Nota do Cimi: retirada de pauta do julgamento sobre demarcação de terras indígenas gera insegurança jurídica e política

Entre 1 e 2 junho, ocorreram dois ataques aos povos indígenas: a retirada de pauta do RE 1.017.365, pelo presidente do STF, e o veto ao projeto que institui o “Dia dos Povos Indígenas”

Conselho Indigenista Missionário - Cimi

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vem a público se manifestar sobre dois graves episódios ocorridos entre os dias 1 e 2 de junho de 2022: a retirada de pauta do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, previsto para ser julgado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 23 de junho, e o veto do Presidente da República ao Projeto de Lei (PL) 5.466/2019, que institui o “Dia dos Povos Indígenas”, comemorado no dia 19 de abril.

Essas duas iniciativas geram maior insegurança jurídica e política à vida dos povos indígenas do Brasil, sobretudo por estarmos vivenciando, neste atual contexto, uma onda de violência e ataques cotidianos aos direitos desses povos.

O julgamento do RE 1.017.365, pelo STF, é de fundamental importância para salvaguardar os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil. Frente à necessidade de confirmação pela Corte, desses direitos constitucionais e originários – já preconizados pela Constituição Federal de 1988 –, é que o julgamento era especialmente aguardado. A retirada de pauta no dia 1 de junho, sinaliza aos povos indígenas que mantenham ainda mais a sua vigilância e a sua mobilização na defesa de seus direitos. Por meio dessa nota, alertamos as autoridades que se atentem à gravidade desta situação, que coloca a existência dos indígenas e de seus territórios em sério risco.

Reiteramos que o adiamento desse julgamento faz parte da dinâmica do Poder Judiciário; entretanto, por três vezes esse julgamento já foi adiado, frustrando as expectativas dos indígenas. É também conhecido o posicionamento reiterado do Jair Bolsonaro e seus aliados, que têm se colocado contrários à tese do direito originário e a favor do marco temporal – que não existe na Constituição Federal, por deliberação do Parlamento Constituinte de 1988.

Além disso, o ato do Presidente da República, de vetar a instituição do “Dia dos Povos Indígenas” – justamente um dia após a retirada de pauta do RE 1.017.365 no STF –, traduz mais explicitamente a negação e o desrespeito à existência dos povos indígenas e suas diferentes cosmovisões, bem como da diversidade étnica e cultural do Brasil. Esperamos que o Congresso Nacional possa derrubar o veto, para aprovar a mudança de denominação, como mecanismo de mais respeito aos povos indígenas.

Apesar de serem duas situações contrárias à luta e à efetivação dos direitos dos povos indígenas, temos a certeza de que elas servirão como impulsionadoras do ânimo das comunidades e da sociedade a permanecerem mobilizadas em defesa de seus direitos, bem como pela garantia de seus territórios originários e por uma vida mais digna, com respeito às suas diferenças culturais.

Brasília, 02 de junho de 2022

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

 

fonte: https://cimi.org.br/2022/06/nota-do-cimi-retirada-de-pauta-do-julgamento-sobre-demarcacao-de-terras-indigenas-gera-inseguranca-juridica-e-politica/

 

Saiba mais sobre esse conceito e entenda como ele põe em risco os povos originários

A tese do Marco Temporal tem sido usada para dificultar a demarcação de Terras Indígenas no Brasil © Tuane Fernandes/ Greenpeace

Os direitos indígenas são hoje alvo do que pode ser considerado o maior conjunto de ataques de sua história. As forças comprometidas com o atraso e fragilização da democracia brasileira nunca deixaram de trabalhar pela diminuição desses direitos desde 1988 – o que inclui formular teses jurídicas que buscam relativizar ou suprimi-los.

Esses ataques foram renovados sob o governo Bolsonaro e sua política anti-indígena – que vêm questionando principalmente o direito originário dos povos indígenas às terras que eles tradicionalmente ocupam. É aqui que surge a tese do Marco Temporal: seu objetivo final é inviabilizar a demarcação das mais de 800 terras indígenas ainda não reconhecidas; assim como lançar suspeição sobre todas as outras Terras Indígenas que vêm sendo homologadas pelo Estado brasileiro nas últimas décadas.

Inconstitucional

O Marco Temporal é uma tese que propõe que sejam reconhecidos aos povos indígenas somente as terras que estavam ocupadas por eles na data de promulgação da Constituição Federal – 5 de outubro de 1988. Como sempre, o objetivo é limitar o direito dos povos aos seus territórios, especialmente aqueles onde ocorreram processos de expulsão ou remoção forçada por conta da expansão da fronteira agropecuária.

Diversos juristas, especialistas e estudiosos do Direito, no entanto, afirmam que essa ideia é inconstitucionalEm seu artigo 231, a Constituição Federal estabelece que os direitos indígenas são “direitos originários”, ou seja, são anteriores à própria formação do estado brasileiro, do país Brasil. Assim, não caberia a discussão sobre a padronização de uma data ou de um período de tempo específico.

Banalização da violência

As organizações indígenas afirmam ainda que essa interpretação desconsidera – ou ignora propositalmente – todas as agressões e violências sofridas pelos povos indígenas ao longo desses 522 anos. Massacres, genocídios, contaminação por doenças, violências sexuais, aliciamento para trabalho escravo, expulsão de territórios e remoções forçadas: tudo isso contribuiu para que os povos indígenas se mudassem, deslocassem suas aldeias ou simplesmente não estivessem mais em seus territórios tradicionais.

Além de banalizar a violência histórica contra os povos indígenas, a tese do Marco Temporal chancela o avanço da Economia da Destruição, que há séculos consome as florestas brasileiras. Esse modelo econômico também inviabiliza que os povos indígenas exerçam seu direito constitucional de viverem conforme seus costumes e tradições – e força a integração com povos isolados ou em isolamento voluntário, que optaram por viver longe da civilização ocidental. Atualmente, no Brasil, existem vestígios de 115 povos isolados ou em isolamento voluntário. Cerca de 114 deles estão na Amazônia.

Julgamento importante

Atualmente, a ameaça do Marco Temporal se materializa em dois lugares diferentes: na Câmara dos Deputados e no Supremo Tribunal Federal (STF).

Na Câmara dos Deputados, a ideia de estabelecer o Marco Temporal aparece no Projeto de Lei 490/2007, que transfere a competência de demarcação de Terras Indígenas do Poder Executivo para o Legislativo. Essa é mais uma estratégica para inviabilizar as demarcações das Terras Indígenas, aprofundando ainda mais o contexto de violações de direitos dos povos originários.

Existe outra situação no Supremo Tribunal Federal (STF): desde o ano passado, a Corte julga o Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata de uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. O Marco Temporal serve de pano de fundo para esse julgamento, que visa estabelecer a partir de quando os Xokleng poderiam reivindicar esta terra – que foi duramente atacada por todo o século XX.

Em 2019, o Supremo deu status de “repercussão geral” a este processo, o que significa que a decisão tomada aqui servirá de diretriz para todas as instâncias da Justiça no que diz respeito à demarcação de Terras Indígenas. Por isso, este é o julgamento mais importante da história para os povos originários.

Atualmente o julgamento está suspenso e deve ser retomado em 23 de junho. O ministro Edson Fachin, relator do caso, deu voto favorável à causa indígena, reafirmando os direitos originários desses povos, e se manifestou contra a ideia do Marco Temporal. O ministro Kássio Nunes, por sua vez, votou a favor da fragilização dos direitos indígenas. O próximo na fila de votação é o ministro Alexandre de Moraes.

O julgamento da tese do Marco Temporal será retomado em junho de 2022 no plenário do Supremo Tribunal Federal

Discussão sobre direitos

Coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá disse que a aceitação da tese do Marco Temporal poderá “estrangular de vez” a política indigenista do Brasil. “Se essa tese for acolhida, ela vai acabar com a demarcação das terras indígenas. Ela vai causar o aumento do desmatamento, o aumento do conflito socioambiental e a criminalização das lideranças indígenas. Porque nós não vamos parar de lutar. O que está em jogo são nossas terras, nosso futuro, nossa diversidade e nossas crenças”, contou a liderança.

Para o porta-voz da Campanha Amazônia do Greenpeace, Danicley de Aguiar, o debate sobre o Marco Temporal é na realidade uma discussão sobre os direitos de todos os brasileiros: “Os direitos indígenas são direitos e garantias fundamentais – e por isso são cláusulas pétreas da nossa Constituição. Não podem ser relativizadas nem flexibilizadas”.

Danicley chamou atenção para o precedente perigoso que a relativização dos direitos indígenas pode produzir sobre os direitos e garantias fundamentais de todos os brasileiros. “É preciso estarmos atentos a esse julgamento, pois hoje são os direitos indígenas, amanhã serão os direitos de todos os brasileiros. Afinal, é com a relativização e supressão de direitos que as democracias começam a morrer”, afirmou.

 

Free Land Camp 2022 in Brazil. © Tuane Fernandes / Greenpeace
O movimento indígena promete manter a mobilização para que a tese do Marco Temporal seja rejeitada pela sociedade brasileira © Tuane Fernandes / Greenpeacefonte: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/o-que-e-o-marco-temporal-e-como-ele-ameaca-os-direitos-indigenas/

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