Mineirinho – por Clarice Lispector

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.
Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça.
A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.
E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.
Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.


“José Rosa de Miranda, o Mineirinho, foi encontrado morto, ontem na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio, com 13 tiros de metralhadora em várias partes do corpo – três deles nas costas e quatro no pescoço – uma medalha de ouro de S. Jorge no peito e Cr$ 3.112 nos bolsos, e sem os seus sapatos marca Sete Vidas, atirados a um canto.” ]
fonte: https://www.geledes.org.br/mineirinho-por-clarice-lispector/
EDITORIAL: MORTE DE LÁZARO FOI QUEIMA DE ARQUIVO, SIM!
- por Jornalistas Livres
- 28/06/2021

Provavelmente, nunca saberemos quais as motivações dos crimes imputados a Lázaro Barbosa. Porque ele já estava condenado à morte quando a caçada a ele iniciou-se, há 20 dias. Julgado e condenado pela grande mídia como maníaco, serial killer, estuprador e praticante de magia negra, Lázaro Barbosa foi alvejado por no mínimo 38 tiros. A polícia diz que ele descarregou a arma que teria em mãos nos policiais. Seriam 6 tiros disparados por uma pessoa contra os tiros de fuzis de 270 policiais fortemente armados.
A própria polícia admite que Lázaro Barbosa gastou todas as balas que havia em sua arma. Ou seja, ele não poderia mais apresentar risco de vida aos policiais que participaram da operação de captura.
Mas, em vez de capturá-lo com vida, a polícia optou por executá-lo. Trata-se do mesmo modus operandi usado contra o miliciano Adriano da Nóbrega, homenageado em 2005 por Flavio Bolsonaro com a medalha Tiradentes, a maior honraria do Estado do Rio de Janeiro, comumente atribuída a pessoas que prestaram serviços relevantes ao Estado. Bandido, miliciano, Adriano da Nóbrega chegou a ser investigado pelo assassinato de Marielle Franco. Mas nada falou sobre esse crime. Com a execução dele, em fevereiro de 2020, seus parceiros de crime estão sossegados: ele nunca mais falará nada.
Foi também assim com Wellington da Silva Braga, o Ecko, amigão do peito de Adriano da Nóbrega, comandante da maior milícia do Rio de Janeiro. Capturado com vida pela polícia militar, Ecko apareceu morto alguns instantes depois. Para explicar a morte de Ecko, a polícia divulgou a seguinte versão: já preso, ao ser transportado de van para o helicóptero que o levaria ao hospital, ele tentou tirar a arma da mão de uma policial.
Para impedir a reação do miliciano, outro policial atirou novamente. O miliciano chegou morto à unidade de saúde na Zona Sul, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. Mais um arquivo queimado.
Essas mortes silenciosas, somente presenciadas pela polícia, precisam ser investigadas, apesar de todo o humor linchador que tomou conta da grande mídia, particularmente aquela que vive do sensacionalismo barato.
Mas a caçada a Lázaro Barbosa animou até mesmo a apresentadora Ana Maria Braga a tentar tirar uma casquinha no campo do sensacionalismo. Afinal, vale tudo pela audiência… Todos os dias, o programa “Mais Você”, apresentado por Ana Maria, começava com um relato sobre os avanços da polícia no encalço de Lázaro Barbosa. O resultado desse conluio foi tenebroso.
A repórter da TV Globo foi flagrada hoje, dançando animada, depois da morte de Lázaro. Policiais comemoraram a morte de Lázaro e postaram fotos e vídeos de sua festinha pela morte de Lázaro. E houve até carreata e buzinaço em frente ao IML de Goiânia, pessoas soltando fogos e motoristas buzinando na frente do instituto onde corpo de Lázaro Barbosa chegou na capital goiana para exames.
“Viva a morte!”
É interessante observar essa revolta popular contra Lázaro Barbosa, acusado de matar uma família, e de cometer mais um monte de crimes sem que haja comprovação de sua participação em nenhum deles. Tudo resume-se à versão da polícia militar de Goiás.
Paradoxalmente, a poucos quilômetros dali onde o Lázaro atuava, temos o palácio do Planalto. Sentado na cadeira presidencial está um alucinado acusado de ser responsável por muito mais do que meia dúzia de mortes. Já são mais de 500 mil óbitos. Mas essas mortes, essas mortes a TV Globo não quer vingar. Porque é cúmplice desse massacre.
Mais fácil colocar um “Judas” como Lázaro para ser malhado em praça pública.
Alivia a angústia de viver neste País injusto e cruel, ver um homem negro ser morto, acusado como maníaco, serial killer, estuprador e praticante de magia negra. Afinal, o que é um corpo negro crivado de balas? E segue o show de horrores.
A grande mídia ajudou a construir a narrativa para linchar Lázaro Barbosa. Veja como:
1) Uma pessoa começa a aterrorizar propriedades rurais, com assassinatos e invasões. Ok. Disso se deu o início da mistificação. Tratava-se de um monstro violento.
2) As buscas começam a dar errado, por ser uma área grande e de baixa densidade de ocupação, além de possuir várias possibilidades de refúgio. A cobertura da imprensa enveredou para uma falsa correlação do sujeito com o “sobrenatural”, que seria o motivo e os meios para seus ataques. Disso foi um pulo para o racismo religioso (com ataques e depredações contra terreiros de religiões de matriz africana). Relações que foram desmentidas.
3) O estrago já estava feito. Ele era um ser que escapava da força-tarefa colossal (PMs de vários estados colaborando, Polícia Civil, Força nacional, Polícia Federal) por conta de tudo, menos da incapacidade policial.
4) Reviravolta. Surgem indícios (a prisão de um fazendeiro que supostamente deu guarida) de que ele poderia estar a serviço do agronegócio da região, visando à obtenção de terras.
4.1) A relação, que tão fácil se criou entre as raízes sobrenaturais e religiosas e as motivações dos ataques, não foi estabelecida para os ataques e os interesses imobiliários.
5) Estava ficando feio. Os 270 policiais não estavam conseguindo realizar o básico de um trabalho de inteligência. Intensifica-se a explicitação de que seria aceitável um desfecho sangrento. Um confronto entre os policiais e o Mal encarnado poderia acabar em execução (e seria ok).
6) Hoje as possibilidades de investigação se encerram.
Agora falemos da mídia.
A função social que dá legitimidade para a mídia é a de fiscalização e denúncia sobre eventuais infrações à atuação constitucional por parte dos agentes de Estado.
Ela não pode, diferente do Zé do bar, clamar por uma caçada humana. Ela não pode, diferentemente do Zé do bar, justificar uma execução. E, muito menos, ela não pode, diferente do Zé do bar, comemorar, uma execução.
Mas ela fez tudo isso. E mais um tanto.
A morte de um ser humano, definitivamente, não deve ser comemorada. Quando a comemoramos, celebramos a desumanização da população. Só sobra a barbárie.
Pobres de nós!
fonte: https://jornalistaslivres.org/editorial-morte-de-lazaro-foi-queima-de-arquivo-sim/
LEIA TAMBÉM
Morte de Lázaro por policiais merece investigação profunda, diz especialista
Lázaro está morto e vídeo de policiais celebrando causa incômodo nas redes
Lázaro Barbosa foi morto enquanto usava casaco da Polícia Militar do DF
Lázaro Barbosa é morto após cinematográfica caçada policial de 20 dias
Autor de chacina conhecido como “‘serial killer’ do DF” foi baleado na ação que o deteve e imagens mostram seu corpo alvejado por múltiplos disparos. Governador Ronaldo Caiado anunciou a prisão: “Meus cumprimentos a todas as forças de segurança”

Chegou ao fim nesta segunda-feira uma caçada policial que mobilizou as atenções dos brasileiros por 20 dias. “Meus cumprimentos a todas as forças de segurança que ali interagiram, trabalharam com determinação para mostrar que a lei está acima de tudo”, anunciou o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), ao informar a prisão de Lázaro Barbosa, um criminoso de 32 anos investigado por matar quatro pessoas de uma mesma família em Ceilândia, no Distrito Federal, e por outros setes crimes cometidos em Goiás. Segundo o governador, houve troca de tiros entre os policiais e o foragido na hora da prisão, na cidade de Águas Lindas. A Polícia Civil de Goiás informou que o criminoso, que ficou conhecido com o “serial killer do DF”, morreu como consequência de um ferimento a bala na virilha. A reportagem teve acesso, contudo, a imagens que indicam ao menos 15 marcas de bala no corpo do criminoso. A ex-mulher de Lázaro chegou a ser levada à delegacia para prestar esclarecimentos, mas foi solta em seguida. Segundo a polícia, o criminoso passou alguns dias na casa de sua ex-sogra.
“Ele descarregou uma pistola, possivelmente 380, em cima do policiais”, afirmou o secretário de Segurança Pública de Goiás, Rodney Miranda, em entrevista coletiva horas depois da ação, ao justificar os disparos contra o alvo da operação policial. “Missão cumprida. Restabelecemos a paz e tranquilidade nessa comunidade de bem”, completou. Depois de ter sido baleado várias vezes, o criminoso foi levado por uma viatura do Corpo de Bombeiros para o Hospital Municipal Bom Jesus. A morte foi confirmada pela Polícia Técnico-Científica de Goiás e, às 11h10, uma viatura do Instituto Médico Legal (IML) chegou na unidade de saúde.
A atenção a Lázaro, que se embrenhou pela mata e provocou terror pelo interior de Goiás, se intensificou depois que ele foi apontado pela Polícia Civil do Distrito Federal como autor da chacina de uma família, num crime com características de A Sangue Frio, história contada em livro pelo escritor Truman Capote. Publicada em 1967, a obra relata vidas e mortes macabras de quatro membros da família do fazendeiro Herb Clutter, na cidade de Holcomb, oeste do Kansas, Estados Unidos.
Na cronologia descrita pela polícia e celebrizada pelo noticiário policial, Lázaro se tornou o homem mais procurado do país após matar o fazendeiro Cláudio Vidal de Oliveira, de 48 anos, e seus dois filhos, Gustavo Marques Vidal, 21, e Carlos Eduardo Marques Vidal, de 15. O crime ocorreu no dia 10 de junho na Fazenda Vidal, no Incra 9, Distrito Federal. Depois de abandonar os corpos dentro de um quarto, Lázaro teria arrastado a matriarca, Cleonice Marques de Andrade, 43, pela mata. O corpo dela foi encontrado três dias depois, próximo a um córrego, numa espécie de esconderijo do criminoso.
Ta aí, minha gente, como eu disse, era questão de tempo até que a nossa polícia, a mais preparada do País, capturasse o assassino Lázaro Barbosa. Parabéns para as nossas forças de segurança. Vocês são motivo de muito orgulho para a nossa gente! Goiás não é Disneylândia de bandido pic.twitter.com/pIwYWT7iYW
— Ronaldo Caiado (@ronaldocaiado) June 28, 2021
Sob o risco de o criminoso continuar cometendo assassinatos, uma força-tarefa foi montada assim que as fugas ultrapassaram a fronteira. Em Goiás, o secretário de Segurança Pública de Goiás, Rodney Miranda, montou um quartel-general para organizar um cerco infindável ao criminoso. Como disse Miranda, em repetidas e tumultuadas coletivas de imprensa em frente à escola utilizada como um certo gabinete de crise, cerca de 270 policiais, helicópteros, drones e cães farejadores foram colocados atrás de Lázaro.
Não demorou para que a busca apimentasse o campo político e causasse ciumeira entre o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), e o mandatário goiano, Caiado. Ibaneis afirmou que as forças de segurança estavam sendo feitas de “bobas”. Caiado, por sua vez, reagiu: “Não se atreva a desrespeitar policiais goianos”.
Caiado governa um dos estados mais visitados ―17 vezes― pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Duas delas neste junho complicadíssimo para uma força-tarefa desacostumada com a audácia de um criminoso acostumado à geografia local. A história do foragido, no entanto, se tornou um prato cheio para o discurso armamentista da população rural defendido pelo bolsonarismo. No dia 17, Bolsonaro, orgulhoso, disse: “Tem um maníaco na região do DF e Goiás cometendo barbaridade, matando gente, estuprando… Esse elemento tentou entrar numa chácara e foi repelido porque o cara tinha uma calibre doze lá dentro”. Bingo.
Ao invés de acalmar os ânimos da população do pequeno município de Cocalzinho de Goiás, que dedicou a Bolsonaro (então candidato do PSL) 63% dos votos (6.608) contra 36% (3.718 votos) de Fernando Haddad (PT) no segundo turno no pleito de 2018, o presidente ainda comentou: “Os bandidos estão armados, você não tem paz nem dentro de casa. Eu não consigo dormir, apesar de uma segurança enorme aqui no Alvorada, sem ter uma arma ao meu lado”.
A história de Lázaro agitou ainda mais as pautas bolsonaristas quando o noticiário destacou um benefício penal concedido ao criminoso, numa saidinha de Páscoa em 2016. Lázaro não voltou mais. Ao contrário, cometeu outros crimes, entre eles a chacina da família da fazenda Vidal. Enquanto Lázaro Barbosa não era preso em cercos cada vez mais improváveis, sua violência reverberava para além das fronteiras de Goiás. Hamilton Bandeira, de 23 anos, foi assassinado dentro de casa por policiais civis na frente do avô, um idoso de 99 anos, no dia 17 de junho. O jovem, que vivia em Presidente Dutra, no interior do Maranhão, havia feito uma postagem interpretada pelos policiais como apologia aos crimes do Lázaro. “Eu sou teu ídolo, Lázaro. Boa sorte”, dizia uma imagem compartilhada por Bandeira em seu perfil no Instagram. Ele tinha diagnóstico de deficiência intelectual e tomava remédios controlados.
Tenente-coronel critica PM de Goiás no caso Lázaro: “Operação foi uma catástrofe”
Adilson Paes, oficial da reserva da PM de São Paulo, explica que morte de Lázaro deve prejudicar investigação
Igor Carvalho

A operação da Polícia Militar de Goiás, que culminou na morte de Lázaro Barbosa, de 32 anos, que estava foragido há 20 dias, foi criticada pelo tenente-coronel da reserva da PM de São Paulo, Adílson Paes de Souza.
“A operação foi uma catástrofe, para ser o mais educado possível. Um horror e um atestado de que não vivemos em um estado democrático de direito. Um atestado de que a polícia não sabe seu papel em uma sociedade democrático”, destacou em entrevista ao Brasil de Fato.
“A polícia demora 20 dias para localizar uma pessoa, com mais de 200 policiais em seu encalço e falharam. Não era uma operação policial, era uma caçada. A imprensa alimentou essa caçada e essa tragédia”, explicou.
Artigo | Caso Lázaro: Ritos e fantasias entre “lazarus” e “bolsonarus”
Barbosa é acusado de diversos crimes e o principal suspeito do assassinato de uma família em Ceilândia, no Distrito Federal, e de um caseiro de uma fazenda em Girassol, em Goiás. Souza explica que criticar a operação, não significa defender esses crimes.
“Quem estabelece essa confusão padece de uma confluência de situações e sentimentos, que passa por ignorância, preconceito e desrespeito. Há um desespero de uma parcela da sociedade que só enxerga saída pela morte”, explicou o tenente-coronel.
Souza, que observou as imagens do corpo de Barbosa, não tem dúvidas. “Foi uma execução, são muitas marcas de tiros”. Para o especialista em segurança pública, a morte do principal suspeito dos crimes deve dificultar o trabalho de investigação da polícia.
:: MP do RJ denuncia quatro policiais militares por execução de jovem de 18 anos ::
“Faltou inteligência. Olha, 20 dias, com essa quantidade de policiais, não conseguirem prender um homem que circulava sozinho por uma área que já estava demarcada? É muita incompetência. Nada explica, que não a falta de competência”, argumenta.
Ainda de acordo com Souza, policiais quebraram diversos protocolos da polícia durante a operação e, “é preciso investigar se Barbosa já não estava morto quando seu corpo foi removido. Se ele foi removido morto, é um erro grave, pois o corpo deveria passar por perícia no local de sua morte.”
:: “Fui agredida pela PM por ajudar um parente agonizando”, diz mulher indígena no DF ::
Para o tenente-coronel, os policiais se deixaram levar pelo clima provocado pela imprensa e da cúpula do governo goiano.
“Você percebe da maneira como os policiais tiram ele daquele carro e jogam o corpo na ambulância. O clima de festa. Pareciam caçadores que saíram para um safári e estavam exibindo a presa. Isso é atitude de bando e não de corporação policial. É deprimente de assistir.”
Edição: Leandro Melito
Com Lázaro morto, polícia quer descobrir se bandido atuava como jagunço de empresário
Polícia de Goiás não conseguiu prender com vida o ex-foragido; fazendeiro é suspeito de ter ajudado durante a fuga

Após 20 dias de buscas e cerco a Lázaro Barbosa, uma operação da Polícia Militar de Goiás com centenas de homens não conseguiu prender o foragido com vida – ele teria sido morto após uma troca de tiros com os policiais, em que nenhum agente de segurança saiu ferido. Agora, caberá à Polícia Civil do Estado dar continuidade nas investigações sem que se possa colher o testemunho do ex-suspeito de uma série de assassinatos.
“As investigações não acabam aqui. Ainda temos algumas pessoas para investigar e prender”, disse a jornalistas o secretário de Segurança Pública de Goiás, Rodney Miranda. Segundo ele, a Polícia Civil já está investigando a suspeita de que Lázaro agia como matador de aluguel e que teria contado com o auxílio de pessoas que não queriam que ele fosse preso.
::Lázaro Barbosa é morto em operação da polícia para prendê-lo; veja vídeo após captura::
O principal alvo da apuração da suposta ligação de Lázaro com matadores é, de acordo com Miranda, o dono de uma chácara onde o fugitivo chegou a se esconder e obter alimentos, Elmi Caetano Evangelista, preso na última quinta-feira (24).
“O empresário [chacareiro] que está preso é um dos líderes da organização”, disse o secretário, afastando a tese de que Lázaro atuava sozinho. “Mais para frente, quando a investigação estiver finalizada, colocaremos [todas as informações] para vocês. Mas já há uma linha de apuração. Uma das coisas [hipóteses] é de que ele [Lázaro] atuava como jagunço ou segurança para algumas pessoas”, afirmou o secretário estadual.
“A operação foi uma catástrofe”, diz tenente-coronel da PM-SP
O tenente-coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo Adílson Paes de Souza assim resumiu a operação policial que culminou na morte de Lázaro:
Foi uma catástrofe, para ser o mais educado possível. Um horror e um atestado de que não vivemos em um estado democrático de direito. Um atestado de que a polícia não sabe seu papel em uma sociedade democrático”, afirmou, em entrevista ao Brasil de Fato.
“A polícia demora 20 dias para localizar uma pessoa, com mais de 200 policiais em seu encalço e falharam. Não era uma operação policial, era uma caçada. A imprensa alimentou essa caçada e essa tragédia”, explicou.
Artigo | Caso Lázaro: Ritos e fantasias entre “lazarus” e “bolsonarus”
O secretário de Segurança de Goiás disse que Lázaro trocou de roupas várias vezes ao longos dos últimos dias (“Uma prova de que ele tinha uma rede que o acobertava”) e, ao ser morto, estava com cerca de R$ 4,4 mil no bolso. O que, para o secretário, evidencia não só sua intenção de seguir fugindo, mas também que ele contava com o suporte de outras pessoas.
Lázaro foi surpreendido por policiais – segundo a versão oficial da ocorrência – quando chegava à casa de sua ex-sogra, na zona rural de Águas Lindas (GO), a cerca de 50 quilômetros de Brasília. “Nós já estávamos monitorando, tentamos pegá-lo no momento [em que ele se aproximou], mas ele chegou a ameaçar alguns policiais”, contou Miranda, explicando que, após ser cercado, Lázaro trocou tiros com os policiais, não acertou ninguém, mas foi baleado ínúmeras vezes.
Edição: Vinícius Segalla
Morte de Lázaro Barbosa exibe roteiro macabro de ‘reality show’ policial brasileiro
Pequena cidade de Goiás comemorou desfecho da captura de acusado após 20 dias de terror, mas também o fizeram Bolsonaro, que escreveu “CPF cancelado”, e policiais em carreata, gestos parte de uma cultura onde prender não é o plano A

“Lázaro está morto.” A voz do repórter Roberto Cabrini, da Record, repetindo a notícia três vezes na TV selou o fim da busca por Lázaro Barbosa Sousa, acusado de mais de 30 crimes e que se escondeu por 20 dias nas matas do Cerrado brasileiro, numa saga acompanhada minuto a minuto pela mídia e pelas redes sociais. O anúncio veio praticamente ao mesmo tempo em que governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), divulgava em seu perfil no Twitter a prisão do criminoso de 32 anos. Depois, o secretário de Segurança Pública de Goiás, Rodney Miranda, reconheceria a morte do foragido da Justiça.
“Não tivemos outra alternativa, senão reagir”, justificou-se Miranda que, cercado de repórteres, afirmou que com Lázaro, os policiais encontraram 4.300 reais e uma pistola .380. Inicialmente foi divulgado que Lázaro teria morrido após ser atingido por um tiro na virilha, numa suposta troca de tiros em um arbusto no meio do Cerrado goiano. Pouco tempo depois de o corpo dele ser carregado de uma viatura policial até uma ambulância do Corpo de Bombeiros, imagens do corpo cravado de balas ―com dilaceração no crânio― começaram a circular. No peito e no rosto podia-se ver ao menos 15 perfurações a bala. Segundo o relatório da Secretaria Municipal de Saúde de Águas Lindas de Goiás, divulgado horas depois, o homem foi morto com 38 tiros.
O desfecho para o criminoso que ficou conhecido como “serial killer do DF”, “serial Killer de Goiás” e “maníaco” não surpreendeu. Apesar de sua caçada haver mobilizado cerca de 270 agentes das policiais civil e militar de Goiás e do Distrito Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Diretoria Penitenciária de Operações Especiais, Corpo de Bombeiros Militar e até a Casa Militar que atende o governador Caiado, o foragido não foi preso nem neutralizado. Sucumbiu com uma rajada de tiros.
“As informações que recebi são de que o trabalho da Casa Militar do Governo já acontecia há várias noites, eles estavam sem dormir, e fizeram um cerco [na região de Águas Lindas de Goiás] e [Lázaro] recebeu os policiais atirando. No momento em que recebi essa informação da captura, ele estava sendo deslocado”, disse Caiado em entrevista à CNN Brasil.
A incongruência entre os relatos de trocas de tiros, de captura e deslocamento para o hospital e as 38 marcas de balas no corpo de Lázaro apontam para um prática comum de procedimentos policiais no Brasil onde prender e levar o acusado ante a Justiça não costuma ser o plano A, muito menos em casos de grande comoção como o de Lázaro. No Twitter, o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, questionou: “1) Por que uma equipe da Casa Militar achou Lázaro enquanto uma Força Tarefa de Polícias não? 2) Ele integra uma quadrilha que queria tomar chácaras e fazendas na região? 3) Houve perícia ou isolamento de local? Sua morte evitará o aprofundamento das investigações?”
À TV Record, os familiares de Lázaro também questionaram: “Atiraram nele demais, não precisava tudo aquilo. Por que não deram um tirinho ou dois na perna, pra depois investigar e interrogar? Mas foi muito cruel”, disse Amélia, tia dele.
Comemoração da cidade, dos policiais, de Bolsonaro
Acostumada à calmaria interiorana, os cidadãos de Cocalzinho de Goiás ―município que viveu a maioria dos dias de horror na busca por Lázaro― viviam o misto de medo e expectativa pela captura do acusado, apontado como o assassino de uma família inteira. Quando o desfecho chegou, após 20 dias de um reality show policial, houve alívio e comemorações nas ruas do lugarejo que, com estimativa de cerca de 20.000 moradores, segundo o IBGE, já vinha do trauma de perder 56 vítimas da covid-19, incluindo o prefeito, Alair Rabelo Neto, o Nenzão, nos últimos meses.
Já os policiais comemoraram nas instalações de uma escola utilizada como uma espécie de quartel-general montada pela força-tarefa para capturar o homem. Tudo com palavras de ordem em homenagem às Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas (ROTAM), batalhão de choque da Polícia Militar goiana, responsável pelo abatimento do criminoso. À tarde, 35 viaturas fizeram uma espécie de carreata pelas estradas dos municípios da região, sob aplausos.
Agora, era hora de desarmar os aparatos da extensa cobertura de mídia, para a qual também apareceram youtubers em busca de likes e até um caçador em busca de notoriedade. José Marcos Rodrigues Pereira, de 41 anos, conhecido como Babaçu, foi um dos que se tornou uma celebridade. Dizia que encontraria Lázaro por causa da experiência de andar pela região atrás de animais silvestres. No final do dia em que sua “caça” havia sido abatida, disse ao EL PAÍS que lamentava não ter podido ajudar a polícia melhor: “Se ele fosse preso, daqui dez anos ele sairia de novo. Até 100 famílias na região não dormiam mais em casa. Os policiais com coturnos rasgados, roupa suja, estavam cansados”.
No Twitter, Jair Bolsonaro, que por dias a fio animou os policiais, comemorou: “CPF cancelado”, um jargão usado quando os criminosos são mortos pela polícia. Foi compartilhado mais de 32.000 vezes. “O Brasil agradece! Menos um para amedrontar as famílias de bem. Suas vítimas, sim, não tiveram uma segunda chance.”
MAIS INFORMAÇÕES