07.04.22 | Por Leonardo Fuhrmann e Bruno Stankevicius Bassi do De Olho nos Ruralistas e Tatiana Merlino, de O Joio e O Trigo
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No sul do Amazonas, há receio com dificuldades para o reconhecimento de territórios de povos originários e prefeito tem ligação com a atividade madeireira
No sul do Amazonas, próximo à divisa com Rondônia e Mato Grosso, Manicoré está no epicentro da mais nova fronteira do desmatamento no Brasil. Junto a ele, Humaitá, Lábrea, Boca do Acre, Apuí, Novo Aripuanã e Canutama concentraram 80% de toda a supressão vegetal no estado entre 2020 e 2021, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), levando o Amazonas ao segundo lugar entre os líderes de desmatamento na Amazônia.
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Sob a gestão de Lúcio Flávio (PSD), Manicoré assinou o convênio do Titula Brasil em junho de 2021 para fazer a regularização fundiária em áreas públicas federais, assim como a vizinha Lábrea, administrada por Gean Barros (MDB).
O programa permite que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) repasse aos municípios signatários a obrigação de coletar documentos, realizar vistorias e o georreferenciamento de lotes em assentamentos de reforma agrária ou em terras sob domínio da União. Todo o processo ocorre dentro de um aplicativo, que transmite os dados ao Incra para a análise documental e decisão final sobre a titulação.
Uma das principais ameaças dentro do município é o avanço de Santo Antônio do Matupi, um povoado nas margens da Transamazônica, no KM 180 da rodovia. O pequeno centro urbano é ligado à extração de madeira e outras atividades irregulares na floresta e, desde 2004, viu crescer a pecuária bovina, com um salto de 800% no número de animais.
O distrito foi um dos primeiros a receber ações do Titula Brasil, com o cadastramento de assentados e a entrega de títulos provisórios para regularização fundiária.
A série de reportagens feita pela equipe de O Joio e O Trigo e do observatório De Olho nos Ruralistas está mostrando como sob o discurso da “modernização”, o programa Titula Brasil esconde conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo: “Titula Brasil promove conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo”.
Entre as histórias de violência, grilagem de terras e conflitos de interesses, selecionamos 12 casos que exemplificam os problemas do modelo de regularização fundiária às pressas adotado pelo governo no Titula Brasil e seu impacto sobre os povos do campo. Na segunda matéria da série, contamos como no Pará, grileiros e desmatadores disputam influência sobre programa Titula Brasil.
Madeireiros no poder
O Titula Brasil permite que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) repasse aos municípios signatários a obrigação de coletar documentos, realizar vistorias e o georreferenciamento de lotes em assentamentos de reforma agrária ou em terras sob domínio da União. Todo o processo ocorre dentro de um aplicativo, que transmite os dados ao Incra para a análise documental e decisão final sobre a titulação.
Com a possibilidade de cadastros individuais de propriedade em terras públicas cresce o temor de problemas para o reconhecimento de territórios de povos tradicionais e originários. É o que explica o representante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) na região, Pedro da Silva Souza, ele próprio morador de uma comunidade ribeirinha. Ele conta que Manicoré tem quase uma dezena de terras reivindicadas por povos indígenas. O temor é que o Titula Brasil atropele esses processos e depois torne o reconhecimento dos territórios ainda mais difícil. “Mesmo os territórios já demarcados estão sofrendo com invasões e retirada ilegal de madeira”, afirma.
Além de novas demarcações, a região tem pedidos de revisão para ampliação de áreas já reconhecidas. Ou seja, nos dois casos, há reivindicações coletivas de terras públicas da União e a preocupação de evitar que essas terras sejam regularizadas no nome de outras pessoas. “Os ataques dos madeireiros também afetam a própria sobrevivência desses povos, muitos deles dependentes da coleta de castanhas”, explica.
No caso de Lábrea, o próprio prefeito tem ligação com a atividade madeireira. Gean Barros (MDB) é genro de Oscar Gadelha, dono de uma micro empresa destinada à “extração de madeira em florestas plantadas”. Em 2016, quando retornou à prefeitura, De Olho nos Ruralistas mostrou que os dois foram flagrados utilizando trabalho escravo em propriedade reivindicada pelo prefeito, em plena Reserva Extrativista do Médio Purus, na beira do Rio Umari.
Reeleito em 2020, o prefeito também já participou de ações para impedir a fiscalização de crimes ambientais em reservas extrativistas do sul do Amazonas. Junto com o deputado estadual Adjuto Afonso (PDT) e do ex-diretor-presidente do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas, Graco Fregapani, ele mobilizou a população, em 2010, para expulsar fiscais do Instituto Chico Mendes (ICMBio) do município. Os servidores públicos tinham ido checar a denúncia de que a unidade de conservação estava sendo utilizada para a extração de madeira. O nome de Gadelha aparece desde os anos 90 em denúncias de venda ilegal de toras.
Não é a única ameaça ambiental na região. Os municípios também são cortados pela rodovia BR-319, a Porto Velho-Manaus, construída nos anos 1970, assim como a Transamazônica. A rodovia chegou a ser desativada e tem um plano de reasfaltamento. Com o acesso facilitado e mais veloz, existe um temor de aumento ainda maior do desmatamento.
O convênio com o Titula Brasil foi assinado durante uma comitiva que contou com a presença do aliado Adjuto Afonso e de representantes da associação de pecuaristas do município. O deputado estadual é um dos principais porta-vozes do projeto da Zona de Desenvolvimento Sustentável dos Estados do Amazonas, Acre e Rondônia (Amacro), um pólo agropecuário defendido por ruralistas da região e que, desde 2019, vem concentrando recordes de focos de calor na Amazônia.
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Projeto de colonização
Em Theobroma (RO), a preocupação com o Titula Brasil está relacionada aos Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs), uma espécie de título provisório que o governo militar dava aos fazendeiros para incentivar a colonização da Amazônia. O projeto repassava áreas de terra pública para domínio particular após a aprovação de um projeto de colonização. O Incra tinha obrigação de revisar após 5 anos o cumprimento das cláusulas dos contratos. Caso não fosse cumprido, o título tinha que voltar para domínio da União. Com o cumprimento do acordo, o “colono” receberia um título definitivo.
Pelo projeto, esses lotes não poderiam ser vendidos, repassados para terceiros, nem registrados em cartório. Sem a vistoria do Incra, não foram emitidos títulos definitivos e muitas terras ficaram abandonadas ou foram registradas ou vendidas irregularmente. Quando algumas dessas áreas passaram a ser ocupadas por sem terra, houve pressão para que os CATPs fossem cancelados e as terras devolvidas para a União para serem destinadas à reforma agrária. A partir de 2009, a atividade ficou sob a responsabilidade do programa Terra Legal.
Em muitos casos, o cancelamento não foi concluído devido à judicialização. Um relatório da regional de Rondônia do Incra colocava cinco Projetos de Assentamento (PAs) em Theobroma como áreas a terem seus CATPs cancelados para a regularização da posse pelos assentados: Lamarca, Raio de Sol, Comunidade dos Baianos, São Francisco e São João. Em 2016, foi mencionada também uma situação semelhante com o acampamento Estrela. Destas, apenas o PA Lamarca está listado pelo Incra como apto a integrar o Titula Brasil.
A área também é palco de interesses políticos. O senador Marcos Rogério (DEM) e o deputado federal Lúcio Mosquini (MDB) chegaram a participar de uma reunião com a Associação Rondoniense de Municípios (Arom) para orientar prefeitos sobre o Titula Brasil. Os dois são integrantes da bancada ruralista. Mosquini é coordenador da Comissão de Direito de Propriedade da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), além de coordenar uma outra frente parlamentar dedicada exclusivamente ao tema. Em 2020, Mosquini destinou R$ 936 mil em emendas parlamentares ao Incra para contratar uma consultoria de georreferenciamento em vários municípios de Rondônia em 2020. No ano seguinte, ele teve o nome listado entre os parlamentares que se beneficiaram do escândalo do Orçamento Secreto, que ficou conhecido como “tratoraço”. No lote de benefícios de Mosquini esteve o pagamento de R$ 359 mil num trator que valeria R$ 100 mil. No total, segundo o Estadão, o parlamentar manejou R$ 8 milhões em emendas.
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O deputado tem interesses específicos em Theobroma, onde declarou propriedades rurais dedicadas à pecuária, sendo a principal a Fazenda Majaru, com 255 hectares e adquirida em 2013, no valor de R$ 1,2 milhão. Outro lote registrado em nome do político no Incra não foi declarado à Justiça Eleitoral.
O prefeito do município, Gilliard Gomes (PSD) também é proprietário rural. Mas suas terras ficam em Itapuã do Oeste, onde está localizada a Floresta Nacional do Jamari. Os dois estão a uma distância superior a 200 quilômetros.
Leia o primeiro texto da série
fonte: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/04/na-nova-fronteira-do-desmatamento-programa-titula-brasil-desperta-interesse-de-ruralistas-e-aumenta-temor-de-novos-conflitos/
Envolvidos no “Dia do Fogo”, grileiros e desmatadores disputam influência sobre Titula Brasil no Pará
06.04.22 | Por Bruno Stankevicius Bassi, do De Olho nos Ruralistas e Tatiana Merlino, de O Joio e O Trigo
Coordenador de agricultura de Altamira já se mostrou solidário a invasores de terras públicas, enquanto o prefeito de Novo Progresso foi multado três vezes por desmatamento ilegal
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Considerado o maior município em extensão territorial do mundo, Altamira (PA) é um dos principais focos de grilagem e desmatamento na Amazônia. Entre fevereiro de 2020 e agosto de 2021, o sistema MapBiomas detectou a derrubada de 6,5 mil hectares de florestas em terras públicas não destinadas, colocando o município na primeira posição entre os líderes de desmatamento na Amazônia.
Foi justamente neste período, em abril do ano passado, que a prefeitura de Altamira convocou uma reunião para confirmar sua adesão ao programa Titula Brasil. Na ocasião, o coordenador municipal de agricultura, Almir Uchôa Segundo, ressaltou o papel do programa em ampliar o acesso ao crédito rural, estimulando a agropecuária do município. “Aliado a outras políticas públicas de fomento e apoio aos produtores da agricultura familiar, de pequeno e médio porte, temos a expectativa de aumentar e muito a produção na nossa região”, afirmou.
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Responsável pela aplicação do programa em Altamira, Uchôa já se mostrou solidário a invasores de terras públicas. Segundo denúncia do Movimento Xingu Vivo, durante sua passagem pela superintendência regional do Incra em Santarém, o atual coordenador de agricultura teria intercedido para evitar que o órgão expulsasse fazendeiros do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, um dos assentamentos contemplados pelo Titula Brasil e alvo constante de grileiros e madeireiros ilegais.
Esta é apenas uma dentre as histórias de violência, grilagem de terras e conflitos de interesses que revelam os problemas do modelo de regularização fundiária às pressas adotado pelo governo no Titula Brasil e seu impacto sobre os povos do campo. Os exemplos se espalham pela Amazônia Legal: de Altamira e Novo Progresso, no Pará, à nova fronteira agropecuária na divisa entre Amazonas e Rondônia; de Alto Alegre do Pindaré e Amarante do Maranhão, aos municípios mato-grossenses de Novo Santo Antônio, Nova Canaã do Norte, Novo Mundo, Brasnorte e Querência.
Meca dos invasores
Antes de ser coordenador de agricultura em Altamira, Almir Uchôa Segundo teve uma breve passagem como superintendente do Incra no Oeste do Pará, ocupando o posto de abril de 2020 até janeiro de 2021, quando assumiu o cargo na prefeitura. Os dez meses em que esteve à frente do órgão foram marcados pela explosão do conflito fundiário no PDS Terra Nossa.
Em entrevista à Repórter Brasil, a líder comunitária Maria Márcia de Melo relatou que as ameaças aumentaram quando o Ministério Público Federal (MPF) solicitou ao Incra a retirada dos invasores. O pedido ocorreu após uma denúncia do Movimento Xingu Vivo que, em agosto de 2020, participou de uma reunião com os assentados na qual Uchôa teria questionado se valeria expulsar os invasores sob risco de aumentar a tensão e os conflitos. “Se o Incra tirar os fazendeiros, algum agricultor vai estar disposto a ocupar aquelas terras?”, perguntou. De acordo com a denúncia, o superintendente deu a entender que seria melhor que o órgão não retirasse os invasores e, em troca, prestasse assistência técnica aos agricultores.
Além de Uchôa, a cerimônia de assinatura do Acordo de Cooperação Técnica entre a prefeitura e o Incra contou com a participação de outra interessada direta na implementação do Titula Brasil: a presidente do Sindicato Rural de Altamira e produtora rural Maria Augusta da Silva Neta. Em agosto de 2019, em entrevista ao jornal O Globo, Neta justificou os incêndios criminosos promovidos por fazendeiros de Altamira e Novo Progresso – no que ficou conhecido como o “Dia do Fogo” – alegando que as queimadas ocorrem porque os órgãos “demoram a dar licenças”.
No mesmo ano, ela e outros fazendeiros invadiram a cerimônia de abertura do encontro “Amazônia, Centro do Mundo”, que ocorria no campus Altamira da Universidade Federal do Pará (UFPA), reunindo líderes indígenas, ribeirinhos, cientistas e jovens ativistas pelo clima. Assim como o Dia do Fogo, o tumulto fora convocado por grupos ruralistas no WhatsApp, com o propósito de impedir a realização do debate.
Já o prefeito de Altamira Claudomiro Gomes (PSB) é proprietário de quatro lotes de terra na Gleba Pakisamba, um antigo plano de assentamento em Vitória do Xingu (PA) que integra a área atingida pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Ao todo, os lotes somam 673 hectares. Alvo de um processo de cassação por abuso de poder econômico, Gomes é réu em uma Ação Civil Pública (0001587-97.2011.8.14.0005) impetrada pelo MPF para ressarcimento ao erário de valores referentes à sua gestão anterior, nos anos de 1997 a 2000.
Dia do Fogo
Vizinho de Altamira, Novo Progresso também está intimamente ligado ao Dia do Fogo. Foi ali que, em 10 de agosto de 2019, fazendeiros iniciaram uma série coordenada de incêndios florestais cuja fumaça foi capaz de escurecer o céu em São Paulo (SP), a mais de dois mil quilômetros de distância. As queimadas criminosas também abriram caminho para a exploração econômica: segundo o Instituto Socioambiental (ISA), de abril a junho de 2021 o desmatamento no entorno da BR-163, que corta o município, aumentou 91% em relação ao período anterior.
Um dos locais mais atingidos pelos incêndios foi a Floresta Nacional do Jamanxim, onde o prefeito de Novo Progresso Gelson Luiz Dill (MDB) foi multado três vezes por desmatamento ilegal. Em 2009, ele foi autuado em R$ 288 mil por destruir 23,93 hectares. Em 2019, os fiscais do Ibama registraram a retirada de 174,5 hectares de mata nativa e atuaram Dill em R$ 4 milhões. Em agosto de 2020, voltou a ser multado, dessa vez em R$ 2,1 milhões.
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Em 2020, durante as eleições municipais, De Olho nos Ruralistas apurou que o prefeito incluiu não a propriedade, mas a “posse” de duas fazendas em sua declaração de bens à Justiça Eleitoral. Em um dos imóveis, denominado Carapuça, ele inclui supostas benfeitorias avaliadas em R$ 238,5 mil, mais de 23 vezes o valor declarado do imóvel, que é de apenas R$ 5 mil. Um valor irrisório para uma propriedade de 2.476 hectares. A outra propriedade tem 485 hectares e teve seu valor estimado em R$ 550 mil. Além das fazendas, ele é dono de 2.473 cabeças de gado, avaliadas em R$ 1,9 milhão.
Vice-presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso, Dill foi citado em mensagens trocadas por WhatsApp pelo grupo de fazendeiros que organizou os incêndios criminosos de 2019. Ele teve o nome mencionado nas conversas ao lado do presidente da organização, Agamenon da Silva Menezes, que chegou a afirmar que o Dia do Fogo foi uma invenção da imprensa para atingir o presidente Jair Bolsonaro.
Agamenon Menezes foi um dos participantes da reunião em que foi firmado o acordo de implementação do Titula Brasil em Novo Progresso. Ao lado dele estava o coordenador de Regularização Fundiária do município, Roberto Aparecido de Passos, responsável pela execução do programa.
Em outubro de 2019, Passos foi preso pela Polícia Civil suspeito de envolvimento no assassinato do trabalhador rural Antônio Rodrigues dos Santos, conhecido como “Bigode”. Conforme a investigação, Bigode vinha denunciando desmatamento ilegal dentro do PDS Terra Nossa e, segundo relatos dos assentados, iria levar à sede da Polícia Federal em Santarém (PA) uma denúncia sobre esquema de venda de lotes e grilagem. Passos foi liberado após prestar informações, mas voltaria a ser denunciado em outro caso relacionado ao mesmo assentamento, dessa vez por ameaça.
Segundo a denúncia da líder Maria Márcia de Melo, Passos estaria entre as figuras influentes de Novo Progresso que a vem ameaçando, incluindo o próprio prefeito Gelson Dill e o presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar de Novo Progresso Raimundo Barros Cardoso, também denunciado pelo assassinato de Bigode.
fonte: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/04/grileiros-titula-brasil-altamira-novo-progressopara/
Sob discurso da “modernização”, programa Titula Brasil esconde conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo
04.04.22 | Por Bruno Stankevicius Bassi, Leonardo Fuhrmann e Mariana Franco Ramos do De Olho nos Ruralistas & Tatiana Merlino, de O Joio e O Trigo
Levantamento inédito mostra incidência de conflitos, desmatamento e prefeitos latifundiários nos municípios que aderiram ao novo programa de regularização fundiária
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Desde seu lançamento, em fevereiro de 2021, o programa Titula Brasil foi divulgado pelo governo de Jair Bolsonaro como o “grande salto de modernização” no processo de titulação de terras públicas.
A política permite que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) repasse aos municípios signatários a obrigação de coletar documentos, realizar vistorias e o georreferenciamento de lotes em assentamentos de reforma agrária ou em terras sob domínio da União. Todo o processo ocorre dentro de um aplicativo, que transmite os dados ao Incra para a análise documental e decisão final sobre a titulação.
Pouco mais de um ano do seu lançamento, o programa teve aderência massiva entre prefeitos e políticos locais. Desde que foi criado, 1.198 municípios solicitaram adesão ao programa – cerca de 21% de todos os municípios do país. Desse total, 636 prefeituras já assinaram o Acordo de Cooperação Técnica (ACT), primeira etapa para implementação dos Núcleos Municipais de Regularização Fundiária (NMRFs). Cada núcleo tem seus integrantes indicados pela prefeitura, recebendo capacitação técnica do Incra antes de dar início às vistorias.
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Apesar de englobar o país todo, o Titula Brasil foi desenhado especificamente com o propósito de agilizar o processo de regularização de imóveis na Amazônia Legal, foco principal da política fundiária expansiva defendida por Jair Bolsonaro e pelo secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luiz Antônio Nabhan Garcia.
Segundo dados do Incra, os nove estados que integram a região concentram 160 mil ocupações rurais em glebas federais sem georreferenciamento e outros 109 mil imóveis rurais georreferenciados que aguardam a conclusão dos seus processos de regularização. Isso representa uma área de 56 milhões de hectares, equivalente ao território da França. E é justamente nessas áreas que se concentram os maiores índices de desmatamento no bioma: cerca de 20% de toda a destruição registrada na Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020, de acordo com o Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam).
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É também na Amazônia Legal onde se encontram 39% dos municípios que aderiram ao programa. A partir de dados obtidos via Lei de Acesso à Informação e de bases de dados públicas, a equipe de O Joio e O Trigo e do observatório De Olho nos Ruralistas cruzou as informações de 365 municípios signatários do Titula Brasil com ACTs publicados pelo Incra até setembro de 2021 e identificou 56 conflitos fundiários ativos. Destes, 33 na Amazônia Legal.
O levantamento também mostra que 70 municípios contemplados pelo programa estão no chamado Arco do Desmatamento, faixa que vai do oeste do Maranhão até o Acre e concentra a maior incidência de supressão vegetal da Amazônia.
Entre as histórias de violência, grilagem de terras e conflitos de interesses, selecionamos 12 casos que exemplificam os problemas do modelo de regularização fundiária às pressas adotado pelo governo no Titula Brasil e seu impacto sobre os povos do campo.https://ojoioeotrigo.com.br/wp-content/uploads/2022/04/mapa-12-casos-grilagem-v1.html
Mapa desenvolvido por Renata Hirota
Assentados estarão expostos a pressões e interesses locais
O levantamento conduzido pela equipe identificou que, dentre as prefeituras signatárias do Titula Brasil, 44% são lideradas por prefeitos ou prefeitas que declararam bens rurais à Justiça Eleitoral em 2020. Além de fazendas, foram contabilizados rebanhos bovinos, maquinários agrícolas, participação em empresas agropecuárias e benfeitorias em imóveis rurais.
Os dados corroboram uma das principais críticas de movimentos sociais contrários ao programa, de que o Titula Brasil deixará os pequenos agricultores e assentados mais expostos a pressões e interesses locais. “As prefeituras não possuem expertise e técnicos treinados para realização de um serviço tão complexo e importante como a regularização fundiária”, opina Ana Moraes, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “A fiscalização ambiental, trabalhista e sobre o domínio e a produtividade diminuirá”.
Alair Luiz dos Santos, secretário de Política Agrária da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), vai na mesma linha. De acordo com ele, transferir a responsabilidade de fazer todo o caminho da titulação para as prefeituras, que não têm esse know-how, é um caminho perigoso. “Fazem um termo de cooperação técnica com os municípios e as prefeituras que fazem as devidas vistorias, porque o Incra não tem técnicos”, conta.
Ele também prevê conflitos de interesse. “A prefeitura pode perseguir alguém, fazer um laudo dizendo que alguém não tem o direito de ser assentado, e o Incra acaba acatando”, exemplifica. “Nas eleições municipais é muito mais fácil um agricultor que está no assentamento se posicionar a favor ou contra determinado candidato e aquele que ganha pode fazer perseguição”.
Pedro Martins, da Terra de Direitos, lembra que um dos principais discursos de Jair Bolsonaro antes de ser eleito era justamente tornar os prefeitos mais próximos do governo federal. “É uma estratégia política”, comenta. O problema, segundo ele, é que, embora o Incra tenha superintendências espalhadas pelo país, não se capilarizou o suficiente. Isso sem contar a precarização, fruto sobretudo da redução do orçamento do órgão.
Para as grandes corporações, explica Martins, o interessante é que as terras sejam disponibilizadas ao agronegócio, que vai ser executado por grandes proprietários. “Quem serão esses grandes proprietários? As grandes empresas não precisam se preocupar. Elas já dominam a cadeia produtiva e só precisam se preocupar que as terras estejam disponíveis para a produção de soja, milho, carne… E onde essa disputa ocorre? Em nível municipal.”
Programa é alvo de recomendação pelo MPF em 7 estados
A preocupação dos movimentos sociais é apoiada pelo Ministério Público Federal (MPF). Desde a criação do Titula Brasil, foram expedidas recomendações para 8 superintendências do Incra em 7 estados: Acre, Amazonas, Minas Gerais, Pará (Oeste e Sul), Paraná, Rondônia e Tocantins. Foram acionadas também as prefeituras de 42 municípios que aderiram ao programa.
As recomendações caminham no sentido de garantir maior transparência ao processo, realizar vistorias técnicas in loco em todas as áreas submetidas a processo de regularização fundiária no âmbito dos Núcleos Municipais de Regularização Fundiária (NMRF) e a consulta a outros órgãos federais visando evitar a sobreposição com terras indígenas, unidades de conservação, Cadastros Ambientais Rurais, reservas extrativistas, territórios quilombolas, registros de conflitos nas Câmaras de Conciliação Agrária, entre outros.
Em meio às controvérsias que cercam o Titula Brasil, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), através do Grupo de Trabalho (GT) de Reforma Agrária e Conflitos Fundiários, lançou em junho de 2021 uma ação coordenada visando “fomentar a adoção de medidas que garantam a observância dos princípios da administração pública, o reconhecimento de territórios tradicionais e o respeito à destinação constitucional das terras públicas federais”.
Segundo o coordenador do GT, Julio José Araujo Junior, as recomendações têm caráter preventivo, não constituindo em obrigação direta ao Incra. O esforço já rendeu um fruto inicial, a partir da adoção de compromisso pela sede do Incra no Pará em não avançar em processos de titulação enquanto não houver resposta expressa da Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU), do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
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Ofensiva de Nabhan Garcia contra movimentos do campo
Com terras ricas e férteis, o extremo sul da Bahia sempre foi alvo da especulação de oligarquias locais e do capital financeiro internacional. Por essa razão, a região é uma das que mais deve sofrer as consequências do Titula Brasil fora da Amazônia Legal.
Em abril de 2020, por exemplo, a Força Nacional de Segurança Pública foi designada para atuar durante trinta dias em áreas ocupadas pelo MST nos municípios de Prado e Mucuri, o que causou temor entre famílias camponesas.
O pedido partiu do secretário Especial dos Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, idealizador do programa. O extremo sul da Bahia é considerado simbólico e importante nacionalmente, porque foi onde o MST começou a atuar. “O Nabhan colocou – articulado certamente com as oligarquias regionais – uma ofensiva programada, de basicamente tomar o controle do movimento social sobre os assentamentos”, afirma o advogado Maurício Correia, membro da coordenação da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR). “Aquilo ali se relaciona diretamente com o Titula Brasil”.
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Um mês antes, no dia 9 de março, o líder ruralista participou de uma audiência pública sobre regularização fundiária na Câmara Municipal de Eunápolis. “Estamos aqui para ouvir aquele cidadão, aquela cidadã que precisa de seu título de propriedade”, discursou. “Vamos acabar com a questão das invasões”.
Na época, ele excursionava pelo país defendendo a aprovação da MP da Grilagem, depois transformada em projeto de lei. “O Nabhan colocou isso como uma das questões principais”, destaca o representante da AATR. “Eles escolhem alguns lugares para aplicar e é isso o que estão fazendo lá, chamando de emancipação dos assentamentos”.
Na mesma linha, o geógrafo Paulo Alentejano acredita que, caso o Titula Brasil seja implementado em larga escala, deve haver um acirramento dos conflitos nos assentamentos entre segmentos vinculados mais diretamente aos movimentos sociais, que são contra essa política, e setores internos. “Diante da fragilidade no apoio a esses assentamentos, a expectativa é de que muitos aceitem a titulação e entrem em rota de colisão com os demais. Como a ideologia da propriedade privada é dominante na sociedade, eles acabam achando que essa é uma garantia de segurança”, afirma. “Mas é uma ilusão de segurança, fruto da fragilização”.
Para o professor, este cenário é intensificado ainda pelo processo de reconcentração fundiária e pelo conflito violento, uma vez que interessados em se apropriar dessas terras – fazendeiros, latifundiários e grileiros – fazem pressão e até ameaças contra as famílias, obrigando-as a vender por valores irrisórios.
fonte: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/04/sob-discurso-da-modernizacao-programa-titula-brasil-esconde-conflitos-de-interesse-grilagem-e-violencia-contra-povos-do-campo/