Proposta do governo reduz ainda mais fatia do SUS no bolo das verbas da União. Recursos para investimento caem de R$ 9,2 para R$ 2,1 em nove anos. Carlos Lula, presidente do Conass, abre no Cebes luta para acabar com o sufoco
OUTRASAÚDE
Flávio Dieguez
Publicado 22/11/2021 às 07:00
O cenário está armado há tempos e os contendores devidamente mobilizados, prenunciando a tensão crescente. De um lado, as necessidades de financiamento e sustentabilidade financeira do sistema de saúde pública no Brasil; de outro, a persistência de subfinanciamento e mesmo desfinanciamento, por parte do governo. Esse conflito foi posto em números claros, este mês, em uma análise de especialistas vinculados ao Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps).
Embora atuem numa instituição de inspiração liberal, pouco afeita à expansão de despesas públicas, os autores não acham realista a proposta de dotação que o governo fez para a Saúde no Projeto de Lei Orçamentária para o ano de 2022. “Projeções indicam que o financiamento demandará cada vez mais recursos”, pontuam, “não apenas em termos absolutos, mas como proporção do PIB”. Em consequência disso, e dos números da proposta, concluem: “o aumento das restrições para a expansão do gasto federal força um debate quanto à priorização do tema em detrimento a outros”. Caímos na velha metáfora do cobertor curto demais.
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As despesas com a saúde, afirmam os autores do estudo, caíram à menor participação no orçamento dos últimos 10 anos: 3,19%, comparados a 4,42% em 2013 [figura acima]. O valor total das despesas, R$ 147,4 bilhões, corrigido pela inflação, simplesmente não avança em relação à proposta de 2012 [figura abaixo]. Cresce de maneira insignificante e é de fato 5% menor que o de 2019. Mais grave é a baixa e decrescente capacidade de investimento do ministério da Saúde, essencial para a expansão do sistema.
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Com exceção do quadriênio 2010-2013, observa a análise, os valores de investimento estão em queda ininterrupta. Entre 2013 e 2022 houve uma redução de 77% na dotação: de R$ 9,2 para R$ 2,1 bilhões [figura abaixo]. Desde o início do ano, a preocupação com o orçamento da Saúde vem sendo manifestada por diversos órgãos importantes. Ainda em janeiro, uma nota de alerta foi publicada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (Conasems).
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Em outubro, o presidente do Conass, Carlos Lula voltou ao tema. Comentou o subfinanciamento do SUS no Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), dizendo com todas as letras que “o Brasil precisa de mais dinheiro para a Saúde”. Para se ter ideia do tamanho do problema é preciso ver que o orçamento desse ano já foi minúsculo, e ainda mais caso se considerem os gastos com a pandemia – que em princípio deveriam caber no orçamento nacional. Mas nem de longe. Foi preciso criar um gigantesco orçamento extraordinário, com despesas de R$ 27,7 bilhões, para enfrentar a covid-19.
São recursos que montam a quase 20% do orçamento da Saúde, e que estarão fora das despesas previstas para 2022. Mais R$ 6,9 bilhões foram gastos em 2021 com a compra de vacinas, e em 2022, o valor proposto é de R$ 3,9 bilhões. Parece claro que a disputa pelo orçamento – num país em que as demandas sociais em geral são imensas – vai ser impossível de equacionar sem um questionamento sério da Emenda Constitucional 95, criadora do “teto de gastos”, que limita as despesas em um nível inviável.
fonte: https://outraspalavras.net/outrasaude/os-numeros-e-graficos-da-batalha-pelo-orcamento-da-saude/
O SUS diante da sua “janela histórica”
Nelson Rodrigues dos Santos, um dos líderes da Reforma Sanitária, inaugura seção de artigos de Outra Saúde e sugere quatro rumos para defesa e ampliação da Saúde Pública, após a pandemia. Para ele, é hora de “otimismo da vontade”
OUTRASAÚDE
Flávio Dieguez
Publicado 17/11/2021 às 09:53
Protagonista destacado da Saúde Pública brasileira e da construção do SUS, o epidemiologista Nelson Rodrigues dos Santos parece disposto, em tempos árduos, a continuar apontando caminhos na luta por esta causa. Outra Saúde publica hoje um texto cristalino, embora denso, em que ele vê uma “janela histórica” de oportunidade para retomar o projeto da Reforma Sanitária. O artigo foi publicado inicialmente pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, em 4 de outubro. Professor da Unicamp e conselheiro do Idisa – Instituto de Direito sanitário aplicado – “Nelsão” aponta o enorme atraso do Estado brasileiro na implantação de políticas igualitárias de Saúde, nas últimas três décadas. Lamenta o avanço, no mesmo período, da medicina como atividade voltada para o lucro. Mas enxerga, no novo prestígio alcançado pelo SUS durante a pandemia, a potência necessária para uma nova onda de mobilizações sociais. E propõe quatro objetivos centrais que ela deveria perseguir.
O pesquisador aponta, no artigo, os entraves persistentes à efetivação do modelo de saúde constitucional, proposto pela Reforma. Seus argumentos são muito convincentes – mas não impedem a conclusão surpreendentemente positiva – que ele emoldura no conhecido dístico do filósofo italiano Antônio Gramsci: “Pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade”. É fato que estamos imersos, especialmente no Brasil, em profundo retrocesso civilizatório. Mas em grande número de países, parece haver avanços.Artigo: “A conjuntura pandêmica e o SUS”Subsídio ao resgate e atualização do SUS constitucional (A luta continua)SEM CATEGORIA | por Nelson Rodrigues dos Santos
Além disso, escreve Santos, a despeito da atual situação brasileira, “vale lembrar outros momentos históricos, como nos anos 1980 em nosso país, quando foi realizado, com crescente e grandiosa participação social, amplo debate rumo a um projeto de sociedade e nação, inverso ao projeto da ditadura que se extinguia”. De lá para cá, ao longo de 33 anos, não foi possível estabelecer um nível adequado de financiamento do SUS. A esfera executiva federal desconsiderou a recomendação constitucional de destinar para o sistema 30% do orçamento da seguridade social e negligenciou, desde então, oito oportunidades, ao menos, de corrigir essa deficiência.
Em vez disso, de fato, inverteu as prioridades constitucionais: deixou de gastar na capacidade do sistema público enquanto financiava – por exemplo por meio de isenções tributárias – o setor de seguros e planos privados, apenas incipiente no final dos anos 1980. No entanto, a experiência adquirida nesses anos não foi pequena, e compensou os impasses da esfera federal. Como diz Santos: “[…] a experiência acumulada da gestão descentralizada (estadual e municipal), contra-hegemônica mas junto a entidades da sociedade, academia, poder Legislativo e outras, vem compensando parcialmente o grande vácuo imposto pela esfera federal e sua influência na opinião pública”.
Notavelmente, Santos contabiliza muito positivamente o esforço feito pelo SUS no enfrentamento da pandemia, o que o tirou da invisibilidade e mostrou sua necessidade e valor às camadas da população que usualmente têm preferência pela saúde privada. Diante disso, e da conjuntura global, torna-se plausível esperar que se firmem pactos sociais mais avançados, inclusive no Brasil. A dinâmica nacional também abre espaço para avanço na democratização e em pactos federados, e para movimentos para a construção de uma “social democracia brasileira”.
É nesses termos que o pioneiro do SUS conclui seus argumentos apontando para uma “janela histórica”: “reabrindo para mobilizações sociais, democratização do Estado [e] resgate do SUS constitucional”. Ele diz esperar quatro desdobramentos que, no estreito espaço desta nota se poderia resumir assim: elevação dos investimentos federais nos serviços públicos em todos os níveis; modernização da gestão pública em todos os níveis, visando cumprir o direito constitucional da universalidade, equidade e integralidade; regulação dos serviços privados complementares do SUS – “como se públicos fossem”; e reformulação dos planos e seguros privados, de modo a substituir seu financiamento público pelos procedimentos normais de mercado. O artigo, na íntegra, pode ser lido aqui.
fonte: https://outraspalavras.net/outrasaude/o-sus-diante-da-sua-janela-historica/