O Papa e as vacinas. A caridade que humilha

“A vacina anti-Covid é o protótipo mais brilhante da “Klondike gold rush” da pandemia. Enquanto isso, ninguém mais fala da vacina como um “bem público global“. A vacina é um elemento que faz disparar para o alto, aliás para muito alto, o lucro de quem a produz, transporta e distribui. Deveria ser distribuída de acordo com as necessidades e não de acordo com os meios disponíveis. Mas acontece exatamente o oposto. Deveria ser distribuída de acordo com as necessidades das populações e não de acordo com os caprichos dos políticos. Mas, novamente, acontece exatamente o oposto”, escreve Alberto Bobbio, editor-chefe da revista Famiglia Cristiana, em artigo publicado por Eco di Bergamo, 05-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

As doses de vacinas desaparecem no conflito político ou não chegam em muitos países que não conseguem atender as garantias do mercado. Assim, no início de uma campanha global de vacinação nunca vista na face da terra, os problemas previstos parecem superar os benefícios esperados. Provavelmente o Papa Francisco está certo quando, ainda no domingo no Angelus, reiterou que as coisas vão melhorar se “trabalharmos juntos para o bem comum”. Ninguém, nem mesmo o Papa, sabe como tudo vai terminar, mas ele está absolutamente convencido de uma coisa: tudo irá bem se cada um de nós e todos juntos nos comprometemos a cuidar uns dos outros e da criação, que é a nossa casa comum. “Cuidar” será a palavra-chave para 2021, o segundo ano da pandemia.

No entanto, “cuidar” é um conceito que contrasta, para ficar no tema apenas da Covid-19, com outra desventura que muitas políticas de saúde e muitas regras econômicas impuseram e agora se espalham em nível global. Chama-se “nacionalismo sanitário“, uma espécie de corrida do ouro para garantir o melhor para si, fazendo tropeçar os vizinhos e mantendo distante os que já ficaram para trás. Bergoglio já vem dizendo isso há algum tempo, mas nos dias próximos ao Natal o repetiu com mais força.

vacina anti-Covid é o protótipo mais brilhante da “Klondike gold rush” da pandemia. Enquanto isso, ninguém mais fala da vacina como um “bem público global“. A vacina é um elemento que faz disparar para o alto, aliás para muito alto, o lucro de quem a produz, transporta e distribui. Deveria ser distribuída de acordo com as necessidades e não de acordo com os meios disponíveis. Mas acontece exatamente o oposto. Deveria ser distribuída de acordo com as necessidades das populações e não de acordo com os caprichos dos políticos. Mas, novamente, acontece exatamente o oposto.

No Peru, país da América Latina que registra um dos níveis mais altos de mortes em relação à população, as doses se perderam no embate político interno entre o ministério da saúde, o deposto presidente Vizcarra e o Congresso, que se acusam mutuamente de grandes confusões.

Nem um único frasco chegou à Nigéria, o maior país africano. Mas é toda a África que até agora está sendo deixada às margens: ela não tem garantias para oferecer ao mercado das Big Pharma.

A maneira de evitar acabar na areia movediça das finanças e, para muitos países, de ver sua dívida aumentar, seria desvincular todas as vacinas das propriedades intelectuais. Mas o petisco é saboroso demais para oferecê-lo de graça. A faixa de custo por dose é muito ampla, de US $ 2 a US $ 32 por dose. Mas ainda não se sabe quanto custam aquelas russas e chinesas. Depois, há custos e custos. São pagos em dinheiro vivo e influência geopolítica, sem regras ou com regras canalhas.

saúde é um bom negócio para investimentos colaterais de uma ampla cadeia de suprimentos, desde os transportes até a construção de edifícios e descontos sobre as matérias-primas. A logística é o setor que promete excelentes retornos. Como se mantém o controle de quem é vacinado em países onde não há nem mesmo registros de nascimentos? Já apareceram sujeitos garantindo a alguns países africanos resolver os dois problemas. Em troca de uma gorda compensação.

Aqueles que prometem vacinas gratuitas na ausência de uma autoridade de controle ​​supranacional costumam fazer o jogo do gato e da raposa contra o pobre Pinóquio. Um Ente internacional havia sido proposto por Bergoglio no Natal, pois a OMS estava com problemas a esse respeito mas ninguém, absolutamente ninguém, aceitou a sugestão, nem mesmo para criticá-lo. Sinal de que atingiu o ponto mais delicado. Isso não significa que os pobres não terão a vacina nos próximos meses. Significa apenas que a terão por esmola, caridade que humilha, e não pela solidariedade dos cuidados entre iguais.

Leia mais

fonte: http://www.ihu.unisinos.br/605925-o-papa-e-as-vacinas-a-caridade-que-humilha


Ética, acesso e distribuição: o desafio das vacinas contra a Covid-19 na América Latina

“Nove meses após a chegada da pandemia de SARS-CoV-2, várias vacinas já estão em processo de aprovação e algumas estão sendo aplicadas em certos países. A América Latina terá acesso oportuno a elas?”.

A reportagem é publicada por Open Democracy, 24-12-2020. 

vacina contra a Covid-19 sendo desenvolvida pela Oxford-AstraZeneca já demonstrou eficácia em pacientes no Reino Unido e no Brasil. A da farmacêutica Pfizer, por sua vez, é a mais avançada de todas, já tendo obtido a autorização da Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos. O Reino Unido já está vacinando sua população.

Para os países da América Central, a questão é: haverá uma distribuição justa e segura da vacina?

A resposta varia de país para país, mas há dois elementos importantes: primeiro, como cada governo administra a aquisição da vacina e, segundo, se os sistemas de saúde estão preparados para garantir a distribuição universal da vacina e levá-la a lugares remotos. Neste caso, a cadeia de frio e a necessidade de duas dozes determinarão o avanço ou recuo da pandemia no continente.

Esperança ou desigualdade

Embora o desenvolvimento bem-sucedido de vacinas seja, sem dúvida, uma boa notícia, a situação deve ser avaliada por região para entender se sua chegada permitirá que a população em geral saia da crise de Covid-19 ou se, ao contrário, sua chegada aprofundará ainda mais os problemas de desigualdade em cada país.

Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) anunciou recentemente que os dez países mais vulneráveis ​​da região terão acesso gratuito à vacina.

“Na nossa região, 27 países vão pagar pelas vacinas e dez países vão receber a vacina sem custo porque, segundo os critérios econômicos, os países mais pobres ou com menor população têm maior dificuldade de acesso. Esses são os critérios do Banco Mundial sendo usados ​​pela GAVI Alliance, que lidera a iniciativa Covax ”, explicou Jarbas Barbosa, vice-diretor da OPAS.

Covax busca ter 2 bilhões de vacinas para imunizar 20% da população em todos os países. Existem também outros doadores, como a Espanha e a União Europeia, e outros países já fizeram pagamentos adiantados para obter doses das vacinas assim que forem aprovadas e estiverem disponíveis. Existem dois acordos sobre isso: pagando US$1,6 por dose, as vacinas podem ser reservadas, mas sem a opção de escolher a vacina; pagando US$ 3,10 a dose, garante-se a escolha. Em seguida, vêm os países, como os da América Latina, de média ou baixa renda, que receberão as vacinas a preço subsidiado. Até agora, a Covax não arrecadou dinheiro suficiente para cobrir a concessão planejada.

Os países que se beneficiarão das vacinas gratuitas são: BolíviaDominicaEl SalvadorGrenadaGuianaHaitiHondurasNicaráguaSanta Lúcia e São Vicente e Granadinas.

Com exceção da Bolívia e Guiana, os países da América do Sul não estarão cobertos – uma região que tem países com alguns dos maiores índices de casos, como o Brasil (3º), a Argentina (10º), a Colômbia (11º) e o México (13º).

Para Carolina Nanclares, da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), “há necessidade de transparência por parte das indústrias farmacêuticas em vários aspectos: primeiro, os estudos precisam ser divulgados para que sejam avaliadas por plataformas científicas independentes. Em segundo lugar, há uma falta de clareza sobre os custos de fabricação das vacinas; muitas foram desenvolvidos com financiamento público, de governos específicos, o que permitiria exigir que divulgassem esses custos para que o público pudesse determinar se o custo de cada vacina é justo ou não”.

Assim, a transparência com que são administradas as relações entre governos e empresas farmacêuticas também definirá como serão administrados os custos da vacina. Algo semelhante aconteceu com os preços do Remdesivir, medicamento que se mostrou eficaz no tratamento da Covid-10 apenas em alguns casos. Quando se anunciou que os resultados iniciais eram animadores e que a maior parte da produção já estava vendida, a União Europeia apressou-se em comprá-lo. Três semanas depois, descobriu-se que o impacto positivo era mínimo.

Nanclares afirma que “a MSF destaca que esse momento de pandemia e crise não é o certo para fazer negócios. Acreditamos que as vacinas devem ser um bem público”.

Seguindo essa linha, a Índia e África do Sul – com apoio de cerca de 100 países – propuseram uma isenção aos direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas contra a Covid-19, proposta que foi debatida pelo Conselho Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 17 de dezembro. Surpreendentemente, países altamente afetados pelo vírus, como o Brasil, se opuseram à iniciativa, o que mostra que a ideologia política vence o bem comum.

Também foram criados mecanismos como o Covid-19 Technology Access Pool (C-TAP), lançado pela Costa Rica e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), uma plataforma que recompila direitos de propriedade intelectual, dados e o conhecimento por trás de suas inovações por meio de licenciamento aberto e não exclusivo.

Essas iniciativas, no entanto, não serão suficientes se os governos não tiverem um planejamento eficiente de vacinação.

Cadeia de frio e acesso remoto

Para Nanclares, é fundamental descentralizar as vacinas. Se for tratada como em outras epidemias, os países mais ricos ficarão com os primeiros lotes e os países com recursos limitados e com populações remotas e vulneráveis ​​serão os últimos a ter seus habitantes imunizados contra o vírus. Além disso, haverá cidadãos que poderão ter acesso às vacinas de maneira particular, pagando um preço inacessível para a maioria, fato que só aprofunda a desigualdade e a cegueira diante do privilégio de ter uma renda garantida e acesso à saúde de qualidade nos países da América Latina e do Caribe.

Portanto, é fundamental que não só a disponibilidade da vacina seja garantida (como na Colômbia, onde o presidente anunciou no dia 10 de dezembro que a vacina será gratuita para todos os colombianos), mas também consolidar a logística de distribuição. Sem a imunização da grande maioria da população, incluindo os mais pobres, refugiados, imigrantes e aqueles que vivem em regiões remotas, a pandemia não será controlada.

plano de distribuição em países em conflito ou com áreas geográficas complexas deve ser feito de forma meticulosa. Quanto mais distante estiver o receptor, mais difícil se torna garantir a cadeia de frio necessária para a entrega da vacina. Uma vacina normal precisa estar entre 2 e 8ºC durante todo o percurso, o que já é um desafio. Mas uma vacina como a Pfizer precisa permanecer abaixo de -80ºC, algo que apenas alguns países podem garantir. Se a vacina chegar a descongelar, ela vira um líquido inofensivo. Assim, os governos latino-americanos enfrentam um enorme desafio, já que a maioria não tem sido capaz de garantir serviços universais e de qualidade, como saúde e educação, em lugares distantes e desconectados em seus países.

vacina vai chegar muito em breve. A questão é onde, como, para quem e a que preço.

Leia mais

fonte: http://www.ihu.unisinos.br/605930-etica-acesso-e-distribuicao-o-desafio-das-vacinas-contra-a-covid-19-na-america-latina

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *