Queimadas, ondas de calor e alteração no nível do mar são só alguns dos eventos climáticos que já fazem parte da realidade dos povos originários
Queimadas devastaram território Huni Kui, em Rio Branco (AC), em 2019. Foto: Denisa Starbova
Por Marina Oliveira, da Assessoria de Comunicação do Cimi
Há alguns anos, falar sobre mudanças climáticas parecia algo distante e até soava aos ouvidos de muitas pessoas como “papo de ambientalista”. Mas, infelizmente, elas já fazem parte da nossa realidade: ondas de calor, queimadas, elevação do nível do mar, longos períodos de seca e disseminação de doenças são só alguns dos fenômenos que retratam as alterações no clima global.
No dia 9 de agosto deste ano, o Painel Intergovenamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) publicou um relatório com o alerta de que é inequívoco que as ações humanas aqueceram a atmosfera, os oceanos e a superfície terrestre. Ainda de acordo com o documento, a previsão é que o aquecimento global ultrapasse 1,5ºC antes do meio do século, caso não sejam adotadas “ações imediatas”.
Mas você já parou para refletir sobre como esses eventos climáticos atingem a vida dos povos indígenas? Para a presidenta do Comitê Global e Regional para Parceria com Povos Indígenas e Populações Tradicionais, Francisca Arara, mesmo preservando e mantendo a floresta em pé, os povos já sofrem os impactos das mudanças do clima, direta ou indiretamente.
“A segurança alimentar é um dos principais problemas que enfrentamos. Estamos perdendo alimentos em razão das alagamentos inesperadas e do calor excessivo. Além disso, as chuvas estão ocorrendo fora de época e não temos mais um calendário tradicional como antes. Tudo mudou”, lamentou.
“A segurança alimentar é um dos principais problemas que enfrentamos. Estamos perdendo alimentos em razão das alagamentos inesperadas e do calor excessivo”
Queimada na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Porto Velho, Rondônia Foto: Christian Braga/Greenpeace
Francisca também fez um alerta sobre os cuidados a longo prazo. “É muito importante que os povos indígenas comecem a montar estratégias para guardar as sementes tradicionais, pensando já no futuro. Mas é preciso também assegurar políticas que resguardem os nossos direitos, porque, logo mais, podemos sofrer com a perda da alimentação, dos peixes, da caça, dos legumes e das frutas. Precisamos nos preparar para as mudanças que virão”.
Brasil em chamas
O Projeto Mapbiomas publicou em agosto deste ano um levantamento inédito que apresenta o impacto do fogo sobre todo o território brasileiro a partir da análise de imagens de satélite feitas entre 1985 e 2020. De acordo com o estudo, a cada um desses 36 anos o Brasil queimou 150.957 km², ou seja, 1,8% do país. Dentro desse recorte, 11,2% das áreas queimadas são territórios indígenas.
Os pesquisadores identificaram, inclusive, que as altas taxas de desmatamento, especialmente antes de 2005 e depois de 2019, contribuíram com o aumento da área queimada em períodos de seca – entre julho e outubro.
Ainda de acordo com o levantamento, o Pantanal foi o bioma mais atingido ao longo dessas mais de três décadas: 57% do território foi queimado pelo menos uma vez entre 1985 e 2020. Já os biomas Cerrado e Amazônia representam 85% da área queimada nesse período, sendo 44% e 41% respectivamente.
Na avaliação de Arara, os altos níveis de queimadas, muitas vezes associadas ao desmatamento, causam impactos também no cenário da pandemia. “A fumaça e a mudança do clima são fatores complicados também para aquelas pessoas que ficaram com sequelas em decorrência da Covid-19. É evidente que esses fenômenos poderão desencadear problemas de saúde, como doenças pulmonares”.
“A fumaça e a mudança do clima são fatores complicados também para aquelas pessoas que ficaram com sequelas em decorrência da Covid-19″
Os Avá-Guarani do Oco’y estabeleceram a barreira sanitária após o primeiro caso de covid-19 ser confirmado em um integrante da comunidade. Crédito da foto: Comunidade do Oco’y
Natália Bianchi Filardo, coordenadora-adjunta do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Mato Grosso (MT), aponta o desmatamento como um dos principais vetores relacionados às mudanças climáticas, já que a prática aumenta as emissões de carbono provenientes das mudanças no uso do solo.
“No Mato Grosso, por exemplo, é conivente para o Estado que se use o ‘correntão’ ainda, que são aqueles tratores que utilizam uma corrente enorme para arrastar a floresta e, assim, abrir espaço para a pecuária e monocultivo”, explicou. A coordenadora lembra também que a construção de hidrelétricas é outro fator que colabora com as alterações no clima do planeta.
“No Mato Grosso, por exemplo, é conivente para o Estado que se use o ‘correntão’ ainda, que são aqueles tratores que utilizam uma corrente enorme para arrastar a floresta”
Prática do ‘correntão’: um trator arrastam correntes e abrem toda a área verde para a monocultura. Foto: Mayke Toscano
“Os reservatórios das hidrelétricas são grandes responsáveis pela liberação do metano, um dos gases que intensificam o efeito estufa. Mais uma vez falando sobre o Mato Grosso, onde existe a previsão de construir centenas de hidrelétricas ‘a toque de caixa’, as usinas começam as operações sem antes avaliarem os componentes indígenas da área. Isso acaba, inclusive, com os peixes, que fazem parte dos alimentos deles”, lamentou.
“Rio secou”
Mas não são só as queimadas que retratam os sintomas das mudanças climáticas no planeta. Na Aldeia Japuíra (MT), do povo Myky, um córrego secou pela primeira vez, de acordo com Typyu Myky. “Aqui está ocorrendo muito desmatamento, a monocultura está avançando em nosso território, estão fazendo pastagem em torno das nascentes. O córrego que nunca secava, em 2021 secou. Não tinha uma gota d’água”, disse Typyu ao Cimi, em setembro deste ano.
Segundo Typyu, o córrego era usado pelas pessoas da comunidade para tomar banho, lavar roupa e para o lazer das crianças. Typyu contou que, em uma conversa que teve com seu sobrinho, de apenas seis anos de idade, foi questionado do porquê de o córrego não existir mais no local.
“Meu sobrinho é muito esperto e ele me abordou: ‘tio, quando eu era mais novo, banhei aqui no córrego com meus amiguinhos. Ele era fundo, até eu tinha medo de mergulhar. Mas, agora, estou vendo o córrego secar, as pedras já estão do lado de fora e os peixinhos estão morrendo. Por que isso está acontecendo, tio?’”, narrou.
“Agora, estou vendo o córrego secar, as pedras já estão do lado de fora e os peixinhos estão morrendo”
Na aldeia Japuíra, do povo Myky, secou um córrego que era utilizado para tomar banho, lavar roupas e para o lazer. Foto: Typyu Myky
Ao Cimi, Typyu também falou sobre os impactos socioambientais na realidade do povo Myky. “A água era bem transparente e não suja como está hoje. Agora, para tomarmos banho, temos que nos deslocar até o Rio Papagaio, que fica a 8 quilômetros de distância da aldeia, é muito longe. O córrego ficava muito perto de nós, apenas 400 metros da aldeia”, lamentou.
Retrocesso no Parlamento
Enquanto os povos originários resistem para manter as florestas em pé, parlamentares ruralistas seguem priorizando medidas que caminham na contramão do mundo. Exemplo disso é o Projeto de Lei 2633/2020, conhecido como o “PL da Grilagem”, aprovado pela Câmara Federal no dia 3 de agosto deste ano. Na prática, a proposta premia grileiros, aumenta o índice de violência e conflitos no campo, já que estimula invasões, e também abre brecha para novos episódios de queimadas e desmatamento ilegal.
Além dele, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) aprovou em junho o Projeto de Lei 490/2007, que acaba com a demarcação de terras indígenas. “Como que vamos falar, lá fora, sobre combate ao aquecimento global se parte do país quer arrendar os territórios indígenas para o agronegócio, para a grilagem, soja e mineração? Esse projeto é muito preocupante e o parlamento precisa repensar”, afirma Francisca Arara.
Povos indígenas manifestam-se contra o PL 490 em marcha na Esplanada dos Ministérios. Foto: Tiago Miotto/Cimi
“Os povos indígenas precisam ter mais participação nessas tomadas de decisão. A gente sabe que a demarcação das terras indígenas é uma barreira para combater as mudanças climáticas, porque temos um grande estoque de carbono. Os nossos conhecimentos tradicionais têm muito a contribuir para combater o aquecimento global, cuidamos dos nossos territórios pensando em todo o planeta. Então é muito importante que as políticas públicas não sejam mais ‘inventando roda’, mas sim dialogando com os povos indígenas”, finaliza Arara.
Em coro com Francisca Arara, Natália reforça a importância de haver uma presença mais forte dos povos indígenas nas tomadas de decisão do país. “Precisamos de políticas que favoreçam a recuperação de áreas degradadas, que resguardem as terras indígenas e arredores para que não sofram impactos no entorno dos territórios, que respeitem as áreas de reservas legais e de proteção ambiental. Além disso, é necessário que esses grandes empreendimentos levem em consideração os componentes indígenas e façam audiências de consulta em um nível de comunicação justo”.
COP do Clima
Você já ouviu falar sobre a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática? Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), essa é a “mais importante conferência sobre o clima do planeta”. Desde 1994, as Nações Unidas reúnem, anualmente, quase todos os países do mundo para as cúpulas globais do clima. O encontro, que é mais conhecido como COP, ou seja, “Conferência das Partes”, está em sua 26ª edição, já que não foi realizada em 2020 devido à pandemia de coronavírus.
Neste ano, a cidade de Glasgow, na Escócia, foi escolhida para sediar o evento internacional entre os dias 01 e 12 de novembro. Mas, infelizmente, a COP 26 passou uma imagem cheia de “contradições”, um evento “para gringo ver”, segundo Guilherme Cavalli, jornalista e coordenador da Campanha de Desinvestimento em Mineração.
“As falsas soluções climáticas parecem nortear o debate oficial do evento, também caracterizado como uma das mais intransparentes COPs – os diálogos que constroem os acordos se detêm a Estados Governos, sem uma livre participação da sociedade civil. A plataforma online do evento também apresentou instabilidade e dificultou o seguimento e os espaços internos da conferência foram organizados para um diálogo entre iguais”, disse Guilherme em uma matéria publicada no site do Cimi.
“As falsas soluções climáticas parecem nortear o debate oficial do evento, também caracterizado como uma das mais intransparentes COPs”
Manifestação em Glasgow, Reino Unido, durante a COP26. Foto: Guilherme Cavalli / Coordenador da Campanha de Desinvestimento em Mineração
No texto, Guilherme também apresentou críticas abordadas por lideranças indígenas, como Naniwa Huni Kuin, indígena do Acre, e Dinamã Tuxá, membro da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“São eventos que debatem soluções sem levar em conta os principais protetores da Terra. Parece que a COP 26 virou um evento para decidir o preço do carbono em políticas que continuam promovendo invasões de territórios, como o próprio crédito de carbono”, afirmou Naniwa durante um evento no Tribunal Internacional do Direito da Natureza.
“Parece que a COP 26 virou um evento para decidir o preço do carbono em políticas que continuam promovendo invasões de territórios, como o próprio crédito de carbono”
Manifestações durante a COP 26, em Glasgow, na Escócia. Foto: Guilherme Cavalli
Na mesma linha, Dinamã, que estava entre as lideranças presentes na COP 26, não escondeu sua preocupação. “São iniciativas que nos deixam apreensivos por serem, novamente, ações colonizadoras. Países ricos, e principais emissores, debatem ações para os povos indígenas sem uma representação dos povos. O processo se inicia de forma atravessada”, ressaltou o advogado indígena.
fonte: https://cimi.org.br/2021/11/mudancas-climaticas-um-grande-desafio-para-os-povos-indigenas/
Leia também:
Mercosul-União Europeia, um acordo antiindígena
Agronegócio sul-americano terá grande peso no acordo, o que gerará mais devastação ambiental e pressão sobre territórios dos povos ancestrais. Ainda por ser ratificado, documento cita-os apenas duas vezes – e eles sequer foram consultados
OUTRASPALAVRAS
por Valéria Teixeira Graziano
Publicado 04/11/2021 às 16:28

Título original: A invisibilidade dos povos indígenas no Acordo MERCOSUL-União Europeia e a colonialidade do poder na integração regional sul-americana
Por Valéria Teixeira Graziano, publicado no Observatório de Regionalismo
Embora a negociação do Acordo MERCOSUL-União Europeia se arraste desde os primórdios da criação do bloco sul-americano no início da década de 1990, o anúncio da conclusão do processo negociador em junho de 2019 suscitou novos debates sobre seus possíveis impactos para os países dos dois lados do Atlântico. A entrada em vigor do acordo ainda depende da ratificação pelos parlamentos nacionais e da União Europeia e, desde tal anúncio, a questão ambiental tem sido mobilizada por diferentes atores políticos e sociais como forma de barganha e pressão, a partir de interesses diversos. Parlamentares europeus têm manifestado preocupação com relação ao aumento expressivo do desmatamento e das queimadas na região sul-americana e, de maneira mais específica, com relação aos posicionamentos antiambientalistas do governo de Jair Bolsonaro. Mas, embora a questão ambiental seja destacada nos posicionamentos críticos ao acordo, pouco se discute sobre seus impactos para os povos indígenas da região.
Neste sentido, é preciso chamar a atenção para o fato de que a conclusão do processo negociador acontece num momento em que os direitos dos povos indígenas são violados em níveis alarmantes no Brasil. A situação tem sido agravada nos últimos anos, dentre outros fatores, pelo enfraquecimento de instituições como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA); pela ausência de políticas públicas específicas para os povos indígenas durante a pandemia de covid-19; pela negligência com relação ao aumento do desmatamento e ao avanço das fronteiras agropecuárias em territórios ancestrais indígenas; e, ainda, pelas alianças políticas do atual governo com a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conhecida como bancada ruralista.
Em seu mais recente relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alertou para a “grave e preocupante” situação dos povos e comunidades indígenas do Brasil, e manifestou preocupação com relação ao “processo de revisão das políticas indigenistas e ambientais do país, o que tem favorecido as ocupações ilegais das terras ancestrais, encorajado atos de violência contra suas lideranças e comunidades indígenas, e autorizado a destruição ambiental de seus territórios”.
A CIDH também tem reiterado a preocupação com Projetos de Lei (PLs) em tramitação no Congresso Nacional que podem representar sérios retrocessos aos direitos dos povos indígenas no país. A comissão entende que, se aprovados, tais PLs agravarão “o desmatamento e atos de agressão, perseguição e assassinatos de pessoas indígenas em retaliação ao seu trabalho em defesa de seus territórios”. Dentre os inúmeros projetos em tramitação, destaca-se o Decreto Legislativo No. 177/2021, que autorizaria o Presidente da República a denunciar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais[1].
Diante de tal situação, seis denúncias contra o presidente brasileiro já foram encaminhadas, por distintos atores nacionais e internacionais, ao Tribunal Penal Internacional (TPI)[2]. No dia 9 de agosto deste ano, Dia Internacional dos Povos Indígenas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) protocolou uma denúncia no TPI a partir de relatório que apresenta acusações de crime contra a humanidade e crime de genocídio contra os povos indígenas do Brasil, tipos previstos no Estatuto de Roma, de 1998, que criou a corte internacional. Na Declaração do Abril Indígena – Acampamento Terra Livre 2021, as organizações indígenas brasileiras afirmam que a política “genocida e ecocida” do atual governo “encontrou na Pandemia da Covid-19 um solo fértil para ‘passar a boiada’, o que tem levado ao aumento da violência e dos conflitos”.
De acordo com o informe O acordo comercial MERCOSUL-União Europeia: riscos e desafios para os povos indígenas no Brasil, elaborado pelo antropólogo Ricardo Verdum e publicado recentemente pelo Grupo de Trabalho Internacional para Assuntos Indígenas (IWGIA, na sigla em inglês), embora não se possa afirmar que os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional tenham relação direta com o Acordo MERCOSUL-União Europeia, “o fato de a produção agropecuária ter nesse acordo grande relevância, faz com que ele não deixe de ser, voluntária e involuntariamente, um motor impulsionador das medidas propostas” (VERDUM, 2021). O informe explica que, à medida que o acordo aumentar a dependência das economias nacionais sul-americanas com relação à tal produção, aumentará também a pressão pela ampliação das fronteiras agropecuárias – especialmente em áreas da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal –, o que resultará em maior “pressão pelo controle de uso e exploração dos territórios indígenas, estejam eles reconhecidos/titulados ou em processo de delimitação pelo Estado brasileiro” (VERDUM, 2021).
Ponte e Santos (2020) concordam que, ao reforçar “o modelo de dependência pós-colonial de exportação de commodities e importação de industrializados”, o acordo tende a aprofundar os efeitos perversos de tal modelo econômico, incluindo a perda de biodiversidade, o aumento do desmatamento e da grilagem, da contaminação dos solos e dos mananciais, e da emissão de gases de efeito estufa, assim como o aumento da violência e das ameaças à soberania alimentar, à segurança e aos modos de vida de camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais. Os autores chamam atenção para o fato de que, embora o Acordo MERCOSUL-União Europeia tenha sido apresentado como um pacto que contribuirá para que os Estados partes assumam padrões ambientais mais altos, o documento “não avança em como isso seria possível de fato, trazendo capítulos contraditórios entre si e com potenciais violações socioambientais” (PONTE e SANTOS, 2020).
A pesquisa realizada pelo IWGIA demonstrou que, entre os documentos que integram o Acordo, existem apenas duas menções explícitas relacionadas aos povos indígenas e nenhuma menção é feita ao tema do reconhecimento e titulação de seus territórios:
No capítulo Comércio de Desenvolvimento Sustentável (Trade and Sustainable Development), no artigo 8º, Comércio e Gestão Sustentável das Florestas (Trade and Sustainable Management of Forests), consta que “As Partes reconhecem a importância do manejo florestal sustentável e o papel do comércio na prossecução deste objetivo e da restauração florestal para a conservação e uso sustentável”, e que cada Parte deverá promover, conforme apropriado e com seu consentimento prévio informado, a inclusão de comunidades locais baseadas na floresta e povos indígenas em cadeias de abastecimento sustentáveis de madeira e produtos florestais não madeireiros, como meio de melhorar seus meios de subsistência e de promover a conservação e uso sustentável das florestas. Também há uma breve e geral referência no Capítulo que trata de Propriedade Intelectual (Intellectual Property), artigo X.2 (VERDUM, 2021).
Embora as populações indígenas estejam entre os grupos mais vulneráveis e empobrecidos da América Latina (ONU, 2010), as questões relacionadas a seus direitos estiveram historicamente ausentes nas agendas de integração sul-americana e nos projetos de desenvolvimento regional. Ao reforçarem a concepção hegemônica de desenvolvimento, centrada na ideia de progresso econômico e baseada na exploração infinita da natureza e da vida, os projetos integracionistas, pelo contrário, acabam por acentuar as violações dos direitos dos povos indígenas.
Como explicam Nicolao e Juanena (2014), o modelo de desenvolvimento adotado pelo MERCOSUL desde sua criação na década de 1990, num contexto marcado pela imposição de políticas econômicas neoliberais, resultou em mais invasões a territórios ancestrais, expulsão forçada e outras violências, acentuando a condição de pauperização dessas populações durante a primeira década de existência do bloco. Ao analisarem a iniciativa Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), concebida nos anos 2000, Porto-Gonçalves e Quental (2012) afirmam que os projetos de integração regional se baseiam em “uma lógica territorial que concebe grandes áreas do espaço geográfico sul-americano como sendo vazios demográficos”, e a natureza é entendida como “simples obstáculo a ser superado pela engenharia”. Os autores ressaltam que, “não por acaso, a expropriação de muitas populações de suas terras, bem como a ocorrência de inúmeros conflitos territoriais, tem sido recorrente na execução dos empreendimentos de integração de infraestrutura regional ora em curso” (PORTO-GONÇALVES; QUENTAL, 2012).
Na virada do século, com a chegada ao poder de governos considerados progressistas em diversos países sul-americanos e a constituição da chamada onda rosa[3], a integração regional entrou em uma nova fase, que ficou conhecida como regionalismo pós-liberal ou pós-hegemônico, no sentido de ressaltar a transição de uma integração econômica neoliberal para um modelo baseado no fortalecimento do papel do Estado e na redução de desigualdades e das assimetrias regionais (SANAHUJA, 2009; LO BRUTTO; CRIVELLI, 2019). No âmbito do MERCOSUL, essa nova fase se traduziu no aprofundamento das agendas políticas e sociais, incluindo a ampliação da estrutura institucional do bloco e a criação de espaços e mecanismos voltados à participação social.
Neste período, foram criados o Instituto Social do MERCOSUL (ISM), em 2007; a Comissão de Coordenação de Ministros de Assuntos Sociais do MERCOSUL (CCMASM), em 2008; o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IPPDH), em 2009; e a Reunião de Autoridades sobre Povos Indígenas (RAPIM), em 2014. A criação de tais estruturas contribuíram para que as questões relacionadas aos direitos indígenas fossem sendo, aos poucos, incorporadas nas discussões do bloco. A aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, em 2007, e as discussões em torno da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 2016, certamente também contribuíram para que as reivindicações dos povos indígenas fossem introduzidas nas agendas regionais.
Todavia, embora tenha aparecido cada vez mais nos discursos políticos deste contexto da onda rosa, as questões relacionadas aos direitos indígenas seguiram ausentes nos principais instrumentos estratégicos e projetos de cooperação regional do MERCOSUL, ficando tal agenda restrita a âmbitos mais específicos, como a RAPIM. A temática não aparece, por exemplo, entre as prioridades da área de Cooperação Internacional do MERCOSUL (MERCOSUL/CMC/DEC. N° 23/14). Com relação ao IPPDH, Nicolao e Juanena (2014) afirmam que, embora o instituto tenha introduzido discussões relevantes sobre políticas públicas interculturais, “las poblaciones indígenas no cuentan con un lugar prioritario en las acciones que lleva adelante este organismo en materia de promoción de políticas de derechos humanos”.
Apesar da introdução da temática nas agendas do bloco, na prática, pouco se avançou com relação à proteção e promoção dos direitos indígenas, e menos ainda com relação à participação dos povos indígenas nos processos decisórios do MERCOSUL. É preciso lembrar também que, ao mesmo tempo que promoviam uma maior visibilidade das reivindicações de grupos historicamente subalternizados, os governos progressistas deste período continuaram a priorizar um modelo de desenvolvimento econômico baseado na exportação agropecuária e no extrativismo, resultando em contradições e limitando a efetivação dos direitos desses povos.
Dessa maneira, com o anúncio em 2019 da conclusão do processo negociador do Acordo MERCOSUL-União Europeia, povos indígenas, camponeses e comunidades tradicionais, em articulação com organizações não governamentais nacionais e internacionais, têm atuado no sentido de pressionar governos dos dois blocos e sensibilizar a opinião pública sobre os impactos negativos do acordo para suas populações. Reivindicam, ademais, o direito à consulta livre, prévia e informada sobre medidas que possam afetar suas comunidades, conforme estabelecido pela Convenção 169 da OIT. Lideranças indígenas brasileiras realizaram viagens ao continente europeu com o objetivo de denunciar as atuais violações de direitos, alertando para o possível agravamento da situação com a entrada em vigor do acordo e chamando a atenção para a ausência de consulta prévia e de mecanismos de participação no processo decisório.
A Frente contra o Acordo MERCOSUL-União Europeia e EFTA-MERCOSUL[4], criada neste contexto, publicou em dezembro de 2020 um manifesto assinado por 120 organizações da sociedade civil brasileira, dentre elas organizações indígenas como a APIB, que convoca o parlamento a promover um amplo debate sobre os impactos do acordo. O documento afirma que, embora o documento esteja baseado em três pilares, “o pilar comercial tem primazia e os elementos ditos de proteção aos direitos humanos e ambiental ficam em segundo plano”. Desse modo, caracteriza como retóricas as alusões às questões ambientais e climáticas no texto do acordo, destacando o fato de que “o capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável não fornece mecanismos para sua exigibilidade”.
A ausência dos direitos dos povos indígenas no âmbito do Acordo MERCOSUL-União Europeia representa uma clara expressão da histórica exclusão desses povos dos projetos de integração regional. Retomando a famosa tese do ambientalista e ativista Chico Mendes de que “não há defesa da floresta sem os povos da floresta”, Porto-Gonçalves e Quental (2012) ressaltam que esses povos lutam pela reapropriação social da natureza. Ao questionarem a separação cultura-natureza, que resulta em sua apropriação como recurso pelo capitalismo global, tais movimentos alertam que a atual crise, para além de sua dimensão ambiental, trata-se de uma crise civilizatória. Neste sentido, contribuem para a reconfiguração do debate político-epistêmico.
A invisibilidade dos povos indígenas tanto nos projetos políticos regionais quanto nos estudos sobre regionalismo e, de maneira mais ampla, no campo disciplinar das Relações Internacionais, resulta da contínua reprodução, nas sociedades latino-americanas, da colonialidade do poder, do ser, do saber, da natureza e da vida[5]. Assim, diante da ameaça para os povos indígenas que representa a entrada em vigor do Acordo MERCOSUL-União Europeia, é preciso assumir a urgência de descolonizar as Relações Internacionais na região tanto em suas dimensões políticas quanto teórico-epistêmicas. A integração regional latino-americana precisa urgentemente ser repensada a partir de modos de vida e saberes diversos, tal como propõem os movimentos indígenas latino-americanos que, por meio de cosmovisões ancestrais como a concepção andina do vivir bien/ buen vivir[6], indicam a possibilidade de construção de horizontes civilizacionais outros.
___________
Referências:
ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. Declaração do Abril Indígena – Acampamento Terra Livre 2021. Online, 05 de abril de 2021. Disponível em: https://apiboficial.org/2021/04/05/uniao-e-luta-dos-povos-indigenas-contra-os-virus-que-nos-matam/. Acesso em: 12 de outubro de 2021.
ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. Inédito: APIB denuncia Bolsonaro, em Haia, por genocídio indígena. Online, 09 de agosto de 2021. Disponível em: https://apiboficial.org/2021/08/09/inedito-apib-denuncia-bolsonaro-em-haia-por-genocidio-indigena/. Acesso em: 12 de outubro de 2021.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Situação dos direitos humanos no Brasil. 2021. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em: 19 de outubro de 2021.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. A CIDH manifesta preocupação com projetos de lei que poderiam constituir uma ameaça aos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. Disponível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/236.asp . Acesso em: 19 de outubro de 2021.
INESC. Mais de 100 organizações assinam carta contra acordo Mercosul-UE. Online, 17 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.inesc.org.br/mais-de-100-organizacoes-assinam-carta-contra-acordo-mercosul-ue/. Acesso em: 12 de outubro de 2021.
LO BRUTTO, G; CRIVELLI, E. El panorama actual de la integr ación regional en América Latina. In: KERN, A. et al. La cooperación Sur-Sur en América Latina y el Caribe: balance de una década (2008-2018). Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2019.
MARIANO, Karina L. P. Algumas reflexões sobre o Acordo Mercosul-União Europeia. Observatório de Regionalismo, online. Disponível em: http://observatorio.repri.org/2019/07/30/algumas-reflexoes-sobre-o-acordo-mercosul-uniao-europeia/. Acesso em: 18 de outubro de 2021.
MERCOSUL. MERCOSUR/CMC/DEC. N° 23/14. Cooperación en el MERCOSUR. Paraná, 2014.
NICOLAO, Julieta; JUANENA, Mara; ¿Hacia una mayor visibilización de las demandas de los pueblos indígenas en el MERCOSUR?; O. García; Densidades; 16; 9-2014; 61-82. Disponível em: https://ri.conicet.gov.ar/handle/11336/34902?show=full . Acesso em: 18 de outubro de 2021.
OEA. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Santo Domingo, 2016. Disponível em: https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf. Acesso em: 15 de outubro de 2021.
ONU. Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas. 2007. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 15 de outubro de 2021.
ONU. La situación de los pueblos indígenas del mundo. Online, janeiro de 2010. Disponível em: https://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/SOWIP/press%20package/sowip-press-package-es.pdf. Acesso em: 15 de outubro de 2021.
PONTE, Emmanuel; SANTOS, Maurren. O acordo UE-Mercosul e o Cerrado. Le Monde Diplomatique Brasil, Edição 162, 28 de dezembro de 2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-acordo-ue-mercosul-e-o-cerrado/. Acesso em; 19 de outubro de 2021.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; QUENTAL, Pedro de Araújo. Colonialidade do poder e os desafios da integração regional na América Latina. Polis Revista Latinoamericana, 31, 2012, online.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur-Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005.
SANAHUJA, J. A. Del “regionalismo abierto” al “regionalismo post-liberal”. Crisis y cambio en la integración regional en América Latina. Anuario de La Integración regional de América Latina y el Gran Caribe, 2009.
SANTOS, Boaventura de Souza. Refundación del Estado en América Latina. Perspectivas desde una epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad; Programa Democracia y Transformación Global, 2010.
VERDUM, Ricardo. O Acordo Comercial MERCOSUL-União Europeia: riscos e desafios para os povos indígenas no Brasil. Copenhague: IWGIA – Grupo Internacional de Trabalho sobre Assuntos Indígenas, 2021. Disponível em: https://www.iwgia.org/en/documents-and-publications/documents/531-iwgia-o-acordo-comercial-mercosul-uni%C3%A3o-europeia-brasil-2021/file.html . Acesso em: 10 de outubro de 2021.
WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa, online, 2008 (Julio-Diciembre). Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=39600909 . Acesso: 15 de outubro de 2021.
___________
[1] A Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais (Nº 169) é um tratado internacional adotado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1989, com o objetivo de superar práticas discriminatórias que afetam os povos indígenas e assegurar que participem na tomada de decisões que impactam suas vidas. Para saber mais sobre o tratado: https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_781508/lang–pt/index.htm
[2] Trata-se da primeira corte internacional de caráter permanente, criada em 2002, pelo Estatuto de Roma. Tem como mandato investigar e, quando justificado, julgar indivíduos acusados dos seguintes crimes: genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e o crime de agressão. Para saber mais sobre o TPI: https://www.icc-cpi.int/Pages/Home.aspx
[3] Contexto político que marcou a América Latina entre o final da década de 1990 e primeira década de 2000, caracterizado pela chegada ao poder de presidentes considerados de esquerda e centro-esquerda em diversos países da região. Além da expressão onda rosa, tal contexto tem sido denominado também como progressismo latino-americano.
[4] Foram concluídas em agosto de 2019 as negociações do acordo de livre comércio entre o MERCOSUL e a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), bloco integrado por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein.
[5] Para o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005), a colonialidade do poder se constitui como um fenômeno muito mais complexo e profundo que o colonialismo, abarcando não apenas suas dimensões políticas, econômicas e militares, mas também epistemológicas e ontológicas. Ou seja, o fim do colonialismo não representou o fim da colonialidade como padrão mundial de poder que se originou e se mundializou a partir da conquista da América Latina nos séculos XIV e XV, o qual definiria a Europa Ocidental como centro hegemônico e configuraria o atual padrão de poder, baseado na colonialidade, na modernidade e na globalidade. As noções de raça e o racismo constituíram as bases do padrão de poder colonial, que se estruturou e continua a se estruturar a partir de quatro eixos centrais: a colonialidade do poder, baseado em um sistema de classificação social e identitária, que dá origem à hierarquização racial e sexual; a colonialidade do saber, a partir do eurocentrismo como perspectiva única de conhecimento; a colonialidade do ser, por meio da inferiorização, subalternização e desumanização dos não-europeus e/ou não-brancos; e a colonialidade da natureza e da vida (SANTOS, 2010; WALSH, 2008).
[6] Algumas das expressões indígenas que foram traduzidas e deram origem à noção de buen vivir/vivir bien são: sumak kawsay (quechua); suma qamaña (aymara); teko pora (guarani); küme mogen (mapuche). Ressalta-se a necessidade de reconhecer as diferenças em termos de significações e apropriações, próprias de cada contexto e cultura.
fonte: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/mercosul-uniao-europeia-um-acordo-antiindigena/