos e econômicos, que somos nós, tendem a ter a forma de uma tampa, isto é, esconderocultar, atender o não querer ver. E, em vez disso, devemos querer ver que a palavra raça, mais de oitenta anos depois das leis raciais, está presente nos nossos documentos, nas nossas políticas de privacidade e até mesmo na nossa Constituição.

 

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Porque a raça não existe. Artigo de Marino Niola

“Basicamente, a raça não existe no plano científico, mas infelizmente resiste como mito, principalmente como mito político. Mais um motivo para excluí-la do vocabulário de marketing, das estatísticas e das leis. E também da Constituição. Porque é um lema infectado, uma deformidade insuperável, um algoritmo primordial da exclusão“, escreve o antropólogo italiano Marino Niola, professor da Università degli Studi Suor Orsola Benincasa, em NápolesItália, em artigo publicado por La Repubblica, 04-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

No mundo existem apenas duas raças, a dos que têm e a dos que não têm. Palavras que Cervantes no Dom Quixote coloca na boca da avó de Sancho Pança para resumir os fundamentos da condição humana. Estamos em 1605, na época das colonizações e dos levantamentos geográficos, e entre as pessoas verdadeiramente inteligentes o conceito de raça já está obsoleto, um antigo instrumento do pensamento. Bom apenas para quem quer fazer dele um uso contundente. Ontem como hoje.

Uma “palavra doente”, como o diretor deste jornal a definiu em seu editorial de 30 de julho passado, propondo oportunamente sua supressão do léxico das instituições. Também para neutralizar a toxicidade inercial que se encontra no fundo desse vocábulo amaldiçoado.

Mesmo quando usado com a melhor das intenções, como no artigo 3º da nossa Constituição. Onde o termo é usado pelos Pais Constituintes como um antídoto explícito àquela virulência, àquela infecção que havia adoecido as consciências na época das leis raciais. Ou melhor, racistas. Como um lastro da história, uma patologia da linguagem capaz de resistir aos anticorpos da civilização e do conhecimento. Sejam elas as evidências da razão. Ou sejam as certeiras demonstrações da ciência.

Que tem muita dificuldade para divulgar provas de que a raça não explica absolutamente nada sobre as diferenças entre os homens. Que os nossos comportamentos não são produto da mãe natureza, mas da mãe cultura. Porque gostos e tendências, paixões e vocações, hábitos e atitudes, heranças e identidade são o resultado do ambiente em que vivemos, da educação que recebemos, das influências que sofremos, das experiências que vivemos. E o que cada um de nós escolhe ser.

Rotular e tratar os outros como inferiores, piores, traidores, malfeitores e “menos humanos” do que nós é uma atitude que se repete. Ao que o francês Joseph Arthur Gobineau, em 1853, oferece um suporte teórico ao publicar o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, uma verdadeira bíblia do racismo. Que aplica aos povos e às sociedades um termo anteriormente usado apenas para as raças de animais. De fato, a palavra “doente” deriva do francês medieval haraz, referindo-se à criação de garanhões reprodutores. Uma etimologia “bestial“, que aplicada ao homem acaba produzindo uma desumanização da pessoa.

Na realidade, a questão subjacente continua sendo a enorme desproporção entre a absoluta inconsistência científica da noção de raça e sua extraordinária capacidade de resistência histórica e política. O primeiro a denunciar essa desproporção foi Claude Lévi-Strauss, o maior antropólogo de todos os tempos.

Que em 1952, poucos anos após o horror do Holocausto, escreveu a convite da Unesco Raça e História, um discurso esclarecido sobre os usos e abusos da palavra raça. E voltou ao assunto em 1971, novamente a pedido da Unesco, com um texto, imediatamente traduzido para o italiano pelo L’Espresso com o título Il colore delle idee (A cor das ideias). Onde o grande estudioso desmonta, um após o outro, os falsos silogismos raciais, com base nos resultados das pesquisas científicas, unânimes em afirmar que a raça não existe. Em vez disso, é a cultura que determina o que erroneamente chamamos de raça e não o contrário. Em suma, é a maneira como vivemos que nos torna o que somos. Não é uma suposta origem biológica.

E em todo caso a origem, como dizia o grande filósofo berlinense Walter Benjamin, está no caudal das transformações e mistura constantemente os materiais do nosso nascimento. Isso os funde, os confunde, os transfunde. Isso é provado pelo fato de que 99% do nosso DNA é comum a todos os outros indivíduos do planeta. E aquele 1% é o que me diferencia do meu irmão. E também a Beyoncé de mim. E, para chegar até nós, o que nos torna italianos – língua, tradições, costumes, valores, gostos – não é herdado dos genes, mas adquirido pela convivência com outras pessoas que transmitem esse patrimônio imaterial.

Além disso, está em constante mudança devido a trocas, empréstimos, hibridizações, migrações, contatos. Basicamente, a raça não existe no plano científico, mas infelizmente resiste como mito, principalmente como mito político. Mais um motivo para excluí-la do vocabulário de marketing, das estatísticas e das leis. E também da Constituição. Porque é um lema infectado, uma deformidade insuperável, um algoritmo primordial da exclusão. Que modifica o limiar da diferença a toda oportunidade para transformá-lo em desigualdade, identificando continuamente novos alvos. Judeus ou armênios, meridionais ou imigrantes e assim até o infinito. Com o efeito devastador de liberar atitudes inqualificáveis. Que agora uma política que perdeu o sentido de pudor defende e difunde, como a enésima mutação de um antigo vírus. A variante delta da barbárie.

 

A iniciativa – Um editorial para dizer basta

 

No último dia 30 de julho, o diretor do jornal Repubblica Maurizio Molinari pediu para banir a palavra “raça” em todos os textos europeus, incluindo o artigo 3º da Constituição italiana. A redação havia, de fato, encontrado esse termo em um regulamento da UE.

 

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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/611751-porque-a-raca-nao-existe-artigo-de-marino-niola

 

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