Investigação rastreou US$ 2,3 bi do BNDES concedidos a grupos que adquirem gado de fazendas envolvidas com desmatamento e trabalho escravo. Itaú, Bradesco e BB, na ponta dos empréstimos, repassam dinheiro sem certificar conformidades
OUTRASMÍDIAS
por Repórter Brasil
Publicado 21/10/2021 às 14:16
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Por Naira Hofmeister, Fernanda Wenzel e Pedro Papini, na Repórter Brasil
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está financiando frigoríficos que abatem animais criados em fazendas desmatadas ilegalmente, embargadas pelo Ibama, sobrepostas a unidades de conservação ou terras indígenas e que utilizam mão de obra escrava em suas atividades. É o que revela um levantamento exclusivo da Repórter Brasil, que analisou empréstimos no valor total de R$ 46 milhões feitos a 25 pequenos abatedouros localizados na Amazônia, onde 90% de toda a mata derrubada vira pasto para boi.
Desde 2009, o banco possui uma norma interna que veta empréstimos a empresas fabricantes de carne que tenham entre seus fornecedores fazendas com irregularidades socioambientais. Mas o dispositivo que determina que contratos sejam rompidos em caso de descumprimento não foi acionado nas situações encontradas pela reportagem.
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“Para obterem apoio do BNDES, os frigoríficos só poderão comprar gado de fornecedores que não constem na relação de áreas embargadas do Ibama. Além disso, não poderão constar da “lista suja” do Ministério do Trabalho”, explicou uma nota à imprensa publicada no site do banco em julho de 2009.
Apesar disso, nos anos de 2012, 2016 e 2017, os frigoríficos Masterboi, São Franscisco, Ribeiro Soares, Fortefrigo, Mercúrio (Pará) e Carnes Boi Branco (Mato Grosso), todos apoiados pelo BNDES, abateram pelo menos 11.513 bois provenientes de fazendas embargadas pelo Ibama e 1.479 animais criados em propriedades que integram a “lista suja” do trabalho escravo no Brasil. Um total de 25.158 cabeças de gado vieram de áreas que não tinham sequer licença ambiental para operar, outra conduta vetada pela resolução 1854/2009.
As irregularidades foram constatadas pelo Ministério Público Federal (MPF) em auditorias feitas nas compras dos frigoríficos tanto em investigações próprias (no caso do Boi Branco) como em decorrência dos Termos de Ajustamento de Conduta (os chamados TACs da Carne) que checam a conformidade socioambiental das operações. Em todos os casos, os abates ilegais vieram a público depois de o BNDES assinar os contratos com as empresas, que, pela resolução 1854/2009, são obrigadas a entregar declarações dizendo que não compram de produtores irregulares. Informações falsas devem ser punidas “com vencimento antecipado do contrato, sem prejuízo das sanções legais cabíveis”.
No caso do frigorífico Masterboi, os contratos somavam R$ 10,5 milhões no momento em que os problemas com fornecedores foram revelados; Mercúrio e Ribeiro Soares, tinham empréstimos de R$ 4 milhões cada; Fortefrigo mantinha financiamento de R$ 1 milhão; e São Francisco (Sampaio), de R$ 100 mil. O contrato do Carnes Boi Branco, no valor de R$ 72 mil, foi assinado um mês antes de a empresa ser processada pelo MPF por abates ilegais em suas plantas.
O Portal da Transparência do BNDES demonstra que parte desses financiamentos seguem ativos — o que indica que a penalidade prevista pela resolução 1854/2009 não foi aplicada.
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Após a publicação da reportagem, o BNDES informou, em nota, que “reuniu um grupo técnico interno para analisar os casos citados” e que, se comprovadas as irregularidades, adotará “as medidas contratuais cabíveis”. Originalmente, o banco não havia se manifestado, apesar da insistência da reportagem. A Masterboi também enviou nota apenas depois de a matéria ir ao ar, assegurando que cumpre seus compromissos socioambientais e que as irregularidades apontadas foram problemas pontuais. A mesma justificativa foi dada pelos frigoríficos Mercúrio, Ribeiro Soares e Carnes Boi Branco. Leia aqui a íntegra dos posicionamentos.
Fortefrigo e São Francisco (Sampaio) não se manifestaram, apesar da insistência da Repórter Brasil. O Grupo Boi Branco, do Pará, entrou em contato com a reportagem para esclarecer que não tem relação com o frigorífico Carnes Boi Branco, do Mato Grosso, investigado neste trabalho.
Os dados utilizados nesta reportagem foram obtidos pela coalizão Florestas e Finanças, que monitora o apoio de bancos e instituições de crédito a atividades potencialmente desmatadoras. O grupo rastreou um total de US$ 2,3 bilhões em financiamentos do BNDES destinados à pecuária no Brasil que colocam em risco o meio ambiente.
No início de outubro, a divulgação de uma nova rodada de auditorias do MPF no Pará — que analisou as compras de janeiro de 2018 a junho de 2019 — mostrou que, sem punição, as irregularidades seguem acontecendo. Entre as 16 empresas avaliadas, os frigoríficos Fortefrigo e São Francisco (Sampaio) ficaram no quarto e quinto lugares no ranking de inconformidades, com 18,7% e 15,2% das compras com algum problema socioambiental, respectivamente. A JBS, maior produtora mundial de proteína animal, lidera a lista de infrações, com problemas em 32% de seus abates. Por outro lado, Masterboi e Mercúrio obtiveram 100% de seus abates considerados regulares pelo MPF.
Itaú, BB e Bradesco deveriam fiscalizar
Os empréstimos concedidos aos frigoríficos com irregularidades foram intermediados por instituições financeiras parceiras do BNDES: Itaú Unibanco, Banco do Brasil e Bradesco. Segundo a resolução 1854/2009, nesta modalidade de financiamento — chamada indireta automática — são os intermediários que devem “exigir declarações” das empresas garantindo que possuem um sistema de monitoramento de seus fornecedores de gado e que eles seguem os padrões exigidos pelo banco de desenvolvimento. Mas, nas auditorias e investigações do MPF, ficou evidente que o controle é falho.
Entre os vários empréstimos do BNDES obtidos pelo Masterboi por meio do Itaú Unibanco, pelo menos um se manteve ativo após a constatação dos problemas. O abatedouro Ribeiro Soares mantém até hoje dois contratos via Banco do Brasil, mesmo após ter sido flagrado em irregularidades. Ambas as instituições disseram que não comentam casos específicos em respeito ao sigilo empresarial, mas listaram métodos de checagem da conformidade socioambiental que adotam antes da concessão de empréstimos. Os esclarecimentos podem ser lidos na íntegra neste link.
Já o Bradesco mantém em sua carteira sete empréstimos com recursos do BNDES ao Mercúrio e um ao frigorífico São Francisco (Sampaio), apesar da constatação das inconformidades ambientais. Também foi o Bradesco quem intermediou o contrato com o Carnes Boi Branco, cujo vencimento estava previsto para 2018. Procurado, o banco disse que não iria comentar.
“Itaú Unibanco e Bradesco fazem parte do grupo dos três maiores bancos privados do Brasil que assinaram um pacto para promover o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Se espera que estejam alinhados às diretrizes de empréstimos para a pecuária”, observa Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
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Risco ignorado
Os 25 pequenos frigoríficos investigados pela Repórter Brasil foram selecionados por colocarem em risco 8 milhões de hectares da Amazônia. O cálculo, publicado em um estudo do Imazon de 2017, considera que entre seus potenciais fornecedores há muitas fazendas em áreas desmatadas, com embargo já declarado pelo Ibama, ou cujas condições do entorno sinalizam que a devastação está próxima.
É uma área do tamanho da Áustria e mais do que o dobro da área ameaçada pelas atividades da JBS, a maior fabricante de carne do planeta e líder do ranking de exposição a desmatamento calculado pelo instituto de pesquisa.
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Daí a importância de monitorar os fornecedores. “A pecuária ilegal é a maior responsável pelo desmatamento na Amazônia. Se não houver controle da origem da matéria-prima, há grande risco de violação da legislação socioambiental”, recorda o procurador da República Ricardo Negrini, que atua no Pará, onde foram assinados os primeiros TACs da Carne, em 2009.
Embora o BNDES exija que os frigoríficos tenham sistemas de monitoramento para checar a origem dos animais abatidos, 10 empresas que receberam um total de R$ 13,2 milhões não assinaram o TAC da Carne com o MPF. Segundo o pesquisador do Imazon, esse é um forte indicativo de que esses abatedouros não possuem tais sistemas. “Em geral, quem não assina o TAC, não monitora rebanhos”, observa.
Mesmo as maiores indústrias da carne do Brasil, JBS, Marfrig e Minerva, só desenvolveram seus sistemas após a assinatura do acordo. Corroborando essa desconfiança, o MPF pediu ao Ibama que apertasse a fiscalização em 7 dos 10 frigoríficos sem TAC apoiados pelo BNDES.
“As empresas deveriam demonstrar um nível de compliance e de organização mínimos para que houvesse segurança da instituição financeira em conceder esse crédito. São frigoríficos que estão assumindo bastante risco ambiental, mas não se comprometem com acordos setoriais e mesmo assim conseguem recursos públicos”, lamenta Lisandro Inakake, que coordena o projeto Boi na Linha, da ONG Imaflora, uma ferramenta que busca maior transparência no processo de compra de gado para que o consumidor possa verificar a origem de suas compras.
Desmatamento sem embargo
Mesmo que o dispositivo de vencimento antecipado dos contratos com frigoríficos que compram de áreas ilegais funcionasse, boa parte dos problemas não seria enquadrada pela resolução 1854/2009.
Segundo as auditorias do MPF, os frigoríficos Masterboi, Mercúrio, São Francisco (Sampaio), Ribeiro Soares e Fortefrigo compraram 5.441 cabeças de gado criadas em terras indígenas e 62.845 animais em fazendas desmatadas ilegalmente. Mas para o BNDES, esses fornecedores só devem ser excluídos da cadeia produtiva se tiverem condenação em todas as instâncias judiciais por esses crimes.
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Financiamentos do BNDES feitos através de bancos comerciais, como os analisados nesta reportagem, também fecham os olhos para as possíveis irregularidades dos fornecedores indiretos — aqueles que vendem animais para as fazendas que vão negociar com as empresas.
Por isso, as multas de quase R$ 2 milhões impostas pelo Ibama ao Mercúrio pela compra de 3.767 bois de fazendas embargadas não seriam motivo suficiente para ensejar uma punição por parte do banco, já que os animais entraram na linha de produção do frigorífico através de fornecedores indiretos. Também passou em branco o fato de que a empresa tinha entre seus fornecedores indiretos pecuaristas que criavam gado na Terra Indigena Apyterewa, no Pará, e fazendeiros que se utilizavam de mão de obra escrava, como revelou a Repórter Brasil em 2020 e 2021.
A resolução 1854/2009 determina que esse elo da cadeia de fornecimento só deve ser monitorado quando os empréstimos são assinados diretamente com o BNDES ou quando o banco de desenvolvimento se torna sócio das empresas, como acontece com a JBS. Mesmo essa parte da regra, no entanto, nunca saiu do papel.
“É preciso que as políticas de sustentabilidade não fiquem só no papel, mas que sejam realmente aplicadas, com transparência e prestação de contas à sociedade”, conclui o procurador Ricardo Negrini.
fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/os-bancos-que-abencoam-a-pecuaria-ilegal/
Os beneficiários do desmatamento
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Por ENCO (European Network of Corporate Observatories)
Como as empresas e bancos europeus participam na destruição das florestas e savanas do Brasil
A dependência do Brasil da exportação de matérias-primas é a principal causa do nível sem precedentes de desmatamento e hiperexploração da natureza nos dois ecossistemas mais ricos do Brasil: a Amazônia e o Cerrado. A Amazônia é um ecossistema chave para a saúde ambiental do planeta, uma vez que influencia o clima por seu papel de sumidouro e de retentora de carbono. O Cerrado é a savana mais rica do mundo. E grandes empresas e instituições financeiras europeias desempenham um papel importante neste contexto.
Para além de sua extrema abundância em fauna e flora, água e biodiversidade, as regiões da Amazônia e do Cerrado são o habitat de muitas comunidades tradicionais (povos indígenas, pequenos agricultores, comunidades de quebradeiras de coco babaçu, comunidades afrodescendentes) que vivem há séculos em coexistência com a economia local e com a sustentabilidade dos recursos naturais. Vastas áreas desses ecossistemas estão ameaçadas por uma série de interesses econômicos: o avanço da agroindústria baseada na pecuária, grandes monoculturas de soja, carne e madeira; e atividades mineiras e madeireiras ligadas à indústria de matérias-primas.
Incêndios, conflitos pela apropriação de terras, ataques aos povos indígenas
Em 2019, incêndios generalizados devastaram enormes porções de florestas tropicais amazônicas, a maioria deles como consequência da prática de abertura de áreas de pastagem para o gado. O número de focos de incêndio identificados na região amazônica em agosto de 2019 foi o mais elevado desde 2010, e o dobro do número registrado no mesmo período do ano anterior. Na região do Cerrado, grandes extensões de vegetação em terras indígenas foram convertidas em zonas de pastagem e produção agrícola. De acordo com uma estimativa, cerca de 80% da vegetação original do Cerrado foi modificada pela expansão da agroindústria.
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Região de origem e país de destino da soja com potencial de desmatamento. Estimativas de médias anuais entre 2009 e 2017 (Trase, 2020).
Atualmente, as regiões da Amazônia e do Cerrado são territórios de conflito político, econômico e ambiental. Estes enfrentamentos não se devem apenas à concorrência interna entre os setores econômicos que exploram soja, milho, carne, couro, madeira, cana-de-açúcar, algodão e recursos minerais. Também estão relacionados a conflitos entre grandes e médias empresas agrícolas – apoiadas pelo governo de Jair Bolsonaro – e os povos da floresta.
As agressões, expulsões e deslocamentos de comunidades tradicionais continuaram aumentando sob o governo Bolsonaro. A pandemia acrescentou um novo desafio, uma vez que os organismos estatais responsáveis por garantir o respeito aos direitos foram também restringidos, facilitando as violações dos direitos de várias comunidades nas regiões do Mato Grosso, Pará, Rondônia e Maranhão. O povo indígena Xavante no Mato Grosso, por exemplo, sofreu mais agressões durante o período de pandemia. Além disso, as comunidades camponesas de Balsas, no estado do Maranhão, como a comunidade do Bom Acerto, sofreram deslocamentos forçados em agosto de 2020[i].
Qual é o papel das empresas europeias?
A luta contra o desmatamento ilegal visa as empresas envolvidas na cadeia de produção de matérias-primas, incluindo instituições financeiras e outras empresas multinacionais que fazem parte do processo de suprimento. Em 2016, por exemplo, o Banco Santander (um banco espanhol) foi multado em 15 milhões de dólares por fornecer apoio financeiro a plantações em áreas ilegalmente desmatadas. As principais empresas de comércio de cereais, incluindo Cargill e Bunge (Estados Unidos), foram multadas num total de 29 milhões de dólares após uma investigação do Ibama ter revelado que cerca de 3.000 toneladas de cereais produzidos por cinco casas de comércio tinham sido colhidas em áreas proibidas para a agricultura.
Além do apoio financeiro, as empresas europeias operam diretamente nas regiões da Amazônia e do Cerrado e algumas são acusadas de violações de direitos. Empresas mineiras presentes no estado do Pará (como a francesa Imerys e a norueguesa Norsk Hydro) e grupos do setor de infraestrutura (privados e estatais), que gerem concessões de transmissão e distribuição de energia, foram acusadas de gerar impactos negativos nos territórios. Segundo organizações da sociedade civil, a presença destas empresas multinacionais contribuiu para aumentar a tensão no território contra os direitos das comunidades locais.
Os Países Baixos e a Espanha são os principais destinos europeus para a soja relacionada ao desmatamento
De todas as matérias-primas que apresentam um risco ambiental, a soja é a mais comercializada nos mercados internacionais. Em 2016, três países da América do Sul (Brasil, Argentina e Paraguai) representaram 50% da produção mundial de soja, o que corresponde a uma área de cerca de 56 milhões de hectares. Três culturas – soja, cana-de-açúcar e milho – ocupam 70% da superfície agrícola brasileira, correspondendo a mais de 60% do valor total da produção agrícola do país. A produção de soja no Brasil aumentou 400% em 25 anos.
As culturas de soja foram inicialmente plantadas nas regiões do sul do país, que são mais adequadas para esta produção. Após os anos 1970, empresas como a Syngenta (Suíça) e a Pioneer (Estados Unidos) investiram em sementes transgênicas adaptadas ao ecossistema do Cerrado com o apoio do governo brasileiro. Com o domínio “bem sucedido” das savanas, a expansão do agronegócio avançou para a região amazônica depois dos anos 2000.
Segundo os números da base de dados Trase, os Países Baixos e a Espanha são os principais destinos europeus da soja ligada ao desmatamento. Em seguida, a França e a Alemanha. Estudos recentes estimam que cerca de dois milhões de toneladas de soja plantada ilegalmente a cada ano chegaram ao mercado europeu nos últimos anos, das quais 500.000 toneladas foram produzidas na região amazônica. Quase a metade das propriedades rurais na Amazônia e terras agrícolas na região do Cerrado, que fornecem soja e carne bovina para exportação, não cumpre os limites de desmatamento estabelecidos pelo código florestal.
A cadeia de produção da soja brasileira é dominada por cinco grandes empresas comerciais mundiais: ADM, Bunge, Cargill, Louis Dreyfus e COFCO. Dentre os dez primeiros países de destino das exportações de soja da Amazônia e do Cerrado, estão os Países Baixos (36%), Espanha (21%), Alemanha (10%) e França (10%).
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Risco estimado de desmatamento dentre os comerciantes de soja (2020, em hectares).
Os comerciantes de soja são diretamente apoiados por muitas instituições financeiras que são ligadas a eles através de fundos próprios (principalmente participações e propriedades privadas) e de dívidas (tais como obrigações, empréstimos e facilidades de renovação de créditos).
A União Europeia é o segundo maior comprador de carne brasileira, depois da China
Com 214 milhões de cabeças de gado em 2021, o Brasil tem mais vacas do que habitantes. Este número continua aumentando, principalmente na Amazônia e no Cerrado. Em 2019, o Brasil exportou 1,84 milhão de toneladas de carne bovina. Isto faz dele o maior exportador mundial, de acordo com a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec). Ao contrário da cadeia de produção da soja, o setor da carne é gerido por grandes empresas nacionais, financiadas por capitais nacionais e estrangeiros. A União Europeia, com a compra em 2017 de mais de 180.000 toneladas de carne brasileira, é o segundo maior comprador de carne brasileira, depois da China.
A política de exportação tem sido fortemente encorajada pelo governo brasileiro através da criação, em 2008, de um programa de apoio aos “campeões nacionais”. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) forneceu uma série de subsídios para estimular algumas empresas em setores específicos, como o processamento de carne, e incentivar seu crescimento. Estes subsídios ajudaram as empresas brasileiras de processamento de carne, por exemplo, a JBS e a Marfrig, a desenvolver-se. A Marfrig tornou-se o terceiro maior produtor de carne do mundo. A JBS é o maior produtor mundial de carne e uma das dez maiores empresas agroindustriais do planeta. Na qualidade de exportadora, a JBS é abastecida por cerca de 1.324 municípios, ou 47% dos municípios brasileiros produtores de carne bovina em 2017. Além disso, a BRF, uma empresa de processamento de aves, tornou-se um dos maiores exportadores mundiais destes produtos, com duas fábricas de processamento na Europa (Países Baixos e Inglaterra) e nove na Argentina.
No entanto, o crescimento destas multinacionais não tem ocorrido sem um preço elevado: o aumento massivo da destruição dos biomas da Amazônia e do Cerrado, mas também as condições deploráveis de trabalho a que são submetidos seus empregados.
As condições terríveis na cadeia de produção de carne, tanto para o gado como para os humanos que aí trabalham, não são novas. Na cadeia da soja, a situação é similar: juntamente com condições de trabalho degradantes, trabalho forçado e apropriação de terras, o Brasil é capaz de fazer pressão sobre os custos de produção e exportar a preços baixos, produzindo a carne mais barata do mundo na Amazônia.
A cadeia da carne: BNP, Carrefour, Nestlé e muitos outros
Minerva, uma das três grandes embaladoras de carne do Brasil, obtém pelo menos um terço de suas receitas brutas das exportações brasileiras de carne bovina, ligadas a 10.900 hectares em situação de risco de desmatamento devido à expansão das pastagens de gado em 2017. Os acionistas da Minerva são em grande parte investidores mundiais que atualmente não têm qualquer compromisso em matéria de desmatamento, tais como a Morgan Stanley (4,94% do capital), Vanguard (2,21%) e BlackRock (0,4%), bem como instituições financeiras que reconheceram publicamente o risco de desmatamento como um problema, incluindo o BNP Paribas (2,26%).
Além disso, JBS, Marfrig e Minerva receberam mais de nove bilhões de reais (1,5 bilhão de euros no câmbio atual) em investimentos e empréstimos de bancos europeus e não europeus que assinaram acordos ambientais, incluindo Deutsche Bank, Santander, BNP Paribas e HSBC. Infelizmente, a falta de leis na Europa sobre o assunto “significa que bancos, investidores, agências de classificação de risco, importadores e supermercados não são legalmente obrigados a efetuar o devido controle sobre o risco de desmatamento antes de fazer negócios com empresas do setor de carne bovina”, lamentou a ONG Global Witness num relatório de dezembro de 2020 sobre o assunto.
Em 2014, governos, sociedade civil e empresas privadas aprovaram a Declaração de Nova Iorque sobre as Florestas, que visava reduzir o desmatamento mundial até 2020. Os estados brasileiros do Pará, Amazonas e Acre estão entre os signatários brasileiros, enquanto que o Deutsche Bank e a Nestlé estão entre os signatários europeus. Contudo, o Grupo Nestlé, e também o Carrefour, ainda não deixaram de comprar carne da JBS e da Marfrig, de acordo com a Mighty Earth.
Fundos de investimento alemães, holandeses e suecos envolvidos
Devido à exploração financeira da terra, o preço das terras agrícolas brasileiras, especialmente no Cerrado, tem aumentado exponencialmente. Os investidores institucionais, tais como fundos de pensão e de participações privadas, empresas imobiliárias e agronegócio, estão seguindo um modelo de negócio que valoriza a terra através da aquisição e limpeza de áreas de vegetação nativa para a agricultura, em vez de basear seus rendimentos na produção de mercadorias.
Nos últimos quinze anos, foram criadas numerosas empresas fundiárias, inteiramente centradas na aquisição, venda, arrendamento e gestão de terrenos agrícolas nestas regiões. No Cerrado, grandes áreas de terras nativas oficialmente pertencentes ao Estado estão sendo ilegalmente privatizadas. Este processo conduz geralmente à expulsão violenta dos habitantes (muitos dos quais são das comunidades tradicionais ou de populações rurais empobrecidas), bem como a uma limpeza extensiva ou desmatamento. Mais recentemente, estas áreas agrícolas foram vendidas a empresas agroindustriais ou empresas fundiárias, que podem alugar ou vender a terra.
Três fundos de investimento europeus contribuem para o funcionamento de empresas fundiárias na região do Cerrado: o fundo de pensão alemão Ärzteversorgung Westfalen-Lippe; o holandês Algemeen Burgerlijk Pensioenfonds (ABP) e o sueco Andra AP-fonden (AP2). Estes fundos de pensão investem em fundos de investimento geridos pela Teachers Insurance and Annuity Association of America (TIAA), um fundo de pensão privado sem fins lucrativos atualmente considerado o maior investidor em terrenos agrícolas e o terceiro maior gestor mundial de bens imobiliários comerciais. Atualmente detém 2 bilhões de dólares em ativos no Brasil.
A maior parte das terras agrícolas de propriedade estrangeira na região do Cerrado é financiada por intermédio da TIAA. O fundo também está presente no mercado de terrenos agrícolas através de empresas como a Radar Propriedades Agrícolas (uma joint venture entre uma empresa brasileira, Cosan, e a Mansilla Participações, uma empresa totalmente detida pela TIAA) e a Tellus Brasil Participações, uma subsidiária nacional centrada na aquisição de terras, na qual a TIAA tem uma participação significativa (49%). Uma rede complexa de empresas foi criada pela TIAA para comprar e investir em terras agrícolas escapando das restrições legais impostas pelas leis nacionais sobre a propriedade fundiária de estrangeiras. No meio de tudo isto, a responsabilidade das empresas e instituições financeiras europeias tende a tornar-se invisível. Entretanto, não desaparece.
*ENCO (European Network of Corporate Observatories) é uma rede de organizações públicas e midiáticas dedicadas à investigações acerca do poder as grandes corporações.
Tradução: Fernando Lima das Neves
Nota
[i] Ver o portal de notícias Agência Pública.
fonte: https://aterraeredonda.com.br/os-beneficiarios-do-desmatamento/