As manifestações de massa ocorridas nos EUA após o assassinato de George Floyd pela polícia, que duraram praticamente um mês, ecoaram pelo mundo inteiro mesmo em tempos de quarentena e chegaram com força ao Brasil. Afinal, a violência estatal contra os negros mantém seus altos índices mesmo no momento do chamado isolamento social. Para comentar o fenômeno e tecer conexões com o contexto brasileiro, o Correio da Cidadania entrevistou o ativista Douglas Belchior, que também destaca o surgimento da Coalizão Negra por Direitos.
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 25-06-2020.
“Assim como no Brasil, muitas vezes a impressão é de que a violência estatal-policial e as injustiças, tão concretas na vida da população negra, assustam mais que a própria doença. Talvez por isso as pessoas tenham tido coragem de encarar o vírus para reagir à violência que nos mata todos os dias. Foi assim nos EUA e também no Rio”, disse Belchior, ao explicar como a onda de protestos ficou tão grande num momento de pandemia.
Ainda sobre a internacionalização do protesto, diz que “a dor negra é global”. Já quando perguntado sobre as diferenças entre os movimentos negros de Brasil e EUA, Belchior preferiu fazer paralelos entre as elites de tais países, o que a seu ver explica melhor as diferenças de patamar entre as conquistas de um e outro, inclusão e exclusão social dos negros e negras em cada sociedade.
“A sociedade norte-americana se desenvolveu de forma que não conseguiu eliminar a participação negra em suas diversas manifestações e atividades. No Brasil, as elites, perversas, canalhas, conseguiram anular e tornar invisível a presença negra na economia, nos meios de comunicação, na política (…) Mas agora isso acabou”, disse, aludindo a um novo momento, inaugurado pela fundação da Coalizão Negra por Direitos.
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Douglas Belchior. (Foto: Arquivo Pessoal)
Eis a entrevista.
Começando pelos Estados Unidos, como explicar a enorme radicalidade dos protestos que a morte de George Floyd desencadeou?
Os protestos desencadeados por este violento assassinato são um grande fenômeno social, que precisa ser saudado por todos os negros e negras do planeta e tomados como exemplo.
Como enxerga as respostas do presidente Trump e da classe política norte-americana, e como coloca o racismo à luz de um país que se apresenta como o “campeão mundial” da democracia?
Os EUA, como o Brasil, são um país estruturalmente racista e sua elite política carrega essa postura. Portanto, a postura do Trump é coerente com sua própria história e a história dos EUA. Considero que a postura das elites estadunidenses – insensíveis e racistas – encontra coerência com a truculência e frieza do tratamento do Estado ao se deparar ou promover a morte de pessoas negras.
E como colocar isso ao lado da questão do isolamento social, considerando que a violência policial não é uma novidade?
Assim como no Brasil, muitas vezes a impressão é de que a violência estatal-policial e as injustiças, tão concretas na vida da população negra, assustam mais que a própria doença. Talvez por isso as pessoas tenham tido coragem de encarar o vírus para reagir à violência que nos mata todos os dias.
Foi assim nos EUA e também no Rio, com comunidades faveladas que se manifestaram nas ruas recentemente por conta de mais alguns crimes do Estado brasileiro contra elas. O vírus é letal, perigoso, afeta drasticamente a população negra, sabemos. Mas não chega na sua casa invadindo tudo com homens de dois metros de altura munidos de fuzil, atirando 80 vezes na parede da sua sala e assassinando você ou seu filho à queima roupa.
A presença policial na concretude da vida assusta muito e, frequentemente, a única saída é ocupar as ruas, agir, lutar. Os que fazem isso agora devem ser saudados.
Por que o protesto se tornou global, o que o liga aos demais povos que foram às ruas se solidarizar?
Porque a violência é global. A dor do corpo negro é global. O racismo e sua violência, o genocídio negro, são globais. À medida que ocorrem manifestações no centro do mundo e elas são divulgadas amplamente, seguidas de solidariedade e comoção, o impacto percorre o mundo inteiro, através das pessoas que sofrem os mesmos problemas.
Os negros brasileiros assistem sua TV e pensam: “caramba, também temos motivos pra protestar”. Se entre os brancos há uma cegueira em relação às dores que os negros sofrem aqui, hipocritamente se manifestando apenas em relação às dores de fora, distantes, os negros, por sua vez, vão se identificar radicalmente com a população negra norte-americana.
Existem grandes diferenças entre o movimento negro dos EUA e do Brasil? Que nuances você comentaria a este respeito para que o leitor possa compreender mais cada atuação?
Prefiro falar das diferenças entre as elites dos dois países. As elites brasileiras são ainda mais violentas, a mídia brasileira é ainda mais racista, pois sempre invisibilizou todas as ações e reações do movimento negro brasileiro. Há muito mais semelhanças que diferenças neste sentido.
O movimento negro norte-americano é atento às questões raciais, se rebela o tempo todo. Às vezes nas ruas, em momentos pontuais como agora, sempre com muita efervescência. Mas no cotidiano há a presença de pessoas negras ativas na imprensa. Há uma classe média negra que forma opinião. Há uma classe política que conta com a participação negra. Na economia também existe participação ativa dos negros.
Enfim, a sociedade norte-americana se desenvolveu de forma que não conseguiu eliminar a participação negra em suas diversas manifestações e atividades. No Brasil, as elites, perversas, canalhas, conseguiram anular e tornar invisível a presença negra na economia, nos meios de comunicação, na política.
Portanto, prefiro falar das nuances entre tais elites. A brasileira, escravagista, é mais perversa e violenta. Os racistas no Brasil conseguiram durante muito tempo invisibilizar a reação negra, calar nossa elaboração política, calar nossas lideranças e impedir a formação de grandes lideranças políticas, durante muitos anos.
Isso acabou. A Coalizão Negra é expressão do final de um momento e começo de outro, em que a população negra organizada, autônoma, independente, vai falar por sua própria voz, seu próprio nome, com suas elaborações, propostas e soluções para os problemas sociais.
A grande diferença, portanto, está na canalhice e perversidade dessas duas elites.
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