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Maurício Angelo – 14 de fevereiro de 2022
O governo Jair Bolsonaro achou um caminho mais curto e direto para conseguir atender aos interesses do lobby mineral: mudar tudo que puder mudar na canetada, sem a necessidade de passar pelo Congresso, acomodar interesses difusos e enfrentar a oposição.
Dois decretos publicados hoje – o 10.965 e o 10.966 – escancaram a opção pelo atalho de impor novas regras infralegais que favorecem sobretudo o garimpo.
Trata-se de movimentos claramente orquestrados, na sequência de outros decretos e programas influenciados diretamente pelo setor mineral, como tenho mostrado sistematicamente aqui no Observatório.
Entram nesse pacote o Programa Mineração e Desenvolvimento (PMD), o recente decreto que autoriza a destruição de cavernas de máxima relevância ecológica (no momento suspenso pelo Supremo Tribunal Federal), os subsídios bilionários para usinas a carvão, as novas regras e flexibilizações implantadas pela Agência Nacional de Mineração desde 2020 (com o apoio e a influência direta da OCDE) e a prioridade dada para o PL 191/2020, que autoriza mineração e garimpo em terras indígenas, entre outros movimentos.
O Decreto 10.965 altera o Código de Mineração de 1967, mostrando que Jair Bolsonaro não está disposto a esperar consenso de deputados para mudar a lei, conforme a encomenda que fez em 2021 e que acabou emperrada na Câmara.
Entre as principais e mais problemáticas alterações em relação aos textos anteriores está a previsão de que, agora, a ANM “estabelecerá critérios simplificados para análise de atos processuais e procedimentos de outorga, principalmente no caso de empreendimentos de pequeno porte ou de aproveitamento das substâncias minerais de que trata o art. 1º da Lei nº 6.567, de 1978″
Os beneficiários diretos disso são o garimpo e a indústria de construção civil, que usa os minerais citados na lei de 1978 (com inclusões por lei de Bolsonaro de 2020), como argilas, cascalhos, brita, calcário, cálcio e rochas ornamentais.
São dois setores envolvidos diretamente no lobby em Brasília e que financiaram deputados responsáveis pela interlocução junto ao governo e que elaboraram o texto do Novo Código de Mineração.
O decreto 10.965 também facilita o aproveitamento e a comercialização dos rejeitos de minério e o uso de substâncias encontradas durante o processamento.
É comum que uma mesma jazida ofereça combinações de substâncias, como minério de ferro e ouro, por exemplo. Além da substância principal, a comercialização do que é encontrado durante a exploração agora contará com aprovação automática da ANM no caso da agência não se manifestar no prazo máximo estipulado.
Esta é uma demanda antiga do setor mineral. A aprovação instantânea após o prazo oficial tem se tornado regra na ANM, que vem passando um trator infralegal, como detalhei em matérias anteriores. E novas medidas estão em andamento.
A efetivação do registro de licenciamento em área considerada “livre”, por exemplo, será consumada em até 60 dias. Essas mudanças são parte inclusive de decisões fechadas em instâncias internacionais, como as reuniões da cúpula do governo Bolsonaro no Canadá e os encontros com embaixadores estrangeiros e executivos de mineradoras.
No mais, o Decreto 10.965 detalha as responsabilidades do empreendedor sobre a segurança das suas operações, a prevenção de desastres, a compensação socioambiental e as multas previstas.
Garimpo na Amazônia ganha um programa para chamar de seu
O lobby do garimpo é íntimo do governo Bolsonaro, presença frequente em reuniões e audiências em Brasília e também nos estados, em especial na Amazônia.
Um dos resultados alcançados por esse lobby é o Decreto 10.966, o segundo da leva. Ele institui o “Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala – Pró-Mape”, com a finalidade de “propor políticas públicas e estimular o desenvolvimento da mineração artesanal e em pequena escala, com vistas ao desenvolvimento sustentável regional e nacional”.
O que é chamado oficialmente de “pequena escala” é o garimpo (como explícito no artigo 4), hoje massivamente industrial, feito com máquinas pesadas, estrutura e logística multimilionária e rotineiramente ligado a uma série de crimes.
Embora bastante vago e genérico, utilizando termos como “abordagem multidisciplinar”, “integração” e “visão sistêmica”, o decreto abre brechas para a ampliação do garimpo na Amazônia, já extremamente problemático hoje.
A área minerada por garimpo saltou 495% dentro de terras indígenas apenas nos últimos 10 anos, segundo o MapBiomas. Nas unidades de conservação, o incremento foi de 301% no mesmo período.
Cerca de metade do ouro exportado pelo Brasil nos últimos 5 anos, 229 toneladas, tem indícios de legalidade, de acordo com estudo recém-lançado do Instituto Escolhas. Em áreas como o Tapajós, no sudoeste do Pará, o garimpo tem destruído centenas de quilômetros de rios e afetado irreversivelmente a vida de povos indígenas.
Dos 11 mil hectares abertos na Amazônia para mineração entre janeiro e setembro de 2021, 73% incidiram dentro de áreas protegidas, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Nada disso é empecilho para o governo federal atual. O Pró-Mape cria a Comape (Comissão Interministerial para o Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala), que deve “orientar e coordenar ações” as atividades do programa e será coordenada pelo Ministério de Minas e Energia e composta pelos ministérios da Casa Civil, Cidadania, Justiça, Meio Ambiente e Saúde. Este órgão fará reuniões semestrais. As decisões, portanto, ficam integralmente nas mãos do governo, sem contraponto.
O Decreto 10.966 tem o objetivo formal de “integrar e fortalecer as políticas setoriais, sociais, econômicas e ambientais para o desenvolvimento da atividade da mineração artesanal e em pequena escala no território nacional” e “promover a sinergia entre as partes interessadas e envolvidas na cadeia produtiva do bem mineral”, indicando, por trás do discurso “sustentável”, que o poder econômico é quem manda de verdade.
Em nota, a Secretaria-Geral da Presidência disse que o programa “inaugura uma nova perspectiva de políticas públicas sobre a atividade garimpeira no Brasil”.
O custo dessa “nova perspectiva”, que não é nova, mas a continuidade do ideário da ditadura militar, resgatada pelos militares que controlam o governo Bolsonaro em todos os escalões – incluindo o Ministério de Minas e Energia, comandado por um almirante – já se mostrou alto demais para a sociedade para ser mantido como está, além de agravado pelas mudanças com impacto negativo em andamento.
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Sobre o autor
Maurício Angelo
Fundador do Observatório da Mineração, centro de jornalismo investigativo focado no setor extrativo criado em 2015. Repórter com centenas de matérias publicadas na mídia brasileira e internacional (Mongabay, Reuters, UOL Notícias, El País, Repórter Brasil, Intercept, Pulitzer Center, OCCRP, Folha de S. Paulo e outros). Eleito um dos três jornalistas mais relevantes do Brasil no setor de Mineração, Metalurgia e Siderurgia pelo Prêmio Especialistas de 2021, em votação espontânea. Vencedor do Prêmio de Excelência Jornalística da Sociedade Interamericana de Imprensa (2019). Especializado em Mineração, Amazônia, Cerrado, Direitos Humanos, Justiça, Lobby e Crise Climática.
Maurício Angelo is an award-winning international freelance investigative journalist and the founder of The Mining Observatory, a Brazilian based investigative journalism Centre established in 2015. He publishes in many media outlets in Brazil and around the world and was the winner of the Excellence in Journalism Award (2019) by Inter American Press Association. Considered one of the Top 3 journalist experts in Extractive Sector in Brazil in 2021.
fonte: https://observatoriodamineracao.com.br/na-canetada-bolsonaro-cria-programa-para-estimular-o-garimpo-e-altera-o-codigo-de-mineracao/