Notas sobre a guerra na Ucrânia

27/02/2022

Imagem: Elyeser Szturm

Por JOSÉ LUÍS FIORI*

Considerações sobre os efeitos do conflito na Europa, na Rússia, nos EUA e na China.

1.

A história da Rússia começa em Kiev por volta de 800 d.C. e nestes longos séculos o território atual da Ucrânia pertenceu à Rússia, e depois à Polônia, à Lituânia, à Áustria e finalmente, de novo à Rússia e à URSS no século XX. A Ucrânia só se transforma numa República por obra da Revolução Bolchevique de 1917, e vira um estado nacional autônomo em 1991, como parte da “punição” imposta à Rússia depois da derrota soviética na Guerra Fria.

Neste momento os russos estão questionando a expansão da OTAN sobre a Ucrânia, mas sobretudo estão se propondo a modificar os termos deste “acordo de paz” que lhe foi imposto na década de 1990. Deste ponto de vista, da história de larga duração dos povos se poderia até dizer que o território ucraniano tem uma relação mais longa e mais estreita com a Rússia de Ivan III e IV, e com o Império dos Romanoff, do que a relação de Taiwan com a China continental que só se estreitou depois do Século XVII.

Mesmo assim, não creio que o objetivo atual da Rússia seja anexar a Ucrânia, nem muito menos expandir-se para além do seu território atual. Não há dúvida, porém, que a Rússia está se propondo agora, pela via das armas, fazer o que havia proposto pela via diplomática: neutralizar militarmente a Ucrânia, e reverter parte de suas perdas impostas pela derrota do final do século passado.

2.

Depois que uma guerra começa é muito difícil prever até onde irá e quando terminará a menos que exista um perdedor claro. Neste caso dependerá muito do objetivo imediato e da velocidade da operação militar russa. No momento parece pouco provável uma guerra mundial envolvendo as grandes potências do sistema, uma espécie de terceira guerra mundial. Os países europeus e a própria Otan não tem capacidade militar suficiente para enfrentar a Rússia. Os EUA saíram muito divididos e fragilizados – interna e externamente – de sua recente humilhação militar no Afeganistão, e da política de suas “intervenções militares” com o objetivo de mudar os governos ou regimes da Líbia, do Iraque, da Síria, do Iêmen, e do próprio Afeganistão. Para não falar da “insuficiência” de suas sanções econômicas contra o Irã, a China e a própria Rússia.

3.

Os europeus temem a superioridade militar dos russos com relação a todos seus exércitos nacionais. De um ponto de vista estritamente realista os europeus sabem que são hoje um protetorado atômico dos Estados Unidos. No caso da Alemanha, trata-se de um país ainda literalmente ocupado por tropas e armamentos americanos. Além disso, os europeus têm uma dependência energética muito grande do petróleo e do gás da Rússia, que é a fonte de mais de 40% do gás consumido na Europa. Apesar das declarações ribombantes de alguns líderes europeus, em particular os alemães, a Europa não tem como substituir a energia russa no curto nem no médio prazo.

Se os europeus forem obrigados pelos norte-americanos a cortar seus “laços energéticos” com a Rússia, terão que enfrentar de imediato racionamento, inflação, perda de competitividade e muito provavelmente revoltas sociais de uma população que já foi atingida pesadamente pelos efeitos da pandemia do coronavírus. A Rússia deverá responder às sanções das potências ocidentais e quem será atingido de forma mais imediata serão os europeus, caso a Rússia suspenda, por exemplo, exportação de alimentos ou de minérios atingindo a população e as empresas europeias, para não falar da capacidade muito superior dos russos fazerem ciberataques às empresas e instituições governamentais europeias, se por acaso a Rússia decidir responder às sanções econômicas e financeiras que estão sendo anunciadas sem levar em conta a resposta que receberão dos russos. É um quadro muito complicado e indefinido para todos, mas com certeza o lado mais frágil é o dos europeus, no médio prazo.

4.

O historiador e filósofo alemão, Oswald Spengler (1880-1936) anunciou o “declínio do Ocidente” logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial, e vários outros autores bateram nesta mesma tecla através do século XX, incluindo os autores que discutiram a “crise da hegemonia americana” nas décadas de 70 e 80 do século passado. Estes processos históricos, entretanto, são lentos e passam por caminhos muito sinuosos. Às vezes avançam, às vezes recuam.

Neste caso houve uma aceleração do tempo históricos nas duas últimas décadas, e, em particular, desde o momento em que a Rússia voltou à condição de segunda maior potência militar do mundo, enquanto a China decidiu acelerar a modernização de sua marinha e de sua capacidade balística, além de dar início ao seu grande projeto de construção e incorporação de mais de 60 países ao redor do mundo, no programa Belt and Road.

Caso se queira simplificar este processo mais recente, poderíamos dizer que a grande inflexão aconteceu no momento em que a Rússia interveio na Guerra da Geórgia, em 2008, dando um “basta” à expansão da OTAN, e depois interveio na Guerra da Síria, em 2015, por sua própria conta e seguindo seu próprio comando. Essas ações, de pleno sucesso militar, deixaram claro que surgia no mundo outra potência com capacidade de arbitrar, sancionar e punir por sua própria conta, mesmo que fosse – como neste caso – em nome de valores e objetivos buscados também pelas “potências ocidentais’, como era derrotar o chamado “Estado Islâmico”.

Esta inflexão acelerou ainda mais no momento em que a China de Xi Jinping colocou sobre a mesa seus objetivos estratégicos para as próximas décadas, e ao mesmo tempo chamou o Ocidente a respeitar o fato de que agora existem múltiplas culturas e civilizações dentro do mesmo sistema interestatal. A “declaração” da Rússia e da China, de 7 de fevereiro de 2022, consagra esta convergência e anuncia o fim do poder e da ética mundial unipolar imposta pelo Ocidente nos últimos 300 anos da história do sistema mundial. Uma coisa que chama a atenção nesta “carta aos povos do mundo” da Rússia e da China, é a defesa do que eles denominam de valores da liberdade, da igualdade, da paz e da democracia, respeitando-se a visão de cada povo com relação a cada uma destes “valores” que eles também apresentam como universais.

*José Luís Fiori é professor do Programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).

Texto estabelecido a partir de entrevista concedida a Rodrigo Martins e publicada no site da revista Carta capital [https://www.cartacapital.com.br/entrevistas/os-europeus-temem-a-superioridade-militar-dos-russos-e-uma-crise-energetica/].

fonte: https://aterraeredonda.com.br/notas-sobre-a-guerra-na-ucrania/

Tudo o que você sabe sobre a Ucrânia está errado

UMA ENTREVISTA COMVOLODYMYR ISCHENKOTRADUÇÃO
GERCYANE OLIVEIRA

A crise da Ucrânia é extremamente complexa e pouco compreendida. O sociólogo ucraniano Volodymyr Ishchenko explica as origens da crise, as ficções que a cercam e por que esse conflito se tornou inevitável.

UMA ENTREVISTA DEBranko Marcetic

Se você confiou na mídia do establishment para acompanhar os acontecimentos na Ucrânia nestes últimos oito anos, então provavelmente o que você sabe está errado. Apesar – ou, mais provavelmente, por que – o tumulto na Ucrânia tem aparecido no noticiário nestes últimos anos, a história do país e seus contínuos conflitos internos têm sido alguns dos mais propagandeados para as pessoas do Ocidente.

O Dr. Volodymyr Ishchenko, sociólogo e pesquisador associado do Instituto de Estudos da Europa Oriental, passou anos escrevendo sobre a política ucraniana, a Revolta de Euromaidan de 2014, e a confusão entre protestos, movimentos sociais, revolução e nacionalismo. Recentemente, ele conversou com Branko Marcetic, da Jacobin, sobre o que o Ocidente precisa entender sobre a Ucrânia e o impasse internacional em curso em relação a ela.


BM

Por que as autoridades ucranianas e os governos europeus estão assumindo posições tão diferente do Estados Unidos e o Reino Unido sobre a perspectiva de uma invasão russa?

VI

A diplomacia coercitiva russa e os acúmulos militares são apenas uma parte disso, porque também há ações diplomáticas paralelas. Outra parte é esta campanha midiática sobre uma invasão iminente, que tem sua própria lógica autônoma, é impulsionada por interesses diferentes e não deve ser tomada como um reflexo objetivo das ações russas. Ela também tem este caráter de intensificação e crescimento. O principal alvo desta campanha provavelmente não é nem a Rússia ou a Ucrânia, mas a Alemanha, que deveria estar mais próxima de seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

No início, a Ucrânia nem mesmo notou esta campanha no meio de comunicação ocidental. Em seguida, tentou explorar a campanha solicitando mais armas e pedindo sanções preventivas contra a Rússia. Há apenas três ou quatro semanas que o governo ucraniano começou a fazer declarações muito explícitas de que a invasão não é realmente iminente, que estamos sob ameaça russa desde 2014 e que estamos acostumados a isto, e que de acordo com sua inteligência, esta ameaça não é maior do que era na primavera do ano passado (durante o estágio inicial das movimentações russa, que foi feito publicamente com intenções muito claras).

Esta campanha midiática ocidental teve consequências negativas e muito concretas para a economia ucraniana. A moeda ucraniana começou a ser desvalorizada, os investidores começaram a sair – particularmente no mercado imobiliário – e o governo tem tido bastante medo de que, mesmo sem uma invasão real, a economia ucraniana possa ter sérios problemas com isso. Mas eu não tomaria isso como um simples equívoco estratégico.

BM

Por que a Ucrânia é um país tão importante, tanto para a Rússia, quanto para o Ocidente e os Estados Unidos?

VI

Economicamente, a Ucrânia é na verdade um grande fracasso. Se você olhar para os indicadores econômicos, o país é provavelmente um dos muito poucos países do mundo que não atingiu seu nível de PIB per capita desde 1990. Houve um enorme declínio econômico nos anos 90, e então a Ucrânia não conseguiu crescer como seus vizinhos da Europa Oriental. Não vivemos melhor do que no final da União Soviética, ao contrário da Polônia, por exemplo, ou mesmo da Rússia ou Bielorrússia.

Para a Rússia e para os Estados Unidos, é um lugar através do qual o gás natural é transportado. Houve algumas iniciativas para ter um consórcio tripartite: a Rússia como fornecedor de gás, a União Europeia como consumidor, e a Ucrânia como território de trânsito. Estas posições foram atacadas nos anos 90 e 2000, particularmente pelo lado ucraniano, e o resultado foi que a Rússia acabou de construir vários gasodutos ao redor da Ucrânia. O Nord Stream 2 é talvez o mais perigoso para a Ucrânia agora, pois pode fazer com que os oleodutos ucranianos se tornem obsoletos.

De um ponto de vista militar, a Rússia diz que a Ucrânia pode ser importante porque se a OTAN começar a instalar armas ofensivas, há mísseis que podem chegar até Moscou em cinco minutos. A estratégia defensiva russa durante séculos foi a expansão, a fim de empurrar sua fronteira o mais para o oeste possível, criando profundidade estratégica, o que levou as invasões de Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler ao fracasso – embora as guerras contemporâneas não sejam travadas da mesma forma que eram há meio ou dois séculos atrás.

Para os Estados Unidos, a Ucrânia é um potencial foco de conflito contra a Rússia. Se a Ucrânia estiver criando tensões com a Rússia, poderá enfraquecer a Rússia e desviar seus recursos, por exemplo, no caso de uma ascensão chinesa. Algumas pessoas comentam agora com cinismo: “Por que não deixar os russos invadirem a Ucrânia, e vamos fazer da Ucrânia outro Afeganistão para a Rússia”? A Rússia gastaria muitos recursos, seria atingida com sanções – provavelmente o Nord Stream também estaria sob sanções – e não é tão claro por quanto tempo a Rússia sobreviveria a uma grande intensificação na Ucrânia. Esta poderia ser uma razão pela qual esta guerra [na região de Donbass] já dura há tanto tempo: não há nenhum interesse real em detê-la. Houve várias oportunidades para fazê-lo em 2019 e 2015, e o governo dos EUA não fez o máximo que pôde.

BM

Qual é a relação entre a Ucrânia e a Rússia, já que a longa e complicada história dos países molda tantas das divisões políticas e culturais da Ucrânia moderna?

VI

Não há nada próximo a um consenso sobre esta questão. Algumas pessoas de esquerda, como alguns marxistas ucranianos no século XX, defenderam que a Ucrânia era uma colônia russa e que, pelo menos no Império Russo, ela era explorada economicamente. Essa foi uma história diferente sob a União Soviética, quando a Ucrânia se desenvolveu muito rapidamente e acabou sendo uma das partes mais desenvolvidas do país – uma das razões pelas quais a crise após a era soviética foi tão grave. Outros diriam que a Ucrânia era mais parecida com a Escócia para a Inglaterra, e nem mesmo próxima das relações entre as metrópoles ocidentais e suas colônias na África ou na Ásia, ou mesmo entre a Rússia e a Ásia Central, ou a Rússia e a Sibéria.

Para muitos russos, a Ucrânia é parte de sua percepção da nação russa. Eles simplesmente não poderiam imaginar a Rússia sem a Ucrânia. No Império Russo, havia esta ideia de que russos, ucranianos e bielorussos eram três partes do mesmo povo. E esta narrativa foi recentemente reiterada por Vladimir Putin, em seu artigo onde afirmava que ucranianos e russos são apenas um povo, artificialmente dividido.

Esta narrativa tem uma longa história no pensamento do imperialismo russo. Desta perspectiva, você veria as relações entre a Ucrânia e a Rússia como uma competição de pelo menos dois projetos de construção de nações. Pode-se dizer que a Ucrânia não é parte da Rússia; os ucranianos são um povo separado. Esta narrativa é a mais dominante na Ucrânia neste momento. No entanto, este projeto de construção de uma nação não teve sucesso por completo – apesar de três revoluções que tiveram um conteúdo de construção de uma nação forte, que aconteceu em 1990, 2004 e 2014. Outra narrativa afirmaria que os ucranianos são realmente parte de alguma unidade eslava oriental maior e este projeto de construção da nação não foi realizado devido à fraqueza da modernização no Império Russo.

Entretanto, esta discussão ocupa apenas uma pequena parte da sociedade ucraniana, especialmente os intelectuais. Para os ucranianos comuns, esta não é a questão importante. De acordo com pesquisas realizadas durante os trinta anos desde a independência soviética, as questões de empregos, salários e preços estiveram no topo das preocupações da população, enquanto que identidade, língua, relações geopolíticas, União Europeia (UE), Rússia e OTAN sempre estiveram na lista de prioridades ucranianas.

BM

Alguns comentaristas dizem que, como a extrema direita não teve muito sucesso nas eleições pós-Maidan, seu papel no país é insignificante. Até que ponto isso é verdade?

VI

O papel dos nacionalistas radicais na política ucraniana é significativo, através da pressão direta sobre o governo e da disseminação de narrativas. Se você olhar para as políticas reais que foram tomadas pelo governo pós-Maidan, você verá o programa dos partidos nacionalistas radicais, particularmente a descomunização, a proibição do Partido Comunista da Ucrânia e a ucranização, o que significa empurrar a língua russa para fora da esfera pública ucraniana. Muitas coisas que a extrema direita fez na campanha antes do Maidan foram implementadas por políticos não direitistas.

A radicalização nacionalista é uma compensação pela falta de quaisquer mudanças revolucionárias após a revolução. Se você começar, por exemplo, a mudar algo na esfera ideológica – renomeando ruas, tirando qualquer símbolo soviético do país, removendo as estátuas de Vladimir Lênin que estavam de pé em muitas cidades ucranianas – você cria uma ilusão de mudança sem realmente mudar na direção das aspirações do povo.

A maioria dos partidos relevantes são, na verdade, máquinas eleitorais para redes patronais e clientelistas específicas. As ideologias são geralmente totalmente irrelevantes. Não é difícil encontrar políticos que trocaram de campo completamente opostos na política ucraniana várias vezes durante suas carreiras.

Os partidos nacionalistas radicais, pelo contrário, têm ideologia, têm ativistas organizados e, neste momento, são provavelmente os únicos partidos no sentido real da palavra “partido”. Eles são as partes mais organizadas e mobilizadas da sociedade civil nas ruas. Depois de 2014, eles também conseguiram os recursos para a instrumentalizar a violência: eles tiveram a oportunidade de criar unidades armadas coligadas e uma ampla rede de centros de treinamento, acampamentos de verão, cafeterias simpatizantes e revistas. Esta infraestrutura talvez não exista em nenhum outro país europeu. Parece mais a política da extrema direita dos anos 30 na Europa do que a política contemporânea europeia de extrema direita – que não depende tanto da violência paramilitar, mas é capaz de conquistar uma parte bastante ampla do eleitorado.

BM

Quais são alguns dos aspectos incompreendidos ou desconhecidos da Revolta de Maidan de 2014 que o espectador ocidental pode não estar ciente?

VI

No Ocidente, o que se tornou dominante é a narrativa das ONGs profissionais, que foram uma parte importante da insurreição de 2014. Mas elas definitivamente não representavam toda a diversidade desta revolta e muito menos a diversidade deste grande país. Em suas narrativas, esta foi uma revolução democrática e pacífica contra um governo autoritário liderado por Viktor Yanukovych, que é provavelmente um dos poucos governantes do mundo a ter sido derrubado por duas revoluções.

Esta narrativa das ONGs profissionais e intelectuais liberais nacionais foi retomada pela mídia e pelas autoridades ocidentais, em parte porque era o que eles queriam ouvir. E as autoridades ocidentais apoiaram a Revolta de Maidan de forma bastante aberta. Para a UE, naquele momento, foi bastante inspirador, porque enquanto o povo na Grécia estava queimando bandeiras da UE, as pessoas na Ucrânia estavam balançando-as.

O medo dos nacionalistas radicais inspirou os protestos contrários à Maidan nas regiões sudeste da Ucrânia. A Rússia decidiu fornecer e, em um momento crucial, intervir e impedir a derrota dos rebeldes separatistas na região. O resultado é que uma parte de Donbass, uma região oriental ucraniana, fortemente industrializada e urbanizada, está agora sob o controle das chamadas repúblicas populares que devem ser vistas mais ou menos como estados fantoches russos.

BM

Quais são suas esperanças sobre como esta crise pode ser resolvida?

VI

Minha esperança é que haja uma solução pacífica para a crise. Todos nós esperamos que os russos não comecem uma invasão estúpida e não comecem a piorar, não apenas em Donbass, mas em todo o país.

Qualquer progresso na implementação dos acordos de Minsk – que tratam de como integrar os territórios separatistas pró-russos de volta à Ucrânia – seria certamente útil para a desaceleração da crise. Embora a maioria dos ucranianos não estejam satisfeitos com os acordos de Minsk – principalmente porque eles se mostraram ineficazes desde 2015 e não trouxeram paz a Donbass, não que a maioria dos ucranianos os considere inerentemente inaceitáveis – os protestos reais contra os acordos de Minsk foram bastante pequenos e não foram realmente apoiados pela maioria dos ucranianos.

Mas até agora, a Ucrânia não quer aceitar Minsk. Ela encontra desculpas diferentes para não fazer o que concordou junto com a França, a Alemanha e a Rússia. Uma das razões são as ameaças violentas muito explícitas dos nacionalistas na Ucrânia, que enxergam Minsk como uma rendição da Ucrânia. Para os nacionalistas, Minsk significa reconhecer a diversidade política da Ucrânia – que os ucranianos dissidentes não estão simplesmente zumbificados pela propaganda russa, e não são traidores nacionais; que têm razões muito racionais para não concordar com a narrativa nacionalista e que têm uma percepção alternativa da Ucrânia.

Se o governo ucraniano fosse sério em implementar os acordos, e não encontrasse desculpas apontando ameaças dos nacionalistas, eles poderiam pedir ajuda ao Ocidente – para uma posição muito consolidada dos Estados Unidos e da UE na rápida implementação dos acordos. Seria certamente útil para o governo ucraniano e desmotivaria a parte nacionalista da sociedade civil, especialmente aquelas partes que dependem diretamente da ajuda financeira do Ocidente.

Sobre os autores

VOLODYMYR ISHCHENKO

é um sociólogo que mora em Kiev. Publicou artigos e entrevistas no The Guardian e na New Left Review.

BRANKO MARCETIC

é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.

fonte: https://jacobin.com.br/2022/02/tudo-o-que-voce-sabe-sobre-a-ucrania-provavelmente-esta-errado/

Osvaldo Coggiola: Ucrânia, guerra “local” e crise mundial


Por Osvaldo Coggiola*

A guerra na Ucrânia é a expressão da passagem da crise mundial do terreno econômico e político para o bélico, e terá repercussões, inclusive militares, no mundo inteiro, das quais nenhum país poderá fugir, e nenhuma força política lavar as mãos, declarando-se neutra ou defendendo uma posição “equidistante”.

Embora Rússia apareça como “agressora”, o clima político da guerra foi cuidadosamente preparado pela grande mídia ocidental, pressionando seus governos, ao ponto de um pesquisador australiano concluir, na véspera do 24 de fevereiro, que “o roteiro para a invasão já parece ter sido escrito, e não necessariamente pela caneta do líder russo. As peças estão todas no lugar: a suposição da invasão, a prometida implementação de sanções e limites na obtenção de financiamento, além de uma forte condenação”.

Pouco ou nada foi dito na grande mídia ocidental sobre como a aliança da OTAN se expandiu, desde a dissolução e colapso da União Soviética em 1991, cada vez mais ameaçadoramente para a Federação Russa, o principal estado sucessor da antiga federação de nações que compunham a URSS.

Os mesmos EUA que impulsionam a extensão da OTAN até às próprias fronteiras da Rússia, visando, através de pressão e chantagem militar, a penetração de seus capitais por todo o antigo território soviético, anunciaram pouco antes disso uma forte retomada do seu crescimento econômico simultaneamente ao maior orçamento militar de sua história, dois fatos estreitamente vinculados.

Em início de 2014, foi defenestrado na Ucrânia Viktor Yanukovych, governante próximo da Rússia, no episódio conhecido como “Euromaidan”.

A retaliação russa foi a retomada da Crimeia, território cedido pela URSS à Ucrânia em 1954.

Depois da anexação da península, forças separatistas no Leste da Ucrânia, em regiões de maioria russa, fortaleceram seu pleito independentista.

Ante a possibilidade de redução do território ou mesmo de autonomia dessas regiões, o novo governo ucraniano, encabeçado por Volodymir Zelensky, recuperou o projeto de seu país para compor a OTAN.

Muito antes disso, treze países, a República Checa, Polônia, Hungria (1999), Estônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Romênia, Bulgária, Eslovênia (2004), Albânia, Croácia (2009) e Montenegro (2017), aderiram à OTAN desde aquele evento.

O cerco pelo Ocidente está quase concluído, agora é hora do cerco pelo Sul, com a Ucrânia, a Geórgia, a Moldávia, e possivelmente o Azerbaijão já tendo apresentado sua candidatura.

A operação está marcando passo no Leste, com os países da Ásia Central apoiando, pelo menos, por enquanto sua poderosa vizinha Rússia, também atendendo aos interesses de seu outro gigante vizinho, a China.

Washington acusa Moscou faz meses, mas não parou de deslocar porta-aviões e tropas para a fronteira russa.

A adesão da Ucrânia à OTAN traz imediatamente para a agenda geopolítica a implantação de ogivas nucleares em seu território: um míssil nuclear poderia cair sobre Moscou em um período de poucos minutos.


Em outras palavras, uma situação em que uma arma nuclear carregada estaria sendo apontada contra o coração da Rússia. Esta máquina de guerra é o que ameaça o futuro da humanidade na Europa e na Ásia, em primeiro lugar.

Diante do ataque russo, The Economist, histórico porta-voz britânico do grande capital, sugere que a OTAN aproveite a circunstância para ocupar toda a Europa do Leste, independentemente dos limites fixados pelos acordos precedentes.

A responsabilidade pela invasão militar da Ucrânia é, portanto, inteiramente da OTAN, que se espalhou do Atlântico Norte para a Ásia Central e militarizou todos os estados ao redor da Rússia.

Os dois meses de discussões desde o início da mobilização de tropas dentro da Rússia, depois para a Bielorrússia e os mares Báltico, Norte e Negro, terminaram, antes da invasão, em um impasse completo.

EUA e União Europeia se recusaram a assinar um compromisso de não incorporar a Ucrânia à OTAN, desmilitarizar os estados que fazem fronteira com a Rússia e reativar o tratado que contemplava a reunificação da Ucrânia, na forma de uma república federal.

Eclodiu uma guerra, como consequência, em primeiro lugar, de uma política de extensão da OTAN a todo o mundo.

O mesmo procedimento acontece no Extremo Oriente, onde EUA, Austrália, Nova Zelândia e Japão estabeleceram um acordo político-militar às portas da China.

A OTAN ocupou o Afeganistão, corredor entre o Oriente Médio e o Extremo Oriente, há catorze anos. Também participou no bombardeio e desmembramento da Líbia e armou as formações ditas islâmicas para derrubar o governo da Síria.

Agora, os governos da OTAN implementaram sanções econômicas, incluindo a suspensão, pelo governo alemão, da certificação do gasoduto NordStream2, que deveria completar o fornecimento de gás russo à própria Alemanha.

O bumerangue ucraniano é a expressão mais profunda da crise da política imperialista (não só dos EUA) mundial, que foi antecipada pela retirada sem glória do Afeganistão, o desastre na Líbia (“uma merda”, nas palavras textuais de Obama) e, sobretudo, no Iraque.

Reduzi-lo a um episódio de uma reformulação geopolítica internacional, em favor de um potencial bloco China-Rússia, contra os dominantes ocidentais tradicionais, seria um enfoque unilateral, ignorante do contexto de crise capitalista mundial, do conjunto dos fatores políticos internacionais postos em jogo, e até das dimensões históricas implicadas no conflito.

Por trás da movimentação agressiva impulsionada pelos EUA, filtram-se as condições precárias da retomada econômica norte-americana, que mal ocultam as condições de crise do maior capitalismo do planeta.

No terceiro trimestre de 2021, a dívida pública americana ultrapassou 28 trilhões de dólares, ou 125 % do PIB do país: o governo americano aumentou a dívida pública de forma enorme e, em condições de crise sanitária, não cobrou impostos de crise sobre as grandes empresas.

A promessa democrata de salário-mínimo de 15 dólares/hora foi abandonada, esse valor permanece em 7,25 dólares.

O orçamento militar ianque foi aumentado para US$ 720 bilhões, o maior desde a Segunda Guerra Mundial (apesar do desengajamento dos EUA no Afeganistão).

Na área de obras públicas, a administração Biden, com apoio republicano, aprovou um orçamento que favorece as grandes empresas de construção.

Deve-se lembrar que foi nos EUA que a pandemia do coronavírus resultou no maior número absoluto de mortes do mundo: mais de 820.000 até final de 2021.

Apesar da extrema gravidade da situação, Biden não executou nenhuma ação que entrasse em conflito com os interesses da Big Pharma.

Paralelamente, a concentração de capital aumentou como nunca antes na história: a Apple se tornou a primeira empresa da história a alcançar o valor de US$ 3 trilhões; em dezesseis meses, o valor da Apple subiu 50%.

Em 2021 as cinco maiores big techs (Apple, Google, Amazon, Microsoft e Facebook – Meta) bateram, juntas, o valor acionário de US$ 9,3 trilhões (já superaram os dez trilhões). Durante a pandemia, essas companhias foram as mais preparadas para lucrar com o “trabalho remoto”.

Na sua retomada de atitudes supostamente semelhantes às da “guerra fria”, os EUA aproveitam as contradições das políticas dos governos dos países antigamente subtraídos ao domínio imperialista pelas revoluções socialistas.

China e Rússia avançaram no caminho da restauração capitalista após os acontecimentos de 1989-1991. Presos às contradições do processo de restauração, estes países estão enfrentando agora uma escalada da pressão militar, econômica e política imperialista para impor-lhes, por todos os meios, subjugação total, fragmentação e lhes impor um novo tipo de colonização imperialista, mascarado como uma “mudança de regime democrático”.

Esses regimes não são capazes nem sequer estão dispostos a derrotar a ofensiva imperialista, buscam um compromisso improvável e uma acomodação impossível com o inimigo agressor de seus povos, em nome da “cooperação internacional”, a “multipolaridade”, um “acordo ganha-ganha”, todos os avatares das velhas fórmulas fracassadas de “coexistência pacífica” e do “socialismo em um único país”.

No Cazaquistão, ex-república soviética, os clãs recrutados na antiga burocracia deflagraram uma repressão no recente “janeiro sangrento”, com mais de 160 mortos, milhares de feridos e 10.000 detenções.

O Cazaquistão é o país mais rico da Ásia Central. Líder mundial na produção de urânio, também possui grandes depósitos de petróleo, gás natural, carvão, minérios, grandes quantidades de metais preciosos como manganês, cromo, potássio, titânio ou zinco.

Durante o tempo da URSS, a renda dessa riqueza, extraída em grande parte pelos deportados do gulag, foi capturada pelos principais executivos da burocracia. Depois de 1990, o clã Nazarbayev continuou a engordar vendendo a exploração desses recursos a multinacionais, numerosas no país.

Enquanto a maioria da população sobrevive com salários miseráveis nas cidades, e o campo é deixado ao subdesenvolvimento, uma oligarquia rica – algumas das fortunas do país estão nas paradas mundiais – espalha seu estilo de vida luxuoso.

Uma ditadura feroz preserva esses privilégios, monitora de perto a população, proíbe sindicatos e organizações independentes, sufoca toda a liberdade democrática e intervém com extrema violência sempre que ocorre um protesto.

Não estamos diante de uma nova “guerra fria”, opondo capitalismo e “socialismo real” (ou mesmo imaginário).

E comparar a “expansão étnica” da Rússia impulsionada por Putin com a expansão, também “étnica”, hitleriana em direção dos Sudetos tchecos e da Áustria em 1938, como fez a grande mídia, significa simplesmente esquecer que esta última foi explicitamente anuída pelas potências ocidentais na Conferência de Munique, do mesmo ano.

A semelhança é, portanto, apenas formal. A resistência russa à OTAN lança uma luz sobre a potencial desintegração da Rússia, encoberta pela sua “expansão”.

A dissolução da URSS, promovida pela burocracia encabeçada por Boris Ieltsin, sucedido por Putin, representou um passo em direção da desintegração nacional. A integração russa ao mercado mundial resultou em um retrocesso de suas forças produtivas e de sua economia.

Putin, agora, enfrenta a guerra como defensor dos interesses da oligarquia capitalista russa, depurada de alguns elementos mafiosos e beneficiária desse processo, contra o capital mundial.

O regime político na Rússia é uma expressão da tendência dissolvente existente na Rússia “capitalista”: estabeleceu uma sorte de bonapartismo buscando submeter as insuperáveis contradições sociais e nacionais da Federação Russa no espartilho da repressão política e da militarização.

As forças armadas da Rússia podem ocupar a Ucrânia, mas o sistema russo, economicamente muito enfraquecido, não é capaz de resistir à pressão do imperialismo capitalista mundial.

A inevitável fratura do bonapartismo de Putin reconsidera a alternativa da dissolução nacional. A Rússia é uma aglomeração de nações que assumiu, historicamente, a forma de um Estado, czarista, sob a pressão de outras potências, inclusive vizinhas.

A revolução bolchevique tentou superar essas contradições mediante a criação da URSS, como livre associação de nações, e impulsionando a revolução internacional (vale lembrar que, nos debates da época, Rosa Luxemburgo se opôs veementemente à concessão de independência nacional à Ucrânia, antigo território do Império – tendo sediado inclusive sua capital, Kiev – uma posição que estava bem longe de ser isolada).

A possível anexação hodierna da Ucrânia, direta ou encoberta, para integrar o espaço da Comunidade de Nações Independentes comandada pela Rússia, é uma operação imperialista do território imediatamente vizinho, que multiplica as contradições dos anexionistas.

Ignorar essa dimensão da crise, considerando-a “anacrônica”, em nome da “geopolítica internacional” ou qualquer disciplina assemelhada, é ignorar que Putin se referiu de modo bem explícito a ela na véspera do ataque à Ucrânia, inclusive em entrevistas com jornalistas ocidentais, que haviam adotado um tom agressivo em defesa da “soberania nacional” da Ucrânia:

“A Ucrânia moderna foi inteiramente criada pela Rússia ou, para ser mais preciso, pelos bolcheviques, a Rússia comunista. Esse processo começou praticamente logo após a revolução de 1917, e Lênin e seus associados o fizeram de uma maneira extremamente dura para a Rússia – separando, cortando o que historicamente era terra russa. Ninguém perguntou aos milhões de pessoas que vivem lá o que eles pensavam” – foram suas palavras.

Toda a discussão de Putin sobre a história, desde o estabelecimento da URSS em 1922 até seu desmoronamento em 1991, foi uma argumentação para um objetivo pouco velado: a refundação da Federação Russa com base nas fronteiras da Rússia czarista.

Tendo superado o trauma do colapso nacional, as classes dominantes russas estão agora voltando seu olhar para as antigas fronteiras da URSS, cujas fronteiras correspondiam, mais ou menos, às do território do império do czar.

Com exceção de Finlândia, Polônia e dos três países bálticos, todos os povos do império czarista decidiram ficar com o novo estado fundado com base na revolução de outubro de 1917.

O território geral da Rússia czarista e o da União Soviética era, aproximadamente, coextensivo.

Putin anseia restabelecer as fronteiras não da União Soviética, mas as da Rússia desde tempos imemoriais.

Falar sobre o desejo de Putin de restabelecer a União Soviética é uma mentira, já que o mesmo discurso prova amplamente que Putin é hostil à URSS e a vê, de acordo com quase todos os líderes da classe dominante da Rússia, como um desvio transitório do curso da história russa.

Putin aspira a uma reedição da Rússia czarista sem czar. Para este fim, ele inventa uma narrativa histórica que, por enquanto, se limita às relações entre a Rússia e a Ucrânia, mas não há dúvida de que, se for bem-sucedida no caso da Ucrânia, o establishment russo estenderá a outros antigos territórios czaristas.

Nas contradições internacionais suscitadas por essa política, e suas formulações ideológicas, tentam encontrar naturalmente seu lugar o deslocado Donald Trump e o tresloucado Jair Bolsonaro.

O epicentro da crise, porém, se situa no próprio sistema imperialista. A inadequação crescente da OTAN às relações internacionais abaladas tornava-se evidente à medida que suas operações militares culminavam em repetidos fracassos, revelando uma contradição histórica mais aguda.

A dissolução da União Soviética e a abertura da China ao mercado mundial pareciam anunciar uma expansão excepcional do capitalismo, mas as sucessivas crises mundiais mostraram suas limitações intransponíveis: a contradição entre o monopólio financeiro e militar dos EUA, por um lado, e seu recuo sistemático no mercado mundial, pelo outro.

Na OTAN, o imperialismo norte-americano tinha confrontos mais frequentes com seus aliados, suas operações internacionais, como no Iraque, não mais conseguiam se apoiar em “coalizões internacionais”.

Na crise ucraniana, a Rússia negociou com quatro ou cinco governos separadamente: os EUA, a Alemanha, a França e até a Turquia e a própria Ucrânia. A guerra ucraniana acentuará, primeiro em baixo do pano e depois em cima dele, a desintegração do aparelho político-militar ocidental.

O pano de fundo da crise ora bélica são as contradições da acumulação capitalista e a rivalidade entre os grandes capitais e entre os Estados que os representam.

As sanções econômicas da OTAN contra a Rússia são o reverso da badalada “globalização”. Medidas econômicas “de exceção” são adotadas por países que temem se envolver em uma grande guerra comercial.

A guerra cria a ameaça de um deslocamento do comércio e das finanças internacionais, já afetadas pelo golpe que as cadeias produtivas internacionais receberam no quadro da pandemia. O governo Putin desencadeou operações militares sob a pressão de um impasse estratégico, da mesma forma que a OTAN buscou esse resultado e insistiu em provocá-lo, como uma saída para o seu.

Rússia está sob o domínio de uma oligarquia e de uma burocracia sem outro título além da sua recente ascensão e expropriação da propriedade estatal, um capitalismo rastaquera que o capital internacional quer deslocar de forma absoluta ou relativa para seu próprio benefício.

O motivo da discórdia e da guerra não é a independência da Ucrânia, a atual é uma guerra pela reconfiguração política internacional de um mundo capitalista em crise e decadência.

Politicamente, o internacionalismo proletário, porém, está ausente.

A presença, nesta crise mundial aprofundada, de uma estratégia internacionalista dos trabalhadores, em defesa de uma paz baseada na derrota das provocações militares imperialistas, da perspectiva de uma livre associação e complementação dos povos e nações, depende de um debate internacional que a esquerda, se for consequente, deve promover com urgência, que resulte numa estratégia anti-imperialista e anticapitalista, independente das burocracias e das oligarquias neocapitalistas, e unificada no mundo todo.

*Osvaldo Coggiola é professor titular de História Contemporânea da USP. Autor, entre outros livros, de Teoria econômica marxista: uma introdução (Boitempo).

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fonte: https://www.viomundo.com.br/politica/osvaldo-coggiola-ucrania-guerra-local-e-crise-mundial.html

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Crônica de uma guerra anunciada

26/02/2022

Imagem: Konrad Ciężki

Por CHRIS HEDGES*

Se a Rússia não aceitasse ser novamente o inimigo, então a Rússia seria pressionada a tornar-se o inimigo 

Estive na Europa do Leste em 1989, relatando as revoluções que derrubaram as ditaduras comunistas ossificadas que levaram ao colapso da União Soviética. Foi um tempo de esperança. A OTAN, com o desmembramento do império soviético, tornou-se obsoleta. O presidente Mikhail Gorbachev estendeu a mão a Washington e à Europa para construir um novo pacto de segurança que incluiria a Rússia. James Baker, secretário de estado na administração Reagan, juntamente com o ministro das relações exteriores da Alemanha Ocidental Hans-Dietrich Genscher, garantiu ao líder soviético que, se a Alemanha fosse unificada, a OTAN não seria estendida para além das novas fronteiras.

O compromisso de não expandir a OTAN, também assumido pela Grã-Bretanha e França, parecia anunciar uma nova ordem mundial. Vimos os dividendos da paz pendurados diante de nós, a promessa de que as enormes despesas com armas que caracterizaram a Guerra Fria seriam convertidas em despesas com programas sociais e infraestruturas que há muito tinham sido negligenciadas para alimentar o apetite insaciável dos militares.

Naquela época, havia um entendimento quase universal entre diplomatas e líderes políticos de que qualquer tentativa de expansão da OTAN era uma insensatez, uma provocação injustificada contra a Rússia que obliteraria os laços e vínculos que felizmente surgiram no final da Guerra Fria.

Como éramos ingênuos. A indústria bélica não pretendia reduzir seu poder ou seus lucros. Começou quase imediatamente a recrutar os antigos países do Bloco Comunista para a União Europeia e a OTAN. Os países que aderiram à OTAN, que agora inclui a Polônia, Hungria, República Checa, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte, foram forçados a reconfigurar suas forças armadas, muitas vezes através de grandes empréstimos, para se tornarem compatíveis com o equipamento militar da OTAN.

Não haveria dividendos da paz. A expansão da OTAN tornou-se rapidamente uma bonança multibilionária para as empresas que tinham lucrado com a Guerra Fria. (A Polônia, por exemplo, acabou de concordar em gastar 6 bilhões de dólares em tanques M1 Abrams e outros equipamentos militares dos EUA). Se a Rússia não aceitasse ser novamente o inimigo, então a Rússia seria pressionada a tornar-se o inimigo. E aqui estamos nós. À beira de outra Guerra Fria, da qual só a indústria bélica se beneficiará, enquanto, como escreveu W. H. Auden, as crianças pequenas morrem nas ruas.

As consequências de empurrar a OTAN para as fronteiras com a Rússia – agora há uma base de mísseis da OTAN na Polônia a 100 milhas da fronteira russa – eram bem conhecidas dos responsáveis políticos. Ainda assim, fizeram-no de qualquer forma. Não fazia qualquer sentido geopolítico. Mas fazia sentido comercial. Afinal, a guerra é um negócio, e muito lucrativo. É por isso que passamos duas décadas no Afeganistão, embora houvesse um consenso quase universal, após alguns anos de lutas infrutíferas, que tínhamos mergulhado num pântano que nunca poderíamos vencer.

Num telegrama diplomático classificado, obtido e divulgado pelo WikiLeaks, datado de 1 de fevereiro de 2008, escrito de Moscou e dirigido aos Chefes do Estado-Maior Conjunto, à Cooperação OTAN-União Europeia, ao Conselho de Segurança Nacional, ao Coletivo Político Rússia-Moscou, ao secretário da defesa e ao secretário de estado, houve um entendimento inequívoco de que a expansão da OTAN arriscava um eventual conflito com a Rússia, especialmente em relação à Ucrânia.

“A Rússia não só percebeu o cerco [pela OTAN], e os esforços para minar a influência da Rússia na região, mas também teme as consequências imprevisíveis e descontroladas que afetariam seriamente os interesses de segurança russos”, lê-se no telegrama. “Os especialistas dizem-nos que a Rússia está particularmente preocupada com o fato de que as fortes divisões na Ucrânia em relação à adesão à OTAN, com grande parte da comunidade étnico-russa contra, possam levar a uma grande cisão, envolvendo violência ou, na pior das hipóteses, uma guerra civil. Nessa eventualidade, a Rússia teria que decidir se interviria; uma decisão que a Rússia não quer ter que enfrentar…

Dmitri Trenin, Diretor Adjunto do Centro Carnegie de Moscou, manifestou receio de que a Ucrânia seja, a longo prazo, o fator mais potencialmente desestabilizador nas relações EUA-Rússia, dado o nível de emoção e nevralgia desencadeado por sua busca pela adesão à OTAN… Uma vez que a adesão permaneceu um assunto de divisão na política interna ucraniana, criou-se uma abertura para a intervenção russa. Trenin manifestou temor de que elementos do establishment russo fossem encorajados a intrometer-se, estimulando os EUA a encorajarem abertamente as forças políticas opositoras, e deixando os EUA e a Rússia numa postura clássica de confrontação”.

A administração Barack Obama, não querendo inflamar ainda mais as tensões com a Rússia, bloqueou a venda de armas para Kiev. Mas este ato de prudência foi abandonado pelas administrações de Donald Trump e Joe Biden. Armas dos EUA e da Grã-Bretanha estão sendo despejadas na Ucrânia, parte do 1,5 bilhão de dólares prometido em ajuda militar. No equipamento, estão incluídas centenas de sofisticadas armas anti-tanque Javelins e NLAW, apesar dos repetidos protestos de Moscou.

Os Estados Unidos e seus aliados da OTAN não têm qualquer intenção de enviar tropas para a Ucrânia. Pelo contrário, inundarão o país com armas, o que foi feito no conflito de 2008 entre Rússia e Geórgia.

O conflito na Ucrânia ecoa o romance Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Márquez. No romance, o narrador reconhece que “nunca houve uma morte tão anunciada”, e, no entanto, ninguém foi capaz ou disposto a impedi-la. Todos nós que informávamos a partir da Europa do Leste em 1989 conhecíamos as consequências de provocar a Rússia, e, não obstante, poucos levantaram a voz para impedir a loucura. Os passos metódicos em direção à guerra ganharam vida própria, movendo-nos como sonâmbulos em direção ao desastre.

Quando a OTAN se expandiu para a Europa do Leste, a administração Clinton prometeu a Moscou que as tropas de combate da OTAN não seriam estacionadas na Europa do Leste, a questão decisiva do “Ato Fundador OTAN-Rússia sobre Relações Mútuas” de 1997. Esta promessa revelou-se, outra vez, uma mentira. Depois, em 2014, os EUA apoiaram um golpe contra o presidente ucraniano Viktor Yanukovych, que procurou construir uma aliança econômica com a Rússia em vez da União Europeia. Claro que, uma vez integrada à União Europeia, como se viu no resto da Europa do Leste, o passo seguinte é a integração à OTAN. A Rússia, assustada com o golpe, alarmada com as propostas da UE e da OTAN, anexou então a Crimeia, em grande parte povoada por falantes de russo. E a espiral de morte que nos levou ao conflito atualmente em curso na Ucrânia não pode mais ser contida.

O estado de guerra precisa de inimigos para se sustentar. Quando um inimigo não pode ser encontrado, um inimigo é fabricado. Putin tornou-se, nas palavras do senador Angus King, o novo Hitler, pronto para agarrar a Ucrânia e o resto da Europa do Leste. Os gritos de guerra, ecoados sem constrangimento pela imprensa, justificam-se drenando o conflito do contexto histórico, elevando-nos como os salvadores, e a quem quer que nos oponhamos, de Saddam Hussein a Putin, como o novo líder nazista.

Não sei onde isto vai parar. Devemos lembrar, como Putin nos lembrou, que a Rússia é uma potência nuclear. Devemos lembrar que, uma vez aberta a caixa de Pandora da guerra, ela desencadeia forças obscuras e assassinas que ninguém pode controlar. Eu sei disto por experiência própria. O fósforo foi aceso. A tragédia é que nunca houve qualquer disputa sobre como a conflagração começaria.

*Chris Hedges é jornalista. Autor, entre outros livros, de Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle (Nation books).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no portal Scheerpost.

fonte: https://aterraeredonda.com.br/cronica-de-uma-guerra-anunciada/?doing_wp_cron=1645974534.6213219165802001953125

A posição chinesa

26/02/2022

Imagem: Zhang Kaiyv

Por ELIAS JABBOUR*

A posição chinesa à crise na Ucrânia, longe de ser de uma “neutralidade estratégica”, é um aviso

Compreender a posição chinesa no recente conflito ucraniano passa por perceber ao menos dois fatos que marcam nossa época. O primeiro, relacionada à meteórica ascensão chinesa e o surgimento do que chamamos de uma “nova formação econômico-social”, centrada em uma imensa base produtiva e financeira públicas cujas lógicas de funcionamento escapam a qualquer teoria do desenvolvimento. O segundo acaba de ocorrer, mas que vem sendo desenhado desde o fim de 2021, quando a Rússia decidiu colocar seus próprios termos à mesa em relação ao destino da Ucrânia como última fronteira de expansão da OTAN.

A combinação entre os dois fatos/fenômenos nos apresenta uma dupla desmoralização do Ocidente: a Covid-19 expôs os limites do capitalismo financeirizado frente à força do socialismo chinês; e a atual cartada russa marca a desmoralização política e militar dos EUA e, consequentemente da OTAN. Estaríamos, assim, diante de condições objetivas ao surgimento de um nova Paz Vestfália – inclusive já proposta pelas chancelarias russa e chinesa. No documento apresentado pelos dois países, fica evidente uma proposta à opinião pública de “refundação” do sistema internacional criado pelos europeus há quatro séculos.

É no contexto desta carta que os chineses – pedindo cautela aos envolvidos e sugerindo distância aos EUA – se posicionam. Sem alardes, sem palavras de ordem. Apenas levando à reflexão do quão é inaceitável e sem lógica racional as ondas de expansão da Otan. Qual seria a reação da opinião pública internacional caso Rússia posicionasse mísseis e armas nucleares em direção à Washington, utilizando-se das fronteiras dos EUA com o México, Canadá ou reabrindo uma base militar em Cuba?

E a ação militar russa. Ficamos entre a estática e a dinâmica. A estática é a preferência dos analistas e jornalistas ocidentais. Em dinâmica, a posição chinesa é no mínimo certeira. “Acredito que a operação militar da Rússia é uma reação de Moscou à pressão dos países ocidentais sobre a Rússia por um longo tempo”, disse Yang Jin, pesquisador associado do Instituto de Rússia, Europa Oriental, e Estudos da Ásia Central sob a Academia Chinesa de Ciências Sociais, ao jornal chinês Global Times.

A chancelaria chinesa é ainda mais objetiva. Segundo sua porta-voz, “as preocupações legítimas de segurança da Rússia devem ser levadas a sério e tratadas”. Há relatos de que Putin considera que a melhor solução é que a Ucrânia se recuse a aderir à OTAN e permaneça neutra. A opinião convergente não diz respeito somente ao caso ucraniano, mas também às constantes ameaças à soberania nacional chinesa impostas pela presença militar ocidental.

A China de hoje não é mais aquele país que recebia capital estrangeiro e fazia engenharia reversa. Acabou o tempo do low profile. Na mesma proporção, os legítimos interesses chineses em matéria de segurança nacional têm sido violados pelos EUA. Taiwan continua se armando e sendo atiçada a declarar sua independência. Uma aliança militar foi formada por EUA, Austrália e Reino Unido para conter (sic) um tal de “expansionismo chinês”. Novamente a broma. É como se porta-aviões chineses estivessem passeando impunemente pelo golfo do México, mas ocorre o oposto. A China é constantemente provocada no estreito de Taiwan e no mar do sul da China.

Após a completa derrota e desmoralização dos EUA no Oriente Médio, e com a China ocupando rapidamente o espaço econômico aberto pelo lastro de destruição deixado pelo “ocidente”, restou ao atlantismo uma jogada arriscada e nada inteligente: unir a China e a Rússia em um jogo que nada tinha a ver com a conveniência ideológica pós-1949, cujas fissuras foram muito bem contra a URSS. O movimento hoje é oposto. Uma união eurásica está sendo imposta de fora para dentro dos territórios russo e chinês.

A posição chinesa, longe de ser de uma “neutralidade estratégica”, é um aviso. Se a ascensão chinesa em si já era o grande fato de nosso tempo, junta-se a ela o xeque-mate de Putin sobre os EUA e a OTAN. Uma nova história começa no mundo. Talvez uma nova Vestfália.

*Elias Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo).

fonte: https://aterraeredonda.com.br/a-posicao-chinesa/?doing_wp_cron=1645974539.9984109401702880859375

O conflito russo-ucraniano

26/02/2022

Imagem: Zachary DeBottis

Por GUSTAVO FELIPE OLESKO

Na disputa entre gigantes na Ucrânia está  também um novo ordenamento político internacional 

Muito se fala na grande mídia sobre o conflito russo e ucraniano, porém, de modo enviesado, raso, imediatista e muitas vezes impreciso no sentido histórico e geográfico. Busca-se aqui fazer uma breve apresentação que, ao esclarecer alguns pontos, auxilie na compreensão geral do conflito. Destarte cabe uma observação: existe no meio político, militante e jornalístico a tendência para o posicionamento. Posicionamento aberto, por opção política ideológica é uma coisa, contudo o que se vê é uma clara confusão entre o bem e o mau, o certo e o errado. Na absoluta maioria das vezes, em se tratando de economia política e/ou geopolítica não existem tais dicotomias, mas sim uma diferenciação de colocações e objetivos.

Outro ponto ignorado é que a geopolítica não é feita ao léu, sem estudo, teoria e consequente práxis, muito pelo contrário. De modo geral temos três bases para qualquer movimento político no campo global: as teorias do poder terrestre, marítimo e aéreo, as quais não se anulam necessariamente, inclusive podem vir a se somar (como é o caso estadunidense). Explicando em grossos traços, a teoria do poder terrestre, que remete ao geógrafo Mackinder[i] ainda no início do século XX e que posteriormente foi ampliada por Spykman[ii], remete a noção de que toda disputa territorial se baseia numa luta por recursos sejam eles naturais ou humanos, e que existe um condicionamento das lutas (diplomáticas ou militares) que se baseia também nas realidades físicas e naturais dos países.

Para tanto, cunhou a noção de heartland, que seria justamente a posição russa, uma vez que esta seria autônoma em recursos humanos e naturais. Para Mackinder quem dominasse tal região dominaria o mundo. Spykman vai além, versa que a centralidade se dá nas margens desse heartland, o chamado Rimland, e crava: dominar o rimland causa o sufocamento do heartland. Qualquer semelhança com a política do cordão sanitário efetuada contra a URSS não é coincidência.[iii]

Temos ainda a teoria do poder marítimo, descrita por Mahan,[iv] historiador e militar inglês, como aquela que se baseia no poderio marítimo, onde o país que controla o mar, controla o funcionamento global. Contudo alerta: é necessário para tal investimentos pesados do Estado em Marinha, além de o país possuir portos profundos e perenes, ou seja, utilizáveis o ano todo. De início ambas teorias eram debatidas como antagônicas, contudo Haushofer[v], geógrafo, político e militar alemão, professor do nazista Rudolf Hess, entende ambas como complementares. É o primeiro pensador que leva em conta a ideia da divisão do mundo em esferas de influência, algo corriqueiro no mundo pós Segunda Guerra Mundial.

Por fim temos a teoria do poder aéreo, primeiramente proposta por Douhet, militar italiano que ao analisar o desenvolvimento militar da Primeira Grande Guerra, onde as marinhas serviam para a defesa, o exército estava preso nas trincheiras, via somente nas aeronaves a possibilidade de ataque.  Douhet ainda no início do séc. XX propunha o ataque indiscriminado contra a população com o objetivo de afetar o moral do país atacado. Warden,[vi] major dos EUA, estuda tal teoria ainda nos anos 1970 e posteriormente coloca em prática a mesma na primeira guerra do golfo, onde os EUA atacam pelo ar, sem invasão terrestre, pontos estratégicos do Iraque, deixando o país destruído em pouco tempo.

Ressaltamos que as três teorias se mesclam no caso das superpotências, sendo elas a base de todo o desenvolvimento geopolítico estadunidense durante a Guerra Fria e a atualidade, tendo Kissinger e posteriormente Brzezinski[vii] como mestres do entendimento destas para a construção do xadrez global que rege a política externa dos EUA (e OTAN).

Isso posto, é necessário fazer um levantamento de antecedentes que levaram a disputa que hoje vemos.  Em primeiro lugar, o que muitos tem tratado como sandice de Putin, é um fato histórico: o povo russo, a cultura russa, nasceu no que hoje é a Ucrânia, para ser mais específico em Kievin Rus’ ainda no século IX. Confederação que nasceu já multiétnica, de uma cidade, Kiev, a qual foi fundada por vikings (varegues em latim), onde se encontravam e faziam as mais diversas trocas eslavos, os próprios varegues, fino-úgricos e bálticos[viii]. Uma miscelânea típica e normal até a emergência do nacionalismo no fim do século XVIII e início do século XIX. Este é o primeiro ponto para compreensão do conflito: Putin recorda de um passado remoto e idealizado para justificar a trama complexa da invasão.

Figura 1 – Principados de Kievan RUs’

Segundo ponto é do próprio histórico do povo ucraniano. Uma vez que o gérmen do povo russo é na Ucrânia e não em suas próprias fronteiras, é imprescindível observar que há uma cisão entre ambos os grupos eslavos. No século XIII ocorre uma fragmentação acelerada de Kievan Rus e a subsequente invasão mongol e conquista dos mongóis sobre terras dos eslavos orientais. Posteriormente o Canato da Ordem Dourada domina as estepes da hoje Ucrânia, Rússia e Cazaquistao, ficando no poder durante um século nestas terras, produzindo, entretanto, dois antagonistas de peso: O Ducado de Moscou e o Ducado Lituano. Ambos se expandem ao longo do tempo e conseguem limitar o poder do Canato a Crimeia[ix] e destroem o breve momento de “autonomia” dos ucranianos, dado sob o Hetmanato cossaco, que dura entre 1649 e 1775.

Até os dias atuais a Crimeia possui populações significativas de Tártaros, descendentes diretos dos povos turcos formadores do Canato. Aqui entra o segundo ponto: a justificativa da anexação por parte da Rússia da Crimeia, ou seja, libertar os tártaros e os russos ali residentes do jugo ucraniano; e também a raiz do racismo ucraniano frente aos russos uma vez que os primeiros seriam ‘mais puros’ do que os segundos, uma vez que ficaram menos tempo sob domínio estrangeiro. Curiosa é a reflexão que podemos fazer sobre esse conflito: o presidente da Ucrânia é judeu, foi eleito dentre outras bandeiras como alguém que respeitaria um país multiétnico, entretanto a direita ultranacionalista continua a mandar no jogo. Outro elemento curioso é o de que várias ex-repúblicas soviéticas possuíam um natsional’nost, uma categoria que não pode ser confundida com a noção de nacionalidade: o sujeito é mais que sua nação e ao mesmo tempo é menos, é um sujeito soviético, uma mescla de elementos de diversas nacionalidades.[x]

Figura 2 – Hetmanato em sua expressão territorial máxima, nos idos do séc. XVII

Figura 3 – Ucrânia em 1700, dividida entre Polonia-Lituania, Rússia e Áustria

A partir deste ponto o povo ucraniano foi dividido entre o Império dos Habsburgos, ficando em suas mãos a região dos Carpatos, a parte mais ocidental do país, que em um primeiro momento pertenceu a potência da Europa Oriental durante os séculos XV e XVI, a Comunidade Polaco-Lituana e o restante com o nascente Império Czarista Russo. Cabe ressaltar que o que hoje se entende como Ucrânia era, de modo geral, uma grande amalgama de povos, eslavos os quais já tinham adquirido elementos culturais dos povos turcos, trocado relações intensas com eslavos ocidentais da Polônia, e se convertido ao Catolicismo Ortodoxo, o grande símbolo disto são os Cossacos, imortalizados na cultura ucraniana no romance de Taras Bulba de Nikolai Gogol[xi] ou nos poemas de Taras Shevchenko[xii]

Figura 4 – Ucrânia em 1900, dividida entre Rússia e o Império Austro Húngaro

Sendo assim, os rutenos, como então era conhecidos os ucranianos, vão sendo de um lado germanizados, doutro “polonizados” e de outro russificados. A proibição da língua ucraniana sob o Império Russo somente produz mais resistência no âmbito cultural e o início de uma ruptura mais intensa. Ainda que o pan-eslavismo estivesse em voga com força máxima no século XIX, com a Rússia colocando-se como protetora destes, o sentimento de rivalidade vai ganhando força no cotidiano, fazendo inclusive nascer neste mesmo período a alcunha que hoje nomeia este povo: ucranianos. Os antes rutenos, rusyns, malorussos (pequenos russos, diferenciando este povo dos russos brancos – bielorussos – e dos grão-russos), agora são unificados em torno da palavra Ucrânia (há todo um debate acerca da origem do termo, para a maioria dos pesquisadores significa Fronteira, para outros Região).

É somente com a Revolução de 1917 que o país se torna, de fato, uma república,[xiii] de curta duração, mas é ali que grandes batalhas da Guerra Civil (1917-1921) são travadas, especialmente entre o exército vermelho e o branco, mas também entre o exército negro[xiv] (Anarco Comunista, de Nestor Makhno) e as forças contra-revolucionárias. Com isso passa a ser uma das 15 repúblicas que formavam a União Soviética, com língua, cultura, história e autonomia, assim como preconizava a autodeterminação dos povos proposta e colocada em prática por Lenin. Cabe destacar que a atuação das forças ucranianas na Revolução e na Guerra civil foram imprescindíveis para a vitória destas.[xv]

A região industrial de Donbass, a qual era a segunda mais importante ainda no império Russo, ganha ainda mais importância. A república ucraniana passa a ser o celeiro da URSS[xvi] com seu solo tchernozion extremamente fértil e ao mesmo tempo a indústria pesada do país, cuja utilização das enormes reservas de carvão justamente em Donetsk impulsionou seu desenvolvimento[xvii]. Porém, nem tudo é tranquilo. Stalin assume o poder após toda uma enorme trama de disputa interna, inverte as lógicas de Lenin, acaba com a autodeterminação dos povos e impõe uma russificação forçada, que produz justamente nessa parte da URSS uma enorme resistência.

A coletivização forçada do campesinato soviético é uma das expressões de uma luta interna para minar completamente a resistência a traição da revolução e o massacre do Holodomor[xviii] é uma dessas faces, onde entre 2 e 4 milhoes de camponeses ucranianos morre de fome. A resistência é aniquilada, a elite intelectual bolchevique, social-revolucionária e anarco-comunista ucraniana, importantíssima para a revolução é dizimada ou silenciada, e a russificação de Donbass e do sul do país acelera.

Até o fim da URSS a Ucrânia era a ponta de lança de seu desenvolvimento (mapa abaixo): possuía grandes centros industriais – o mais famoso sendo o Antonov, famoso pelos enormes cargueiros – e pela pujança de sua agricultura, ainda que baseada no monocultivo e de produtividade enfraquecida pelos Kolkozes e Sovkozes em vez de uma agricultura camponesa de ponta[xix].

É somente em 1991 que o país consegue sua independência com o esfacelamento da URSS e passa a ser comandada por diversos presidentes pró-Rússia. O desenrolar do fim do séc. XX é o da apoteose do Império Estadunidense, o qual a partir de 1997 passa a avançar de maneira incisiva sobre as ex-repúblicas socialistas do leste, absorvendo praticamente quase todos para a OTAN e posteriormente para a União Europeia. As Guerras da antiga Iugoslávia são a expressão mais dura e sangrenta desse processo de corte na carne da influência russa no restante do continente europeu.

Figura 5 – Representação dos mapas da URSS, mostram a importância da Ucrânia na esfera econômica do país.

Putin assume a Rússia em 1999 com um país em frangalhos: quebrada e dependente do ocidente e do FMI; perdendo sua influência sobre seus antigos satélites da Europa Oriental, mas ainda com braços inseparáveis de seus vizinhos Belarus e Ucrânia, no caso as linhas de gás para abastecimento da Europa Ocidental. Cabe ressaltar que quando do fim da URSS existia um acordo onde a Rússia e demais antigas repúblicas do bloco socialista iriam formar, junto da Europa, uma “casa comum europeia” e que a OTAN seria desativada uma vez que havia perdido o sentido, ou seja, a defesa do ocidente de ameaça soviética. Ambos os pontos não foram cumpridos, muito pelo contrário, a OTAN e a União Europeia avançaram, excluindo a Rússia.

Aqui surge o terceiro ponto: a teoria geopolítica de Spykman posta em jogo novamente, o domínio do Rimland para o sufocamento do heartland, ou seja, da Rússia, seu isolamento político, econômico, geográfico, enfim, total. E isso andando em conjunto com a teoria do xadrez global, o qual remete que cada movimento geopolítico deve ser meticulosamente pensado, criando problemas para distração ou gasto de energia do adversário, a fertilização de problemas que Kissinger já apregoava ainda nos anos 1970-1980. É isto que a OTAN faz com a Rússia.

Putin como presidente e Lavrov como chanceler tem pleno conhecimento disso tudo. A Guerra na Ucrânia não é um acaso, uma fatalidade, é a consequência de tudo o que colocamos anteriormente. Se para os EUA e a OTAN seu avanço sobre a Europa Oriental se deu com o objetivo de sufocamento russo, a Rússia responde tentando quebrar o laço que se coloca em seu entorno. Cabe lembrar que, diferentemente do que OTAN, ONU e a mídia ocidental colocam, este não é o maior conflito em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial e não é a primeira agressão a um país soberano desde a mesma guerra.

A sangrenta Guerra da Iugoslávia (1991-1995) foi o que? Este sim foi o maior conflito em solo europeu até agora, com aproximadamente 150 mil mortos. E o bombardeiro de Belgrado em 1999? Não foi um ataque injustificável da OTAN a um país soberano? Ambos os conflitos, o primeiro iniciado com a falência da Iugoslávia através do FMI[xx] e o segundo como consequência deste, foram atos de avanço da EU, OTAN e da política de saque do capitalismo neoliberal sobre o leste, foram os pontos que mesmo causando necrose foram dados em cima de áreas que não eram de sua influência.

O conflito atual é a expressão máxima (até o momento) da expansão da máquina EUA-UE, via seu braço militar a OTAN. Putin é um representante da oligarquia corrupta que se ergueu após o fim da URSS e tenta, ao seu modo, parar este avanço. A invasão foi a medida encontra pela Rússia, acuada e atacada desde 1991, buscar se reposicionar no xadrez global como um jogador importante e que o faz com objetivos claros: primeiro é criar um tampão entre seu território e o território da UE uma vez que a defesa de uma larga planície (ver mapa abaixo) é extremamente difícil, lembrando que os ataques de Napoleão e Hitler sobre a Rússia penetram profundamente no território russo, dentro outros motivos, graças a sua geografia; segundo é assegurar que um país com qual tem laços históricos, econômicos, sociais e culturais não lhe escape totalmente; terceiro e não menos importante, o imperialismo necessita não somente de matérias primas, mas também de mercados, e hoje o mercado ucraniano não pode ser desdenhado, sendo importante escoadouro de produtos russos. O mesmo vale para a UE, os objetivos de ambos são os mesmos, ainda que para o bloco antagonista russo exista o plus do enfraquecimento de seu inimigo.

Figura 6 em cinza área de planície na Europa. Note a diferença entre a área quanto mais se vai para a Rússia

Por fim, a caixa de pandora foi aberta. EUA e União Europeia pressionaram o governo de Putin ao máximo, por décadas, o qual agiu para defesa justamente de suas oligarquias, especialmente as do setor energético, mas também a máquina pública, a qual controla o complexo industrial militar russo, um dos mais desenvolvidos do globo. Cabe destacar que, nos últimos 30 anos, a Ucrânia foi lentamente pendendo cada vez mais para o lado ocidental, tendo no poder elementos evidentemente neonazistas (o setor direito, Pravyy sektor, ultranacionalista) e/ou reacionários como o partido Svoboda do ex presidente Poroshenko. Justamente isso se dá ao lado da Rússia governada pelo estandarte global da direita reacionária, Putin, que tem como marca própria o combate ao neoliberalismo, mas não ao modelo de exploração capitalista.

Na disputa entre gigantes, de lado se coloca o capital pós-moderno e de outro o capital-estatal, de um lado o imperialismo decadente dos EUA, doutro a luta pelo ressurgimento/manutenção do poderio russo. Ambos se dão em cima dos trabalhadores e trabalhadoras urbanos da Ucrânia, do já pobre e agora sufocado campesinato ucraniano, o qual sofre com a guerra, com a perda de terras pela contra-reforma agrária de seu presidente, pela monopolização de seu território. Quais as possíveis consequências? As econômicas são mais fáceis de prever, uma escalada dos preços do gás, petróleo e trigo, commodities as quais a Rússia tem papel importante no mundo, mas e as políticas? Não cabe fazer aqui “futurologia”, contudo há uma possibilidade de a Ucrânia ter o destino da Iugoslávia, sendo desmembrada em dois, ou anexada na pior e mais remota das hipóteses. Outra possibilidade é também o retorno ao status quo e a neutralidade, a “finlandização” da Ucrânia, chance esta que evitaria um banho de sangue nas estepes. Concluindo, perdem as classes exploradas, ganham as oligarquias e monopólios capitalistas do mundo.

Figura 7 – Possível cenário futuro para a Ucrânia.

*Gustavo Felipe Olesko é doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo (USP).

Notas


[i] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império Americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Editora José Olympio, 2017.

[ii] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A segunda guerra fria: geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos: das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015.

[iii] SYDORENKO, Dmytro et al. Heartland como um dos objectivos estratégicos do Estado Russo: da fundação da Rússia à actualidade. 2015. Tese de Doutorado. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.

[iv] VIOLANTE, Alexandre Rocha. A teoria do poder marítimo de Mahan: uma análise crítica à luz de autores contemporâneos. Naval war college journal, v. 21, n. 1, p. 223-260, 2016.

[v] DE SOUZA ARCASSA, Wesley; MOURÃO, Paulo Fernando Cirino. Karl Haushofer: A Geopolitik alemã e o III Reich. Geografia em Atos (Online), v. 1, n. 11, p. 1-14, 2011.

[vi] MENDES, Flávio Pedroso. O Poder aéreo no século XXI. Meridiano 47, v. 14, n. 138, p. 23, 2013.

[vii] BRZEZINSKI, Zbigniew. Strategic vision: America and the crisis of global power. Basic books, 2012.

[viii] PETROVICH, Michael B. Andrzej Walicki. A History of Russian Thought from the Enlightenment to Marxism. Translated by Hilda Andrews-Rusiecka. Stanford: Stanford University Press. 1979. Pp. xvii, 456. $25.00. 1981.

[ix] SEGRILLO, Angelo. Os russos. Editora Contexto, 2013.

[x] SHANIN, Teodor. Ethnicity in the Soviet Union: analytical perceptions and political strategies. Comparative studies in society and history, v. 31, n. 3, p. 409-424, 1989; SHANIN, Teodor. Soviet theories of ethnicity: The case of a missing term. New Left Review, v. 158, p. 113-122, 1986.

[xi] GOGOL, Nikolai. Taras Bulba. Trad. Francisco Bittencourt, São Paulo, Abril Cultura, 1982.

[xii] SHEVCHENKO, Taras. Kobzar. Trad. Peter Fedynsky, Glagoslav Plub, Canada, 2013.

[xiii] SZPORLUK, Roman. Lenin,” Great Russia,” and Ukraine. Harvard Ukrainian Studies, v. 28, n. 1/4, p. 611-626, 2006.

[xiv] MAKHNO, Nestor; SKIRDA, Alexandra; BERKMAN, Alexandre. Nestor Makhno e a revolução social na Ucrânia. Imaginário, 2001.

[xv] Existe uma vasta bibliografia sobre o tema, especial os livros ainda não traduzidos de Teodor Shanin, escritos após a queda da URSS em sua maioria escritos em conjunto com Viktor P. Danilov. Estes retratam os anarquistas seguidores de Makhno, a Antonovchina ou rebelião de Tambov, ambas no território da hoje Ucrânia como elementos vitais para a sobrevivência da revolução bolchevique, ainda que tais movimentos não fossem do partido, mas sim anarco-comunistas e socialistas revolucionários.

[xvi] DANILOV, Viktor P. October and the Party’s Agrarian Policy. Soviet Law and Government, v. 27, n. 4, p. 35-51, 1989.

[xvii]  MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A Desordem Mundial. O espectro da total dominação. Guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017.

[xviii] DANILOV, Viktor Petrovich. The Commune in the Life of the Soviet Countryside before Collectivisation. In: Land Commune and Peasant Community in Russia. Palgrave Macmillan, London, 1990. p. 287-302; DANILOV, VIKTOR. The issue of alternatives and history of the collectivisation of Soviet agriculture. Journal of Historical Sociology, v. 2, n. 1, p. 1-13, 1989.

[xix] SHANIN, Teodor. Russia as a Developing Society: Roots of Otherness-Russia’s Turn of Century. Springer, 2016;

[xx] COGGIOLA, Osvaldo. Imperialismo e guerra na Iugoslávia: radiografia do conflito nos Bálcãs. São Paulo: Xamã, 1999.

fonte: https://aterraeredonda.com.br/o-conflito-russo-ucraniano/

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