Pastoral da Criança
“Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.” (Artigo 8 – Convenção Interamericana de Direitos Humanos)
CASO MARISTELA CIZESKI
Fatos ocorridos em Gaspar no ano de 2013 projetaram o nome do município, de 60 mil habitantes, no cenário nacional, principalmente depois de uma reportagem Fantástico, programa de maior audiência na TV brasileira. Que fatos foram esses que trouxeram uma equipe de jornalistas a Gaspar??? A pauta era o grande número de destituições familiares constatadas no estado, e a reportagem entrevistava famílias, especialistas e autoridades. Entre essas a então, cujo nome será preservado, titular há 12 anos na comarca e que havia atuado nos processos de adoção denunciados como irregulares.
A reportagem do Fantástico mostrou que na retirada das crianças de seus pais biológicos, com intuito de facilitar processos de adoção, não havia qualquer tipo de tentativa de incentivar a melhoria na relação familiar e evitar o devido processo. Em parte dos casos, os problemas eram que os pais das crianças sofriam de depressão, depressão, pós-parto e/ou alcoolismo, por exemplo. Não se levou em conta o drama familiar. Nenhum tipo de delito cometido pelos pais que justificasse o sequestro legalizado de seus filhos.
A grande repercussão do programa enfureceu a juíza que se dizia vítima de calúnia e difamação, mas não podia acusar a emissora, uma vez que havia concordado em conceder a entrevista. Precisava acusar alguém e escolheu como bode expiatório Maristela Cizeski, representante da Pastoral da Criança, então secretária de Ação Social do município, a quem já havia confrontado devido, justamente, a casos de adoções consideradas suspeitas. Maristela foi acusada de ter “trazido” a equipe da TV Globo para Gaspar. Como se uma equipe de prestigiados profissionais a serviço de uma poderosa emissora se deslocassem para o interior de Santa Catarina a pedido de uma desconhecida. De onde viria esse prestígio de Maristela para sugerir pautas para o Fantástico??? Parece ridículo, mas sob essa alegação, Maristela virou ré em cinco processos movidos pela juíza.
Na verdade, o que aconteceu em Gaspar aconteceu também em inúmeros outros municípios brasileiros. Tráfico de crianças, através de destituições familiares, que, como demonstrou mais tarde a CPI da Câmara Federal, movimenta quase tanto dinheiro quanto o tráfico de armas. Documentos comprovam que a adoção de uma criança brasileira por estrangeiro custava cerca de 10 mil dólares. Nas décadas de 80 e 90, esse comércio envolveu juízes, promotores, conselheiros tutelares, médicos, enfermeiros e intermediários, dos quais ficaram conhecidos o padre Lucca di Nuzio, posteriormente expulso da igreja, e Arlete Hilou, que ainda vive numa mansão na cidade de Piçarras, embora seja de origem humilde e nunca tenha trabalhado.
Gaspar e cidades próximas viveram esse “boom” de destituições familiares, como concluiu a reportagem investigativa do Fantástico. A tal juíza tinha porque se preocupar. Acusado de adoções ilegais, o juiz Vitor Bizerra, da Bahia, foi expulso da magistratura.
A ativista Maristela Cizeski tinha solicitado que o coordenador internacional da Pastoral da Criança, Nelson Arns Neumann, fosse ouvido como testemunha de defesa. A Justiça deveria tê-lo ouvido por carta precatória no prazo de 60 dias, após decisão judicial de 07 de abril de 2014. A testemunha foi ouvida, mas o depoimento só foi incluído ao processo após a sentença de Maristela. A data da sentença é de 05 de agosto de 2016. Em 25 de setembro de 2017, na ação contra a ativista houve uma movimentação denominada “Carta Precatória Comarca de Curitiba/PR”. No entanto, o depoimento da testemunha de defesa só foi incluído ao processo em 25/09/2018, ou seja, um ano depois. E dois anos após a vítima ter sido sentenciada.
Quanto a Maristela Cizeski, inserida nesse contexto como tantos outros defensores de direitos humanos, pode ser condenada, entre outras penas, a prestar serviços à comunidade. Mas esse é justamente o seu trabalho e sua missão como cidadã, profissional e militante pelos direitos humanos de crianças e adolescentes. E é o objetivo também da Pastoral da Criança, que ela representa e ajudou a criar, ao lado da Dra. Zilda Arns. Ao tentar proteger crianças e famílias pobres, denunciando destituições familiares, Maristela chamou atenção para a visibilidade dessa prática, acarretando até alterações na legislação. Essas adoções foram consideradas tráfico de crianças e tiveram as penas aumentadas.
Maristela é só mais uma, entre tantas outras defensoras e defensores de direitos humanos, a sofrer retaliações no Brasil. Alguns encontraram a morte. Mas, certamente, esses processos criminais, em vez de maculá-la, enriquecerão sua biografia.
No último dia 28 de agosto, já descrente na imparcialidade do Judiciário brasileiro, devido ao corporativismo que a todo o custo tenta incriminá-la por algo que não cometeu, Maristela Cizeski decidiu denunciar a violação de direitos humanos sofrida e as falhas processuais à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA).
Maristela Cizeski tem audiência marcada para a próxima sexta-feira (30/10). Queremos deixar claro que continuaremos firmes e atuantes na defesa de Maristela Cizeski, não apenas por integrar a Pastoral da Criança, mas porque temos convicção de sua inocência e de seus princípios. Sem sombra de dúvida, ela pode olhar nos olhos dos demais com a dignidade de que não cometeu nenhum crime. Continuaremos divulgando as injustiças cometidas contra ela e denunciando abusos de autoridade e o corporativismo judicial em organismos nacionais e internacionais.
Em respeito aos princípios democráticos, pedimos a todas e a todos que enviem esta carta aos desembargadores do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) Getúlio Corrêa (wgabgco@tjsc.jus.br), Ernani Guetten de Almeida (wgabega@tjsc.jus.br), Leopoldo Augusto Brüggemann (wgablab@tjsc.jus.br) e Júlio César Machado Ferreira de Melo (wgabjcfm@tjsc.jus.br), para que eles promovam um julgamento justo e imparcial a Maristela Cizeski.
Pastoral da Criança
Outubro de 2020