Derci Pasqualotto, filósofo, sociólogo e educador popular
A naturalização e banalização dos fatos de qualquer natureza levam à indiferença e ao imobilismo: ‘sempre foi assim, não há o que fazer’! Por outro lado, a abordagem moralista e/ou populista desses mesmos fatos acaba na destruição de valores, princípios, direitos e no reducionismo ‘do que pode ou não pode’, fugindo de uma avaliação do que é ético, justo e permitido a todos os cidadãos de uma sociedade, independentemente de sua condição econômica ou social.
Coloco isso, para avaliar a compra de Viagra, próteses penianas infláveis, Botox, bisnagas de gel íntimo pelas Forças Armadas Brasileiras, com suspeita de superfaturamento de 143%, em alguns itens. Não há muito tempo, ainda, foram gastos R$ 56 milhões para compra de picanha, filé mignon, salmão e enorme quantidade de latas de leite condensado, cervejas nobres e licores pelas mesmas Forças Armadas. Na virada do ano, o ex capitão, hoje Presidente da República, gastou 1 milhão de reais para passar 7 dias de férias no Forte Marechal Luz (propriedade das Forças Armadas) no litoral de SC, saindo de lá, diretamente para um hospital em SP, engasgado com camarões mal ingeridos.
Aparentemente, todos estes fatos não são relevantes e nem são os mais importantes para serem discutidos, diante dos reais problemas que o país vive. O centro das nossas atenções e preocupações devem estar voltadas para as questões que interferem diretamente na vida econômica, social e política que impactam na população e no desenvolvimento do país.
No entanto, as compras das Forças Armadas suscitam, pelo menos, a discussão sobre a desigualdade econômica, social e sanitária em que a população brasileira vive. Imagino que os 24,5 milhões de brasileiros que vivem com ¼ do Salário-Mínimo (1), as 17 milhões de famílias que vivem do Auxílio Brasil (R$ 400,00 mensais), os 70% dos brasileiros que ganham até 2 Salários-Mínimos (2) – hoje, R$ 2. 428,00 com o agravamento de uma inflação de mais de 10% , devem estar se perguntando: como continuarei a ter comida, remédio, casa, escola, roupa para meus filhos? Estamos falando de mais da metade da população brasileira vivendo na situação de pobreza e com poucas perspectivas de melhoras. O que passará em suas mentes ao ver a elite das Forças Armadas (os oficiais superiores) vivendo com regalias que vão da picanha ao Viagra, as custas de recursos públicos? Para ser mais claro, deixemos de falar abstratamente dos pobres brasileiros indistintamente, foquemos a questão nas mães brasileiras pobres tendo que alimentar, educar, cuidar da saúde, dar uma casa aos seus filhos diante destes privilégios grotescos. Temos algumas situações reais e muito chocantes:
Mães saído de casa para ir a um açougue ou mercadinho da periferia em busca de alimentos para seus filhos e voltar para casa com, no máximo, um osso com alguns restos de carne enquanto nos quarteis é servido, picanha, filé mignon, salmão, cerveja. Suponho que só para os fardados graduados, pois a soldadesca deve se contentar com carne de pescoço;
Outras mães vendo suas filhas adolescente não podendo ir à escola por falta de um absorvente higiênico, enquanto os graduados fardados, talvez já de pijamas, recebem a pílula azul de graça para manter sua performance machista de virilidade, com recursos públicos. Com um agravante de cinismo: a compra e distribuição de absorventes para mulheres e meninas pobres foi vetada pelo Presidente da República, enquanto as Forças Armadas são autorizadas a comprar Viagra, Botox, gel íntimo e próteses penianas infláveis para os fardados;
Mães tendo que esperar meses ou anos na fila do INSS para receber uma prótese para suprir um acidente de trabalho de seus maridos ou filhos, enquanto os fardados têm à sua disposição próteses penianas infláveis;
Mães indo aos postos de saúde buscar remédios para diabete, pressão alta, fazer hemodiálise ou uma simples consulta para seus filhos ou tentar obter um analgésico e ter que voltar sem ele, pois está em falta (como costuma acontecer com frequência).
Poderíamos multiplicar os exemplos de situações reais que escancaram a desigualdade existente na sociedade, resultado da política econômica e social aplicada e sustentada por estes mesmo fardados que se locupletam com os recursos públicos que deveriam estar a serviço de toda a população. Temos um agravante, tudo isto é feito por uma instituição que tem como papel fundamental: “fazer a defesa da pátria em casos de ameaças estrangeiras e à garantia dos poderes constitucionais (executivo, legislativo e judiciário) e fazer a preservação da lei e da ordem conforme os preceitos constitucionais”, incluído o maior deles que “todos os cidadãos são iguais” e assim precisariam ser tratados.
Fugindo da tentação de banalizar ou naturalizar esta situação, como fez o General Mourão – vice-presidente da República – numa entrevista à imprensa (3). Ou mesmo sabendo que estamos tratando de uma questão menor diante dos problemas que o país vive ou, ainda, de não fazer um julgamento moralista para ver quem é melhor o pior, precisamos nos perguntar: o que é ético, justo e direito inalienável para todos os cidadãos, sejam militares ou civis, sejam empresários ou trabalhadores.
O que os militares estão fazendo é zombar da maioria da população brasileira pobre e se colocando acima dos demais cidadãos, como uma casta de privilegiados. Isto é abuso de poder e usurpação para proveito próprio, portanto, crime, apenas para manter privilégios.
Não se trata de negar a possibilidade de ter Viagra ou próteses penianas infláveis a quem quer que seja e nem negar a possibilidade de comer picanha, filé mignon ou salmão e beber cerveja desde que não seja com recursos públicos. Mas também não se trata de negar o absorvente, o remédio, a consulta para que não tem condições.
Os salários dos oficiais subalternos são superiores a R$ 7 mil reais e dos oficiais superiores passam dos R$ 14 mil, sem contar os adicionais e as gratificações (4). Salários que os colocam dentro do grupo dos 10% mais ricos do Brasil, algo bem distante dos 70% dos brasileiros que ganham até 2 Salários-mínimos. É apenas desta desigualdade que estamos falando, desigualdade que condena a maioria a viver sem as condições mínimas de vida (comida, educação, saúde, casa, lazer etc.) e proporciona a poucos privilegiados regalias que vão do Viagra à picanha.
Por isso, esta questão, como tantas outras, não podem ser banalizadas ou naturalizadas e nem tratadas sob a ótica do moralismo e/ou populismo dualista dos bons e dos maus, dos merecedores e dos desmerecedores (vulgarmente chamados de preguiçosos e vagabundos), mas como uma questão de justiça econômica e social. Que sejam responsabilizados.
Ver:
Florianópolis, 14 abril 2022.