Exportações bloqueadas e especulações: em um mês + 12%, nunca havia acontecido. A crise dos cereais também ameaça a produção animal, a UE corre aos reparos.
A reportagem é de Gabriele De Stefani, publicada por La Stampa, 09-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os preços dos alimentos nunca estiveram tão altos e em mais de trinta anos de monitoramento da FAO, que começou em 1990, nunca tinham subido tão rápido e verticalmente: + 12,6% no mês de março, segundo o índice global da organização. É a tempestade perfeita desencadeada pela soma das dificuldades das matérias-primas e da energia nascidas bem antes da guerra e do conflito que envolve os dois celeiros do mundo: o choque no mercado de cereais eleva os preços em 20%, com um efeito em cascata sobre os óleos vegetais (+ 23%), açúcar (+ 6,7%), carnes (+ 4,8%) e laticínios (+ 2,6%).
Há duas emergências para enfrentar. Em primeiro lugar, o perigo de dramáticas carestias nos países pobres (e de tensões sociais nos mais ricos). E depois o apoio às empresas ameaçadas por aumentos de preços, principalmente a pecuária, que tem como commodity mais importante os cereais russos e ucranianos.
A ameaça da fome
Treze milhões de pessoas, segundo a FAO, correm o risco de se ver em meio a uma carestia causada pela invasão russa da Ucrânia. É, pelo menos em parte, a consequência das dificuldades que as Nações Unidas enfrentam na sua ação de combate à pobreza alimentar: o fornecimento de cereais do Programa Alimentar Mundial da ONU, destinado todos os dias a 125 milhões de pessoas em quarenta países africanos e menos desenvolvidos, 50% desses chegam da Ucrânia. E, além dos programas das Nações Unidas, os aumentos são inevitavelmente mais difíceis de sustentar.
Dinâmica semelhante também no Ocidente, onde a corrida de preços está empurrando milhões de pessoas para a pobreza. “O poder de compra dos consumidores vulneráveis está diminuindo ainda mais”, comenta o diretor-geral da FAO, Qu Dongyu. Guerra e pandemia, uma atrás da outra, sempre nos cálculos da ONU, podem gerar 100 milhões de novos pobres. Vítimas também da dinâmica especulativa sobre os bens alimentares denunciada por Maurizio Martina, vice-diretor da FAO.
As empresas agrícolas
Ao contrário da frente energética, onde se tornou urgente libertar-se da dependência da Rússia, a questão da segurança alimentar não se impõe em nível europeu: “A autossuficiência está garantida”, assegura Stefano Patuanelli, ministro das Políticas Agrícolas. No máximo, as intervenções decididas em Bruxelas visam proteger as empresas agroalimentares dos aumentos de energia e as commodities: adiamentos de rotações obrigatórias de terras e desvio de fundos dos planos de desenvolvimento rural, por um lado servem para garantir uma oferta suficiente para a pecuária, pelo outro para sustentar os rendimentos das empresas.
Os cereais pesam o dobro: tanto como produto que as famílias compram, quanto porque a Rússia e principalmente a Ucrânia são o principal fornecedor estrangeiro do setor de criação animal europeu. Sua escassez, portanto, eleva os custos das empresas agrícolas, que os descarregam nos preços da carne, gerando uma espiral de aumentos.
A Itália já decidiu alocar um milhão de hectares extras, subtraindo-os de outras culturas. Segundo a FAO, o comércio mundial de cereais em 2022 cairá para 469 milhões de toneladas. A União Europeia e a Índia se voltarão para o trigo, enquanto Argentina, Estados Unidos e Índia exportarão mais milho, compensando parcialmente a perda de exportações da região do Mar Negro.
Mas sair à busca de novos fornecedores abre outras questões: a Argentina usa fitofármacos em quantidades significativamente maiores do que a Europa, dos EUA se importam OGMs. Como a crise energética, a emergência alimentar resultante da guerra recoloca em discussão escolhas e tabus da política.
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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/617695-precos-dos-alimentos-nos-maximos-historicos-fao-risco-de-fome
O impacto da guerra na fome no mundo
“Não surpreende que todas as instituições internacionais prevejam consequências dramáticas na vida de dezenas de milhões de pessoas. Assim como não podemos deixar de assumir as recomendações da FAO para manter abertos os mercados de alimentos e fertilizantes, rever as restrições às suas exportações e repensar as consequências das sanções sobre a vida das pessoas. Um chamado aos poderosos da terra para que garantam o fornecimento de alimentos aos países mais pobres mais afetados pela guerra”, escreve o político e economista italiano Romano Prodi, ex-primeiro-ministro da Itália, em artigo publicado por Il Messaggero, 10-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Refletindo sobre as consequências econômicas da guerra na Ucrânia, até agora dedicamos a nossa atenção sobretudo ao aspecto energético, também porque é neste setor que o conflito mais afeta o nosso país. Nos últimos dias, porém, os relatórios da FAO, da OCDE e do Banco Mundial alertam oportunamente para uma perspectiva igualmente dramática e certamente mais ampla: a disponibilidade e os preços dos alimentos. As consequências do Covid já tinham iniciado uma subida sem precedentes dos preços agrícolas mas, no mês da guerra, os aumentos superaram todas as expectativas e, apesar da ligeira descida da última semana, o futuro parece ainda pior.
A Rússia e a Ucrânia estão, de fato, entre os maiores produtores e exportadores mundiais de bens alimentares essenciais. Eles são responsáveis por quase um terço das exportações de trigo, cevada e sementes de girassol. A produção e exportação destes bens estão hoje em dramática crise não só devido aos danos diretos da guerra, à interrupção das vias de comunicação e dos portos, mas também porque uma grande parte das terras ucranianas não pode, nesta época de plantio, nem mesmo ser cultivada.
Um grande número de agricultores abandonou os campos e os fertilizantes necessários para a produção normal não chegam da Rússia em todo o país. Se não houver condições climáticas particularmente favoráveis no resto do planeta, essa súbita falta de produtos tornará a situação alimentar mundial completamente intolerável e sem precedentes. Claro que também nós, italianos, sofreremos as consequências desta dramática revolução no setor alimentar, mas de forma limitada (por assim dizer) ao aumento dos preços.
A Europa é, de fato, um forte produtor e exportador de produtos alimentares, a começar pelos cereais, e a sua chegada aos nossos supermercados está garantida, ainda que a custos cada vez menos disponíveis para um número cada vez maior de consumidores. Grande parte da África e regiões inteiras do Sudeste Asiático entraram em uma situação dramática de falta de alimentos, sem perspectiva de uma solução próxima para o problema. A Eritreia e a Somália dependem inteiramente das importações de trigo da Rússia e da Ucrânia, assim como três quartos dos egípcios, libaneses e muitos outros países da África e do Sudeste Asiático.
Essa tragédia de países desprovidos de recursos alimentares suficientes foi destacada pelo vice-diretor da FAO, Maurizio Martina, que nos lembrou que cerca de 26 países de baixa renda dependem da Rússia e da Ucrânia para mais da metade de suas importações de cereais. Portanto, não surpreende que todas as instituições internacionais prevejam consequências dramáticas na vida de dezenas de milhões de pessoas. Assim como não podemos deixar de assumir as recomendações da FAO para manter abertos os mercados de alimentos e fertilizantes, rever as restrições às suas exportações e repensar as consequências das sanções sobre a vida das pessoas. Um chamado aos poderosos da terra para que garantam o fornecimento de alimentos aos países mais pobres mais afetados pela guerra.
Infelizmente, não vemos de forma alguma como essas posições nobres e obrigatórias podem ser colocadas em prática no curso de um conflito que se funda exclusivamente nas armas e nas sanções e não deixa espaço para qualquer diálogo construtivo. Hoje a única certeza é que este ano chegarão 35 milhões de toneladas de cereais a menos aos países mais carentes em relação ao ano passado. As longas filas de pão já começaram em Túnis (quase na perspectiva de uma nova revolta popular), o Egito tem reservas de grãos por poucos meses e outros países africanos, começando pelos do Mediterrâneo, estão agora entrando em uma progressiva e inevitável crise alimentar. Existe alguém que pensa nisso além da FAO?
Neste ponto (mais uma vez para refletir sobre alimentos e terra) cabe lembrar que, além dos conhecidos vínculos políticos, a China, em sua estratégia de garantir alimentos para um bilhão e quatrocentos milhões de seus cidadãos, há muito adquiriu enormes extensões de terra cultivável tanto na Rússia como na Ucrânia (cf, Paolo De Castro, Corsa alla Terra, Donzelli editore 2013). Certamente não acredito que esses laços econômicos tão profundos sejam suficientes para convencer a China a finalmente se comprometer diretamente com o fim desse conflito. Mas é possível permitir para a China, também do ponto de vista de suas perspectivas internas, que o mundo inteiro viva em tal condição?
No entanto, espero que a evidência da extensão a todos os habitantes do planeta das consequências negativas desta guerra mundial em pedaços constitua pelo menos um estímulo para buscar os acordos e compromissos necessários para alcançar finalmente a paz.
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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/617696-o-impacto-da-guerra-na-fome-no-mundo