É possível pensar nas maternidades em chave feminista? “Mamá Desobediente” é o segundo livro da jornalista espanhola Esther Vivas e responde essa pergunta em várias oportunidades. Esta obra da editora Godot é escrita a partir da experiência pessoal da autora, mas funciona como um roteiro histórico sobre os diferentes modos de ser mãe. Além disso, inclui algumas propostas para desconstruir esse processo, arrancá-lo do capitalismo e discuti-lo em termos de direitos que devem ser reivindicados pelos feminismos.
Sua produção se conecta com mulheres mães e não mães, com profissionais da saúde e com todas aquelas que querem fazer um passeio sem preconceitos. “É importante que nós, mulheres e mães, comecemos a falar com voz própria, porque historicamente nos contaram a história dos homens que falavam por nós”, afirma a autora, que conversou pelo Instagram com Feminicida, no ciclo de entrevistas #DiálogosEnAislamiento.
A entrevista é de Micaela Arbio Grattone, publicada por Feminacida, 23-06-2020. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que é uma maternidade feminista? É possível em um mundo capitalista?
É possível, mas não é fácil. Seria bom que o feminismo tivesse um relato sobre a maternidade porque historicamente foi patrimônio dos setores reacionários mais radicalizados, para controlar o corpo e o destino das mulheres. Por isso, no livro, digo que é preciso resgatar a maternidade do patriarcado, do capitalismo e do neoliberalismo.
Do meu ponto de vista, quando falo de uma “maternidade desobediente”, falo daquela que rompe com os ideais que estão estabelecidos como a mãe abnegada, dedicada, sacrificada e corrompe o ideal neoliberal de ser a “superwoman”, com um corpo perfeito, e pronta para tudo. É a que reivindica essa maternidade real, com luzes e sombras. É uma mãe de bem com o seu próprio corpo, que decide sobre este processo e que sabe que para poder decidir é necessário mudar a sociedade. Além disso, que sabe que sabemos parir, que sabemos amamentar.
Qual é o papel da culpa e o desejo na maternidade?
A culpa é uma constante porque diante de nós temos um ideal impossível de alcançar. Então, na medida em que não somos capazes de tirar do armário a maternidade real, é muito difícil nos reconciliar com a nossa própria experiência, porque sempre vamos pensar que não estamos atuando bem. Vemos isto muito claro neste contexto de quarentena, quando as mães estão em casa, trabalhando do lar e com as crianças que não vão para a escola. Não estão conseguindo tudo. Este trabalho de cuidados sem outras pessoas que as ajudem é muito difícil.
Contudo, é preciso dizer que nós não somos o problema, quem está errado é o sistema. Apresentam alguns ideais impraticáveis, mas, por sua vez, o sistema vira as costas para a maternidade. É importante percebermos isto para poder deixar de lado a culpa e ter uma maternidade mais plena. Além disso, é importante entender que a maternidade é ambivalência: é amar muito a seu filho, mas ter o desejo de que, por algum tempo, às vezes, alguém o leve. Temos que poder dizer isto. A maternidade é responsabilidade nossa, mas também dos pais e da sociedade em geral. É preciso desindividualizar a maternidade e desfeminizá-la.
Qual é o papel do estado e os homens nas maternidades?
O estado vira as costas para o cuidado porque o sistema econômico se sustenta neste trabalho individualizado, e age assim quando a partir de políticas públicas tenta fazer com que a maternidade se encaixe no modelo de trabalho. É o que vemos com as licenças para a maternidade e paternidade, que são ridículas e que são incompatíveis com, por exemplo, a amamentação durante os primeiros seis meses, conforme recomenda a OMS (Organização Mundial da Saúde). A maternidade nos penaliza no mercado de trabalho, mas o problema não é a maternidade, mas, sim, esse mercado.
Em relação aos homens, o desafio deveria ser maternizar a paternidade. A responsabilidade é coletiva. É preciso tirar a questão do âmbito privado e entender que é pública e política. Vem atravessada pelas desigualdades de classe, de raça e por um sistema econômico que é hostil à mesma.
Após escrever o livro, mudou a forma como lida com a maternidade?
As maternidades são difíceis de atravessar porque, como dizia antes, o estado lhes vira as costas e, agora, neste contexto de quarentena, tudo fica mais evidente. Também é difícil ter filhos porque há uma visão muito adultocêntrica e infantofóbica das crianças. As únicas pessoas que tiveram que ficar fechadas, neste contexto de pandemia, foram as crianças. É um exemplo da visão que temos na sociedade e que afeta as maternidades.
É o que vemos quando nos dizem: “bom, agora trabalhar de casa e cuidar de um pequeno”. Mais uma vez, o estado acredita que, então, haverá alguém que cuide dos pequenos, prepare a comida e, além disso, trabalhe de casa. Esse alguém sempre somos nós, as mulheres. A sociedade dificulta muito o nosso trabalho.
Somos mães sós ou em comunidade?
Querem que sejamos sós, querem a maternidade fechada no lar, que nos viremos como podemos. Mas penso que nós, mães, estamos desafiando isto e estamos armando o que chamamos de “tribo” (com todas as considerações que se deve ter sobre este conceito, já que alguns falam de apropriação cultural e que é interessante pensar). Tentamos criar uma família mais ampla, acima dos laços sanguíneos.
Hoje em dia, também encontramos este apoio nas redes sociais. Historicamente, a maternidade se deu no coletivo e o avanço da sociedade capitalista fez com que seja algo mais individual e é necessário romper com isto. A maternidade na solidão é muito dura. Precisamos deste apoio. As redes nos permitem isto, aflorar muitos temas que são tabus acerca da maternidade e entender que não estamos sozinhas.
É possível ser mãe e ser independente?
Penso que devemos assumir a vulnerabilidade e a dependência como algo positivo, algo que nos permite estar mais vinculadas a outros. Todos, em algum momento, precisamos que alguém cuide de nós. O problema não está na dependência, mas em que o sistema vira as costas. A maternidade é um momento de vulnerabilidade em que se removem muitas coisas, tanto psicologicamente, como fisicamente. Devemos sustentar com orgulho essa vulnerabilidade, porque novamente o problema não somos nós.
Sobre a autora
Esther Vivas é uma jornalista, socióloga e escritora residente em Barcelona. Especializou-se em análise política, consumo crítico e maternidades feministas. Ao longo dos anos 2000, esteve muito envolvida no movimento antiglobalização e no movimento antiguerra. A partir de 2004, abriu um novo campo de reflexão sobre políticas agroalimentares e consumo consciente.
Suas principais obras nestes temas são: “Para onde vai o comércio justo?” (2006) e “O negócio da comida” (2004). Como resultado de se tornar mãe, em 2015, começou a escrever sobre maternidades, violência obstétrica e aleitamento materno. Seu último livro é “Mamá desobediente: una mirada feminista a la maternidad”.
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