O voto racial, o eleitor e as candidaturas negras

 

[*] Carlos Trindade

O texto que publicamos dias atrás aqui nesta Coluna Aparte gerou algumas indagações às quais daremos maior atenção de forma a dirimir boa parte das dúvidas observadas, não somente em relação à realidade sergipana, mas do Brasil como um todo.

Não custa ressaltar o ponto de partida desta nossa análise: a constatação de que o racismo estrutural presente na sociedade brasileira e alicerçado na naturalização do supremacismo e identitarismo branco europeu, nos trouxe como consequências as desigualdades raciais, a exclusão social, a pobreza e a violência de grande parte da população, majoritariamente negra.

Trouxe à tona, de outra forma, a invisibilidade desta população negra nos espaços de poder público e privado e o consequente questionamento da democracia brasileira por falta de legitimidade perante os grupos excluídos.

O voto racial, explicitamente ou não, vem influenciando resultados eleitorais desde as primeiras eleições para governadores de Estado após a distensão do regime militar em 1982, quando o mote da campanha de Leonel Brizola do PDT foi a implantação de um socialismo moreno no Rio de Janeiro.

Naquele mesmo ano, João Alves Filho foi o único governador negro eleito por via direta. Somente 10 anos depois, na primeira metade da década de 90, veríamos os negros Albuino Azeredo no Espírito Santo e Alceu Colares, no Rio Grande do Sul, assumirem a cadeira de governador de Estado.

Junto com as temáticas de classe e de gênero, a presença do debate sobre as relações raciais no Brasil nos processos eleitorais evidenciaram o quanto a representatividade dos diversos grupos de interesse nos espaços de poder desfavorecia trabalhadores, mulheres e a população negra e beneficiava homens brancos das classes mais abastadas.

Esta sub-representação, além de ressaltar o peso e a influência do fator econômico na composição de forças dentro do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, deixava à mostra os pontos fracos do arcabouço de sustentação do sistema político brasileiro no intuito que se propunha de acatar as aspirações de toda a cidadania nacional.

A reforma partidária que vinha sendo revisada desde finais da década de 70 e foi consagrada na Constituição de 1988 acaba promovendo alterações na relação entre partidos políticos e candidaturas negras, sejam eles e elas de direita ou de esquerda. Do lado dos partidos, estimular a participação de negros e negras dentre seus quadros permitiu a ampliação da sua base eleitoral e fortaleceu o reconhecimento público do seu perfil ideológico como democrático, popular e moderno, por conseguinte, concatenado com os novos tempos que se avizinhavam.

Do lado das candidaturas negras, externou-se a possibilidade de ocupar direções partidárias, ser contemplado por recursos financeiros para campanha política – especialmente agora, após decisão do TSE e STF acerca da repartição do fundo eleitoral através de critérios de gênero e raça – e, por fim, a obtenção de apoio orgânico da agremiação partidária ou de parte dela via grupos paroquiais internos mais comuns nos partidos de direita, e campos ou tendências como é mais comum nos partidos de esquerda, numa possível disputa eleitoral. No senso comum, a candidatura deixa de ser uma carreira solo e passa a fazer parte de um projeto coletivo.

Há, em contraposição, aspectos negativos desta relação que merecem ser observados, tais como a situação em que a candidatura negra obtém a legenda, mas não o efetivo apoio para realizar uma campanha mais qualificada com maiores chances de sucesso. Neste caso acaba se transformando em degraus para eleger os candidatos priorizados de fato pela direção partidária.

Noutra ponta, temos a eleição de candidatos negros e negras racistas (sim, existe) geralmente nos partidos mais conservadores. O exemplo mais recente é o do vereador paulista Fernando Holiday, que comemorou efusivamente o recuo na política de cotas desta cidade através de uma propositura do seu próprio punho.

Por fim, temos o caso de pessoas negras que se candidatam por partidos que defendem posições contrárias e prejudiciais à autonomia e melhoria da qualidade de vida do segmento populacional ao qual pertencem, a exemplo do apoio à violência policial em localidades da periferia das grandes cidades ou da retirada de direitos trabalhistas e previdenciários, dentre outros.

Enfim, o voto racial contempla candidaturas de pessoas negras à direita, no centro ou à esquerda do espectro político e que atuam ou não no movimento social negro. Entretanto, a intervenção dessas lideranças na realidade onde atuam requererá sempre o apoio e o suporte da estrutura partidária.

Definido o partido que melhor se coaduna com a sua visão de mundo, a pessoa negra precisa pôr o nome à disposição para o embate eleitoral – o que nem sempre é simples devido as suas adversas condições de sobrevivência, que podem se agravar ao participar de uma peleja desta natureza – entrar no processo eleitoral para vencer e não somente para compor uma chapa ou ser degrau de outras candidaturas como citamos antes e, caso consiga se eleger, de preferência, realizar um mandato antirracista.

Na campanha, essas candidaturas enfrentam dois desafios de ordem geral: a) atender as expectativas da população negra no tocante as suas demandas específicas de reprodução sócio, política, econômica e cultural sem relevar que o fato de seus adversários, negros e brancos, estarão à busca do voto deste mesmo público e, b) suplantar as rejeições decorrentes da presença do racismo e do mito da democracia racial na sociedade brasileira muito presente durante o processo eleitoral.

As disputas eleitorais entre Benedita da Silva e Cesar Maia no Rio de Janeiro e entre Celso Pitta e Luiza Erundina em São Paulo, em diferentes momentos, são exemplos emblemáticos e enriquecedores para entendermos esta realidade. (Vide Oliveira, Cloves in Ver. Bras. Cien. Pol. Nº 21, Brasília set./dez 2016).

Não há um enquadramento obrigatório nem ideológico a ser seguido, entretanto as candidaturas negras que priorizam e assumem bandeiras antirracistas, visando ampliar e mobilizar a sua potencial base eleitoral, podem propor ações afirmativas, de caráter temporário, como a política de cotas raciais; ações repressivas ao racismo de caráter emergencial, tais como iniciativas que embarguem imediatamente o genocídio do povo negro, e ações universais de caráter permanente, tais como políticas de segurança alimentar e serviço público e gratuito de saúde, educação, assistência social.

Este quadro de proposições permite, simultaneamente, traçar estratégias de abordagem junto ao eleitorado de acordo com a sua inserção na matriz racial vigente no Brasil. Seu discurso e marketing eleitoral devem abordar prioritariamente os afro-brasileiros pretos, pardos e os de pele clara assim como a população branca que se reconhece antirracista.

Ou seja, há plenas condições das candidaturas negras ajustarem a sua estratégia de campanha para repercutir no cotidiano da maioria dos eleitores que reivindicam justamente políticas públicas desta natureza, independentemente do resultado final em termos de votação.

Não obstante, as candidaturas negras aliadas ou vinculadas organicamente ao movimento social negro, podem agregar no processo eleitoral o auxílio luxuoso dessas organizações, as quais tensionam partidos e governos acerca da questão racial, mobilizam e educam negros e brancos sobre os princípios do antirracismo e fazem gestão junto a parlamentares visando a aprovação de políticas públicas do seus interesse. Este ativismo cria um clima bastante favorável às candidaturas e ajudam a baixar as naturais rejeições do lado racista da sociedade.

O mais importante e urgente é reduzir desde já a constatada sub-representação de negros e negras no parlamento, preferencialmente com a eleição de parlamentares antirracistas, garantindo que esta representação política nos espaços de poder resultem no aprofundamento de medidas e instrumentos de inclusão, como sujeitos sociais, desses grupos historicamente discriminados. Que sejamos nós os protagonistas deste processo.

[*] É economista, especialista em Ciência Política e ex-secretário de Planejamento e Comunidades Tradicionais da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/Presidência da República – Seppir.

fonte: http://jlpolitica.com.br/coluna-aparte/pesquisa-bota-cristiano-com-quase-20-pontos-a-frente-de-aloizio-em-simao-dias-animos-se-acirram/notas/opiniao-o-voto-racial-o-eleitor-e-as-candidaturas-negras


O novo nas eleições 2020: o voto racial

 

[*] Carlos Trindade

Passados 35 anos desde as primeiras eleições diretas para prefeitos, após um longo período de ditadura militar, quando eram escolhidos pelos governadores dos Estados, a população aracajuana e das demais cidades brasileiras têm mais uma oportunidade de mudar, ou manter, no Executivo e Legislativo municipal aqueles que governaram nos últimos quatro anos.

Prefeitos e vereadores são as lideranças políticas mais próximas da população, pois cuidam dos interesses imediatos das localidades onde o cidadão e a cidadã vivem, trabalham, desenvolvem suas relações de amizade e se divertem.

Nessas mais de três décadas de eleições diretas, a política em Aracaju foi conduzida por forças de centro-esquerda, as quais promoveram diversas inovações na gestão pública, mantendo certo padrão de qualidade de vida, mas não esgotando todas as mazelas que afligem o cotidiano da população mais empobrecida, especialmente, a população negra, majoritária na cidade. Foram ícones desta história Jackson Barreto, Marcelo Déda e Edvaldo Nogueira, todos eleitos por mais de uma vez.

Entretanto, a orientação progressista que marcou a história recente da política em Aracaju não foi suficiente para ampliarmos o debate sobre as condições de vida do povo preto na nossa cidade, aviltada diariamente em espaços públicos e privados por atitudes racistas tanto de particulares quanto, no mais das vezes, de agentes governamentais, tal é o caso da Guarda Municipal.

Chama a atenção nesse período em que ocorreram nove pleitos municipais que tenhamos colocado na Câmara de Vereadores apenas nove pessoas negras (duas mulheres, Conceição Vieira e Rosângela Santana e sete homens, Max Prejuízo, Francisco Gualberto, Emanoel Nascimento, Adelson Barreto, Antônio dos Santos, Antonio Bittencourt e Manoel Marcos). Posso ter esquecido um ou outro nome, mas não serão tantos para o que se propõe este texto. 

É importante ressaltar que os parlamentares acima não estiveram juntos a um só tempo e em todos os nove mandatos. Geralmente, em cada legislatura, dois ou três dos nomes supracitados foram eleitos, perfazendo um percentual de 14% de representação numa cidade negra como Aracaju.

É, no entanto, um índice semelhante à representação que temos no Congresso Nacional, durante o mesmo período, configurando um problema nacional e não estritamente local.

Poderíamos ser arguidos o porquê de esta realidade ser diferente, já que aceitamos as regras do jogo do sistema político brasileiro consagrado na Carta Magna de 1988. Independentemente disto, a Constituição deve e pode ser aprimorada seja para consolidar o processo democrático, seja para buscar reduzir as desigualdades que permeiam e ameaçam romper os elos que sustentam esta consolidação.

Abaixo, oferecemos algumas reflexões para que os eleitores aracajuanos possam definir seu voto e tê-lo como instrumento de superação dos entraves ora colocados.

Inicialmente, invertendo a ordem temporal de algo que já sabíamos desde que iniciamos a nossa militância no movimento social negro em meados da década de 80, hoje está explícito: as desigualdades raciais no Brasil não decorrem do passado escravista do país onde éramos a força motriz da geração de riquezas, mas não tínhamos nenhum direito sobre os bens gerados por esse trabalho.

As desigualdades raciais decorrem da forma como a sociedade, a economia e a política no Brasil se organizaram desde então até os nossos dias. Por outro lado, e consequentemente, a sua resolução torna-se responsabilidade não somente do lado preto da história, mas de toda a sociedade brasileira. É sem dúvida uma questão nacional.

Reforçam essa visão ampliada da questão racial brasileira os casos recentes de violência e as reações de negros, brancos, amarelos contra este sintoma registrados nos EUA, Brasil e em diversos países do mundo.

De outra forma, a pandemia do Covid 19 demonstrou que estamos na mesma tempestade, porém em barcos completamente diferentes, o que é inadmissível diante dos padrões civilizatórios mínimos a serem seguidos neste século XXI.

Voltando um pouco no tempo, precisamos reconhecer o trabalho realizado pelo movimento negro, neste período, passando do discurso de denúncia contra o racismo para a ação concreta de proposição de políticas públicas de ação afirmativa voltadas para a defesa das vítimas de racismo no país. Cotas, terras para quilombolas, mudança nos currículos escolares, prevenção à saúde da população negra, são bons exemplos nesse sentido.

A ação qualificada da militância negra foi impulsionada por diversos acontecimentos nacionais e mundiais que impactaram sobremaneira na formação de uma mentalidade multicultural no seio da sociedade brasileira.

Destaco a Assembleia Constituinte em 1988, o centenário da abolição em 1988, a libertação de Mandela em 1990 e sua eleição para presidente em 1994, o tricentenário de Zumbi em 1995, a Conferência de Durban em 2001, a eleição do Lula em 2002 e reeleição em 2006, a eleição de Obama em 2007 e sua reeleição em 2011 e, por fim, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial em 2010.

Com o golpe de 2016 contra o governo petista e a entrada em cena das forças de direita, o movimento negro, que tinha ampliado e diversificado as suas ações e abrangência, obrigou-se a investir na reorganização das suas entidades com vistas a melhor combater o racismo e a defender a democracia e o bem comum, tal é o lema do Fórum Negro de Sergipe.

Para além desta rearrumação interna, no entanto, é urgente que este Movimento Negro invista na duplicação ou triplicação do atual número de vereadores eleitos, comprometidos com a causa racial, para a Câmara de Vereadores de Aracaju nas eleições de novembro.

Além de fazer campanha contra as candidaturas de partidos que não apoiam políticas antirracistas, faz-se necessário entrar na campanha de nomes vinculados organicamente às entidades negras ou de pessoas negras de partidos progressistas e antirracistas.

Muitos candidatos não colocam a causa racial entre as suas bandeiras de campanha, temendo possíveis rejeições eleitorais. Nada que o marketing não dê jeito, mas esquecem que focar nesta pauta numa campanha em cidades como Aracaju significa atender parcela significativa da população sem abrir mão das propostas valorativas e universais que a beneficiam igualmente por dependerem de serviços públicos gratuitos e de qualidade. 

Enfim, a verdadeira qualidade de vida em Aracaju passa, obrigatoriamente, pelas condições sob as quais sobrevivam os negros e negras residentes nesta cidade. Quem melhor do que uma bancada de vereadores comprometidos, política e organicamente, com a causa racial para garantir este intento?

[*] É economista, especialista em Ciência Política e ex-secretário de Planejamento e Comunidades Tradicionais da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.


fonte: http://jlpolitica.com.br/colunas/aparte/posts/pcdob-diz-que-vai-de-edvaldo-e-inaldo-por-causa-das-boas-gestoes-de-aracaju-e-socorro/notas/opiniao-o-novo-nas-eleicoes-2020-o-voto-racial

 

 

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