Insegurança alimentar explodiu no mesmo ano em que apenas 42 rentistas enriqueceram R$ 176 bilhões. Sugam a riqueza social e não pagam impostos. Campanha propõe taxá-los duramente, primeiro passo para reverter crise humanitária
Em meio ao caos pandêmico e uma gestão desastrosa das crises sanitária e econômica, com mais de quatro mil mortes diárias pela covid-19, choca a notícia de que 11 novos brasileiros foram incluídos na lista de bilionários da Forbes. O ranking global dos bilionários de 2021, divulgado pela revista no dia 6 de abril inclui 30 brasileiros, sendo 11 novatos compondo este seleto grupo. No mesmo dia também foi notícia que metade da população do Brasil não tem garantia de comida na mesa.
É chocante, mas tínhamos sinais desse abismo. No ano passado, em plena pandemia, 42 bilionários brasileiros acumularam mais R$ 176 bilhões às suas fortunas, valor superior ao orçamento da saúde em 2020! Outra comparação mostra que estes bilionários lucraram mais que o valor do auxílio emergencial do ano passado.
Além de mitigar a fome e ajudar famílias mais necessitadas, este auxílio fez com que o PIB não tivesse uma caída ainda mais expressiva do que teve. Este recurso movimentou a economia, pois foi usado no consumo e sobrevivência de milhões de famílias.
Valores injetados na economia geram demanda, venda de produtos e serviços, agregando valor ao país. Bem ao contrário do efeito das fortunas acumuladas, que são improdutivas e estão estocadas, gerando riqueza apenas aos detentores, em valores e cifras que escapam à compreensão da imensa maioria da população. É o chamado capital vadio: vive de juros e especulação, não gera nenhum emprego e nenhum movimento produtivo para a nação.
Além de ser incompreensível do ponto de vista numérico, a acumulação da riqueza é absurda e revoltante quando se constata o aumento da miséria, da fome e da capacidade de sobrevivência desse imenso contingente de pessoas que passam dificuldades. Estima-se 116 milhões de pessoas com insegurança alimentar, 15 milhões de desempregados, cinco milhões de desalentados e mais de 40 milhões no trabalho informal, completamente precarizados.
No período pandêmico, a riqueza de 65 bilionários brasileiros quase dobrou: passou de US$ 127,1 bilhões ano passado para US$ 219,1 bilhões (cerca de R$ 1,2 trilhão). Este dado contrasta fortemente com a insuficiência ou mesmo ausência de renda da maioria da população, com o aumento da fome e da situação de vulnerabilidade. Mas, ao mesmo tempo, nos indica a fonte de obtenção dos recursos para salvar vidas e combater a crise econômica: tributar os super-ricos!
Historicamente subtributadas, as grandes fortunas se acumulam cada vez mais. Estudo publicado pelo Instituto Justiça Fiscal (IJF) mostra que aproximadamente R$ 650 bilhões é o valor que as classes mais ricas deixaram de pagar de imposto, entre 2007 e 2018, por conta da regressividade das alíquotas efetivas sobre as altas rendas.
Neste período de 11 anos, os contribuintes com rendas maiores do que 30 salários-mínimos passaram a pagar cada vez menos impostos, enquanto os contribuintes com rendas mais baixas passaram a pagar mais imposto a cada ano. Em decorrência, os contribuintes mais ricos tiveram também um crescimento muito maior no valor das suas riquezas acumuladas neste período.
A injustiça tributária cavou um abismo ainda maior entre pobres e ricos, mantendo o Brasil na vergonhosa posição de país com a maior concentração de renda do mundo, perdendo apenas para o Catar.
O valor médio do patrimônio daqueles que estão entre os 0,01% da população mais rica do país é 610 vezes maior do que daqueles que ganham até cinco salários mínimos que representam quase 80% da população. A acumulação também se dá pela baixa tributação de heranças e doações, limitada em 8% e 6%, respectivamente, alíquotas muito baixas quando comparadas com outros países.
O Congresso Nacional precisa assumir a liderança neste processo de tributar os super-ricos. Em agosto de 2020, foram apresentadas oito propostas de leis que podem arrecadar cerca de R$ 300 bilhões ao ano, onerando apenas os 0,3% mais ricos do país.
O que significa para estes bilionários terem uma ínfima parte de sua riqueza tributada? Nada! O que vai significar para essas famílias necessitadas? Vida!
Justiça fiscal salva vidas. É disso que estamos falando.
A campanha “Tributar os Super-Ricos”, integrada e apoiada por mais de 70 entidades nacionais, visa a implementar este conjunto de oito medidas para enfrentar a crise econômica, agravada pela pandemia de covid-19, com o aumento dos tributos sobre as altas rendas, grandes patrimônios e redução para as baixas rendas e pequenas empresas. Na fase atual da campanha, as entidades pressionam por sua tramitação no Congresso Nacional.
Essas medidas reduzem a desigualdade, movem a economia e dignificam um país. Medidas que vários países já adotaram ou estão implementando, como Argentina, Bolívia, Chile, Peru, Equador e agora anunciadas nos EUA.
Um dos eixos principais da campanha é corrigir as distorções no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), que livra as rendas do capital. O Brasil é praticamente o único país do mundo onde pessoas que recebem lucros, dividendos e rendimentos de aplicações financeiras são isentas do Imposto de Renda, diferentemente da imensa maioria dos trabalhadores, que são tributados na fonte e fazem o ajuste da declaração. Esta alteração, juntamente com elevação das faixas de alíquotas do IRPF, pode gerar em torno de R$ 160 bilhões.
Taxar grandes fortunas e riquezas é outra alternativa arrecadatória justa e necessária. O Imposto sobre as Grandes Fortunas (IGF) foi previsto na Constituição Federal em 1988, mas ainda não foi regulamentado em lei. Na proposta da campanha, só seriam tributados patrimônios que excederem R$ 10 milhões, abrangendo somente fortunas pessoais, sem afugentar nenhum investimento produtivo. Atingiria apenas 59 mil pessoas, equivalendo a 0,028% da população, arrecadando mais de R$ 40 bilhões por ano, valor equivalente ao total do recurso emergencial previsto para este ano.
Não são valores desprezíveis e são apenas duas medidas, entre as oito da campanha, fundamentais para salvar vidas e diminuir o desastre vivido em nosso país, onde 335 mil pessoas foram vitimadas pela covid-19. São medidas de fácil aprovação por não necessitarem alterar a Constituição Federal. É urgente salvar vidas que estão agora sendo perdidas não apenas pela doença, mas fragilizadas pela fome.
Assim, as entidades participantes do movimento nacional para Tributar os Super-Ricos dirigem-se aos membros do poder Legislativo para que promovam a tramitação dos projetos de lei da campanha. É preciso vontade política, desejo de justiça fiscal e sentido humanitário diante de um flagelo que assusta o mundo e que pode ser revertido com saídas emergenciais que já estão disponíveis no Congresso Nacional.
Como vivem as famílias corroídas com fim dos R$600
Desempregada e sem perspectiva, mãe de quatro filhos se humilha pelo básico. O quilo da carne, trocado por 500 gramas de queijo. O leite, por suco de saquinho. Desnutrição já ameaça 116 milhões; “socorro” só chega a menos da metade
Maria das Graças, 41, sustenta seus quatro filhos com o dinheiro que tira de um salão de beleza que aluga como cabeleireira em Paraisópolis, zona sul de São Paulo. Desde o início da pandemia de covid-19, no entanto, viu sua única fonte de renda desaparecer —não só pelas restrições impostas pela fase emergencial em todo o Estado, mas pelo desemprego que impossibilitou seus clientes de continuarem indo ao salão. Ela sobreviveu em 2020 com as parcelas do auxílio emergencial repassados pelo Governo federal, mas neste segundo ano a ajuda de custo será insuficiente. Mesmo recebendo a parcela mais vantajosa do novo auxílio, Maria não consegue colocar mais do que arroz, feijão e ovo no prato das crianças de 5, 8, 14 e 17 anos. “É doído ver o mais novo acordar com fome e não ter nada em casa. Como ele ainda não entende, fica ainda mais difícil”, relata ela.
Como mãe solteira, a cabeleireira tem direito a quatro parcelas de 375 reais do auxílio, a serem depositadas entre 20 de abril e 8 de agosto. Se a ajuda permitiu o abastecimento da casa durante 2020, a inflação de alimentos básicos dificultou a vida da população mais vulnerável em 2021. O preço médio de uma cesta básica para quatro pessoas, em São Paulo, era de 862,87 reais em abril do ano passado —valor que saltou para 1.014,63 reais em 2021, segundo pesquisa da Fundação Procon-SP em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). “Carne, arroz e óleo são os que mais assustam”, pontua Maria das Graças. Ela conta que precisou abrir mão da carne para conseguir comprar o arroz, substituindo bovinos e frangos pelo ovo, além de trocar o leite de caixinha pelo suco mais barato. “Faz três meses que não compramos carne”, relata ela. “É preocupante porque já estou no limite. Se cortar mais, vamos morrer de fome. A alimentação fica desbalanceada e o auxílio só vai servir para comprar o básico, que não supre”, completa a cabeleireira.
Maria das Graças, moradora de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo
De fato, alimentos de origem animal, cereais (como arroz e feijão), açúcar e óleo estão entre os produtos que tiveram uma inflação ainda maior que a medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que está na casa dos 5,5%. Há um ano, 15 reais eram suficientes para comprar cinco quilos de arroz; agora, o mesmo dinheiro só paga três quilos. Com 23 reais, era possível comprar um quilo de carne de primeira em 2019. Agora, o mesmo valor paga pouco mais de 500 gramas de queijo muçarela. Com um aumento de 53% em seu preço durante 2020, a carne bovina precisou ser trocada na cesta básica pela de frango, cujo quilo do filé está em torno dos nove reais — em abril passado, era menos do que 7,50 reais. Os dados são do Procon-SP e do Dieese.
O professor de economia da Universidade de São Paulo (USP), Heron do Carmo, ressalta que o efeito mais significativo desse aumento é o fato dele recair sobre os produtos mais consumidos pela população mais vulnerável do país. “O problema é que o índice de preço teve um comportamento variado de acordo com o grupo de produtos, e aumentaram justamente os mais consumidos pelos mais pobres”, diz Carmo. Isso, por sua vez, tem um impacto forte na nova rodada do auxílio emergencial, uma vez que o dinheiro repassado aos mais pobres, além de ser menor, vale menos do que no ano passado por conta da inflação. Os 375 reais de Maria das Graças compram menos alimentos do que faziam em 2020. “Com esse aumento brutal de preços, o auxílio vai ter um efeito muito menor no padrão de vida dessas pessoas. Você pode ter problemas de desnutrição calórica nas famílias mais pobres”, constata o economista.
“O dinheiro é muito bem-vindo nessa situação emergencial, e é um avanço entregar o poder aquisitivo à pessoa ao invés da cesta básica”, ressalva Carmo, “mas é preciso melhorar o valor sem cortar o número de beneficiados”. Segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), 116,8 milhões de brasileiros se encontram em situação de insegurança alimentar, número que corresponde a mais da metade da população e não era alcançado há 17 anos. O auxílio de 2021 beneficiará apenas 45,6 milhões de cidadãos. “É a condição de vida afetada pela pandemia, pelo desemprego e pelos preços dos alimentos. Imagina o drama da pessoa passar fome num país que tem plenas condições de prover isso”, completa o economista.
Por que aumentou o preço?
“Duas coisas explicam: o aumento do preço dos alimentos fora do país, o que causa uma entrada maior de dólares no mercado brasileiro, que é um grande exportador; e a desvalorização da moeda nacional, que faz com que o dólar fique mais caro”, justifica o economista Heron do Carmo. “Normalmente, o aumento das exportações faria o dólar ficar mais barato. Porém, questões como as incertezas políticas do país levaram à junção desses dois fatores, que aumentam o preço dos produtos no mercado interno”, completa o especialista.
E, para ele, sair da crise não deverá ser uma missão fácil. A estabilização dos preços passa pela valorização cambial e pela melhora generalizada da economia, que por sua vez depende do fim da pandemia. O economista projeta dois cenários, tendo como base o processo eleitoral que culminará no pleito para presidente no segundo semestre de 2022: caso os presidenciáveis adotem uma postura mais comedida com programas que “acenem para o futuro”, ele prevê uma melhoria na situação econômica do país; caso o clima de polarização dos últimos anos permaneça ou cresça, ele projeta um contínuo aumento na inflação e no dólar. “No meio dessas incertezas, qualquer previsão tem prazo de validade. Mas não descarto, com a instabilidade piorando, que a inflação feche o ano em 8%. Vai depender do bom senso da classe política e, com o início das pesquisas para presidente, dos eleitores”, conclui o professor da USP.
O auxílio emergencial
Além do caso de Maria das Graças, que receberá do novo auxílio emergencial quatro parcelas de 375 reais como mãe solteira que mora com os filhos, famílias com pai e mãe receberão quatro mensalidades de 250 reais, enquanto pessoas que moram sozinhas terão a disposição 150 reais mensais pelo mesmo período. Os prazos são definidos de acordo com a data de nascimento: para nascidos em janeiro e inscritos no Cadastro Único ou via aplicativo e site do programa, os depósitos começaram a ser feitos na terça, dia 6, com saques permitidos a partir de 4 de maio, e terminam no dia 23 de julho. Já para nascidos em dezembro, os últimos da fila, o primeiro depósito cai em 30 de abril, e o último em 22 de agosto —com saque permitido a partir de 10 de setembro. Os depósitos são feitos através da conta poupança digital da Caixa. Por fim, beneficiários do Bolsa Família recebem as quatro parcelas de acordo com o calendário do programa, entre 16 de abril e 30 de julho.
Os valores são menores do que os repassados ao ano passado e ainda beneficiam uma quantidade menor de pessoas, apesar da pandemia estar no seu auge e acumular seguidos recordes diários de óbitos no país. Se o auxílio de 2020 ajudou quase 68 milhões de pessoas, a versão 2021 beneficiará mais de 20 milhões de pessoas a menos —todas aquelas com renda familiar de no máximo três salários mínimos (desde que a renda por pessoa seja inferior a meio salário mínimo) e que tenham sido aprovadas para receber o benefício ano passado, já que não haverá nova fase de inscrições. Maria recebeu mensalmente, entre maio e setembro do ano passado, 1.200 reais, o dobro da média por ser mãe solteira. Entre outubro e dezembro, foram mais três parcelas de 600 reais.
A moradora de Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo, diz que a comunidade tem conseguido mobilizar doações de alimentos para os moradores. “Mas nem todos os que necessitam são contemplados. Acho que os políticos deveriam cortar do salário deles para oferecer um valor digno, sem que a gente precisasse ficar se humilhando para ter comida”, sugere Maria. Na última semana, o governador paulista, João Doria, iniciou um programa que incentiva as pessoas a doarem um quilo de alimento não perecível no ato da vacinação. O alimento será direcionado, segundo o Governo, à parcela mais vulnerável da população no Estado.
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