O endereço do ódio

“Mataram Moïse e Melquisedeque como se mata negros e indígenas no território brasileiro, espancados, amarrados, queimados, baleados, emboscados. O pedido de justiça gritado por essas mães atualiza outros milhares de pedidos para que o Estado brasileiro atue de fato no enfrentamento à escalada da barbárie hoje estimulada por meio de manifestações inclusive de autoridades públicas em redes sociais”, escreve Ivânia Vieira, jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Comunicação, articulista no jornal A Crítica de Manaus, co-fundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas).

Eis o artigo.

Ivana Lay, mãe de Moïse Kabagambe, 24 anos, assassinado por espancamento no Rio de Janeiro, cunhou, em meio a dor difícil de ser configurada, uma frase que roda o Brasil nas mobilizações e protestos por justiça ao jovem e no enfrentamento ao racismo no Brasil: “mataram meu filho aqui como matam em meu país”, o Congo.

Em dezembro de 2021, a mãe de Melquisedeque dos Santos, 20 anos, do povo satere-maweFrancilene, implorou em prantos: “peço justiça não somente por ele, mas por todos os jovens que vêm do interior pedindo uma oportunidade”. Melquisedeque era um dos tantos jovens que atravessam mundos diferentes, dentro do próprio país, para realizar o sonho de estudar, trabalhar e receber um salário justo “para ajudar a família que ficou por lá” e construir suas vidas com dignidade.

Um dos assaltantes de um ônibus da linha 444, em Manaus, no dia 16 de dezembro do ano passado, matou o rapaz com um tiro na cabeça. O sonho somou-se à tragédia que todos os dias destrói famílias de brasileiros e não brasileiros que, neste país, querem ter assegurado o direito de viver plenamente.

As mães de um congolês e de um indígena saterê imprimem uma fotografia sobre a qual necessitamos refletir e falar. Moïse e Melquisedeque não são casos isolados ou referências esporádicas desse tipo de acontecimento. São parte de atitude de repetição amparada pela impunidade incentivada. Um pensamento estruturado hegemonicamente tenta naturalizar o racismo no Brasil, a criminalização das vítimas e a normatização da violência como conduta social.

Mataram Moïse e Melquisedeque como se mata negros e indígenas no território brasileiro, espancados, amarrados, queimados, baleados, emboscados. O pedido de justiça gritado por essas mães atualiza outros milhares de pedidos para que o Estado brasileiro atue de fato no enfrentamento à escalada da barbárie hoje estimulada por meio de manifestações inclusive de autoridades públicas em redes sociais.

“Peço justiça”, por cada um deles e cada uma delas tem que ganhar corpo nas praças, nas orlas das praias, nas fachadas de prédios, nos pontos de paradas obrigatórias, nos muros das instâncias judiciárias, nos nossos corpos. São muitos pedidos de justiça acumulados, um déficit histórico na construção do aparato capaz de completar o ato de justiça e de ampliar a base de prevenção ao racismo, ao ódio e aos crimes vinculados a essas condutas. Quem mandou matar MarielleIrmã Dorothy? Pedimos justiça!

Em sete de dezembro de 2019, Humberto Peixoto, 37, do povo tuiúca, morreu vítima de espancamento, no dia 2 do mesmo mês. O prontuário médico registrava afundamento craniano, perfuração na cabeça e fêmur quebrado. Peixoto retornava para casa, por volta das 15h, onde vivia com mulher e uma filha de cinco anos, no bairro Coroado.

Catequista, assessor da Cáritas Arquidiocesana e militante na luta pelos direitos indígenas no Amazonas, era comum encontrar Peixoto nos encontros organizados por pastorais sociais e pelas organizações do movimento indígena. Desses encontros, ficam na minha memória a fala mansa, jeito discreto e sorriso largo. Em nota divulgada à época, a Coordenação dos Povos Indígenas e Entorno (Copime) atribuiu o assassinato de Humberto Peixoto a crime de ódio.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/616212-o-endereco-do-odio

Morte de Moïse é fruto também da reforma trabalhista de Temer, aponta pesquisador da UFRJ

Congolês era negro, pobre e trabalhador informal que foi morto ao cobrar R$ 200 por dois dias de serviço prestado. 

Moïse tinha 24 anos, estava no Brasil desde 2014, vivia de trabalhos aleatórios, sem nenhum direito. Foto: Emilly Firmino.

A reportagem é de Eduardo Miranda, publicada por Brasil de Fato, 14-02-2022.

A morte do congolês Moïse Kabamgabe, no último dia 24, em um quiosque na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro, chamou a atenção para a sua condição de negro e de estrangeiro refugiado no Brasil, mas também para a figura de um trabalhador precarizado que foi ao local de trabalho para cobrar R$ 200 por dois dias de serviço prestado em um dos quiosques.

Após o caso vir à tona somente dias depois do crime, o Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (MPT-RJ) foi provocado e se manifestou, informando que abriu inquérito civil para apurar as razões da morte. Moïse tinha 24 anos, estava no Brasil desde 2014, vivia de trabalhos aleatórios, sem nenhum direito, e foi brutalmente espancado até a morte.

“A denúncia aponta para o possível trabalho sem o reconhecimento de direitos trabalhistas, podendo configurar, inclusive, trabalho em condições análogas à de escravo, na modalidade trabalho forçado, de xenofobia e de racismo”, afirmou em nota o MPTRJ, acrescentando que a investigação é paralela ao processo criminal da Polícia Civil.

Para o professor de sociologia do trabalho do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) e coordenador do Núcleo de Estudos Trabalho e Sociedade (NETS-IFCS-UFRJ), Marco Aurélio Santana, a morte do congolês é marcada por um conjunto de dimensões, mas ele salienta que o fato está atravessado pelos desdobramentos da reforma trabalhista aprovada durante o governo de Michel Temer (MDB).

“Qualquer análise honesta que não tente falsear a realidade verá os claros vínculos entre a situação de trabalho em que se encontrava Moïse e seu brutal assassinado com os impactos produzidos pela reforma trabalhista levada a cabo em 2017 pelo governo Temer. Propagada como indispensável para a modernização das relações de trabalho e para a criação de empregos, desde o início estava claro e se sabia que não era disso que se tratava”, afirma Santana.

O contrato intermitente ou esporádico aprovado em Brasília por deputados e senadores permite que as empresas fiquem desobrigadas de manter vínculo com o trabalhador e o demande apenas quando houver interesse dos patrões. Por consequência, trabalhadores e trabalhadoras são colocadas em situação de vulnerabilidade, sem os direitos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) aprovada e sancionada pelo presidente Getúlio Vargas.

 

Denúncias

Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, que dá ampla assistência a refugiados, informou que, apenas em 2021, recebeu aproximadamente 70 denúncias trabalhistas. Há desde reclamações de estrangeiros no Brasil que foram contratados como CLT, mas que não tiveram a Carteira de Trabalho assinada até “casos mais graves de violações de direitos”.

Presidente da Comissão de Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), a deputada Mônica Francisco (Psol) afirma que as condições de trabalho de Moïse eram parecidas com a de refugiados e refugiadas que chegam ao Brasil oriundos de países do continente africano ou do Haiti. Para ela, a precarização se reafirma muitas vezes por força da ilegalidade desses cidadãos no país.

“São refugiados com profissões de formação técnica ou de ensino superior, mas que aqui, quando conseguem colocação, vão para postos indignos, em trabalhos semi-escravos ou análogos à escravidão, com insalubridade e sem direitos. São trabalhos que acontecem com força de ameaça e dificuldade de cobrança pelo pagamento porque muitos desses refugiados não têm segurança de sua permanência no país”, avalia a parlamentar.

Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a pandemia da covid-19 estimulou a contratação de trabalhadores de forma precária, sem jornada, sem salários fixos e sem direitos. Dados do Ministério da Economia mostram que metade dos empregos criados em 2020 eram de trabalho intermitente.

 

Ordem do dia

Marco Santana, da UFRJ, sustenta, ainda, que a persistência do alto índice de desemprego no Brasil atual, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), é a manutenção do que foi aprovado por Temer após o processo que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). Segundo ele, “as cifras estão aí expostas” e contradizem as promessas de Temer e Bolsonaro.

“A reforma criou um ambiente ainda mais inóspito para a classe trabalhadora, na medida em que atuou também no sentido de tentar neutralizar completamente suas entidades de representação, os sindicatos, que historicamente têm sido canais de conflitividade social e laboral, lutando exatamente no sentido da conquista de direitos e de garantias protetivas para trabalhadores e trabalhadoras”, analisa Santana.

O pesquisador lembrou que 2022 é ano eleitoral e que os projetos de país serão disputados por essa via. Santana menciona o exemplo da Espanha, que depois de 10 anos, em balanço completamente desfavorável à classe trabalhadora, voltou atrás. Ele reforça que aqui, por apenas cinco anos, o resultado foi ruim e “precisa ser urgentemente revertido”.

“O tema tem de estar na ordem do dia e, clara e explicitamente, no programa dos partidos de esquerda dignos do nome. É imprescindível que a chamada revogação seja debatida e efetivada. O que está aí é desumano em termos laborais, é deletério em termos sociais. A vitória de forças progressistas será o possível primeiro passo. Forças do capital resistirão, por isso a articulação entre as vias institucionais e as lutas sociais serão fundamentais”, pontua Santana.

A opinião do professor da UFRJ vai ao encontro da fala da deputada Mônica Francisco sobre a força redobrada dessa precarização de trabalhadores a partir das regras de flexibilização na juventude negra e periférica:

“[O que aconteceu com Moïse] Diz muito também sobre a formação histórica e desenvolvimento de nosso mercado de trabalho e o lugar extremamente desigual de negras e negros nele. Mas diz ainda bastante sobre o nosso presente, pois lança luz sobre o estado de coisas disseminado a partir da reforma, com intenso e extenso espectro de precarização, e que envolve a vida e o trabalho da juventude em nosso país, principalmente a juventude negra e periférica”.

 

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/616195-morte-de-moise-e-fruto-tambem-da-reforma-trabalhista-de-temer-aponta-pesquisador-da-ufrj