Inesc: Os números do boicote às políticas para mulheres

Mais preocupado em fazer uso político e ideológico da violência, governo deixa de aplicar orçamento e distribuir recursos para a rede de apoio e proteção às mulheres. Gasto nunca foi tão baixo, deixando estados e municípios descobertos

OUTRASPALAVRAS
Por Carmela ZigoniPublicado 08/03/2022 às 20:44
Atualizado 08/03/2022 às 20:49

Por Carmela Zigoni, assessora política do Inesc 

Título original: Nota técnica: análise do orçamento das políticas públicas para as mulheres – 2019 a 2021

Neste 8 de Março, precisamos falar de orçamento público! 

O orçamento público é a ferramenta que torna reais as políticas públicas. Ele pode promover direitos para a população, mas também violar direitos, quando é utilizado para financiar políticas que aumentam as desigualdades – ou mesmo quando não é executado. É o caso, por exemplo, da péssima gestão da pandemia operada pelo governo Bolsonaro, que deixou de gastar R$ 80,7 bilhões disponíveis em 2020. Metade deste recurso tinha como destino o financiamento do auxílio emergencial: assim, se 4,2 milhões de mulheres negras saíram da extrema pobreza nos meses em que o auxílio foi pago,[1] outras milhões de mulheres poderiam ter sido atendidas, caso o governo tivesse executado todo o recurso autorizado. 

O governo também deixou “sobrar” 70% do recurso voltado para o enfrentamento da violência contra as mulheres em 2020, pior ano da pandemia, mesmo com a suspensão das regras fiscais e a flexibilização das normas para contratos e licitações decorrentes do decreto de calamidade pública.[2] Esse percentual significa um montante de R$ 93,6 milhões,[3] que não chegou aos estados e municípios para financiar a rede de atendimento às mulheres. 

Neste 8 de Março, precisamos reafirmar a demanda das mulheres por políticas públicas de qualidade, com orçamento específico e execução eficiente. Isso porque o Brasil continua a ser o país que registra um feminicídio a cada seis horas e meia – em 2020, foram 1.350 casos registrados –, e o que mais mata pessoas trans no mundo

Em 2021, Damares executou apenas a metade do que foi autorizado pela LOA

A execução do recurso do governo federal que financiou as políticas para as mulheres em 2021 foi de R$ 71,1 milhões, representando 100 % em relação ao valor autorizado para o ano passado. No entanto, ao olharmos detalhadamente os dados do orçamento, deste montante, 49,4% são de restos a pagar, ou seja, pagamento de contratos firmados em anos anteriores. Isso significa que cerca de metade do recurso executado é do que foi autorizado pela Lei Orçamentária Anual (LOA) em 2021, e a outra metade de recursos empenhados em anos anteriores.

Ainda assim, esta foi a melhor execução no tema mulheres nos três anos da gestão de Damares Alves à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), que tem como responsabilidade implementar políticas de enfrentamento à violência e promoção de direitos das mulheres. Esse desempenho pode estar associado à constante pressão dos movimentos sociais de mulheres, o que desencadeou um requerimento de investigação junto à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados e na abertura de um inquérito pelo Ministério Público Federal para investigar a baixa execução do Ministério nos anos anteriores.

Casa da Mulher Brasileira foi negligenciada no governo Bolsonaro 

Analisando mais detalhadamente a execução de 2021, destaca-se que a Casa da Mulher Brasileira permaneceu negligenciada pela ministra Damares Alves: dos R$ 21,8 milhões autorizados para execução, foram gastos apenas R$ 1 milhão, acompanhando a lamentável série histórica de execução deste recurso, já que em 2019 nada foi executado e, em 2020, penas R$ 308 mil dos R$ 71,7 milhões disponíveis. 

Orçamento não chega aonde é preciso

O recurso do Ligue 180: Central de Atendimento à Mulher – que nesta gestão foi integrado ao Ligue 100, de denúncias sobre violações de direitos humanos –, permaneceu estável em termos de volume orçamentário autorizado e executado. Isso significa que a porta de entrada da política pública de enfrentamento à violência segue funcionando, embora a ministra insista em desconfigurar o serviço, como foi o caso da Nota Técnica do MMFDH que recomendou que o canal recebesse denúncias de pessoas antivacinas. Felizmente, o Superior Tribunal Federal – STF proibiu a medida estapafúrdia. 

Se, por um lado, a principal política de acolhimento emergencial das mulheres vítimas de violência, o Ligue 180, está operando, por outro, as demais políticas públicas necessárias não têm funcionado tão bem. É o que demonstra, por exemplo, o Relatório da CPI do Feminicídio no Distrito Federal, que apurou como a complexa rede de atendimento às mulheres – que envolve as polícias, o Judiciário, o Sistema Único de Saúde (SUS) e de Assistência Social (SUAS), a educação – não está atingindo seus objetivos. Um dos motivos para esta inoperância é justamente o fato de que os recursos federais não chegaram aos estados e municípios, ou chegaram com atraso e em quantidade insuficiente. 

O Gráfico 4 apresenta a execução financeira do recurso voltado para enfrentamento da violência (que deve ser investido na rede de políticas públicas) e promoção da autonomia das mulheres (última fase do atendimento a uma mulher vítima, ou seja, viabilizar formas de autonomia e rompimento com a dependência do agressor, para que a mulher possa superar o ciclo de violência). Como podemos observar, em 2021, finalmente o MMFDH executou recursos para esta ação, no valor de R$ 44,2 milhões – sendo R$ 31,2 milhões de restos a pagar –, enquanto que em 2019 e 2020 o gasto nessa área foi em média de 50% do autorizado. 

Em 2022, alocação mais baixa dos últimos quatro anos 

Para 2022, os recursos destinados são parcos: apenas R$ 5,1 milhões para enfrentamento à violência e promoção da autonomia e R$ 8,6 milhões para as Casas da Mulher Brasileira (aproximadamente R$ 318 mil por estado, se for executado). Esta é a alocação mais baixa dos quatro anos de gestão da ministra Damares. 

Analisando a execução financeira das políticas para mulheres do governo Bolsonaro até aqui, a impressão é de que há uma priorização de pautas ideológicas e moralistas fortalecidas na figura de Damares Alves e seus delírios de princesa, além do uso político de vítimas de violência sexual e outros impropérios, como a tentativa de financiamento da pauta antivacina. Como sociedade civil organizada na defesa dos direitos, nos resta seguir monitorando e realizando o controle social dos gastos do orçamento público. 


[1] Fonte: Relatório Luz 2021, GT Agenda 2030. 

[2] Fonte: Relatório Um país sufocado, Inesc, 2021.

[3]  Dado corrigido pela inflação.  

fonte: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/inesc-os-numeros-do-boicote-as-politicas-para-mulheres/

A desigualdade de gênero em três gráficos reveladores

Três metas da ONU – fim da mortalidade materna e da violência de gênero, e acesso ao planejamento familiar – parecem distantes. Brasil contribui para o pessimismo, inclusive no quesito pouco debatido dos casamentos infantis

OUTRASAÚDE
Por Gabriela Leite
Publicado 09/03/2022 às 07:00

Ao que o ano de 2030 se aproxima, o mundo se encaminha para avaliar quão perto está das metas da Organização das Nações Unidas (ONU) para reduzir as desigualdades de gênero. Na 66º sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher, também da ONU, que será realizada entre os dias 14 e 25 de março, serão revisados três objetivos, estabelecidos em 1996 na conferência de Pequim. São eles: o fim da mortalidade materna, da falta de acessibilidade ao planejamento familiar e da violência de gênero – que inclui casamento infantil, mutilação genital e violência doméstica. Um primeiro exame foi publicado na nova edição do boletim do Centro de Relações Internacionais (CRIS) da Fiocruz. 

Os gráficos, produzidos pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), não trazem tão boas notícias. Embora seja necessário reconhecer que todas as taxas estão em queda, parece que o mundo está distante de alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela ONU. Mas, ao olhar o copo meio cheio, constataremos que houve uma queda consistente de mortes maternas entre 1990 e 2015, como mostra o gráfico abaixo. Em 90 eram 385 por 100 mil, hoje a taxa global é de 211 mortes por 100 mil nascidos vivos – e até 2030 é preciso que esse número chegue ao menos aos 70. Há dados para acreditar, no entanto, que a pandemia de covid tenha desacelerado essa queda: a doença é mais perigosa às gestantes e muitas das que foram contaminadas não conseguiram atendimento médico eficaz.

No Brasil, os números da mortalidade materna também são alarmantes: país concentra 75% das mortes de grávidas e puérperas por covid, no mundo – e as negras morrem 77% a mais. A taxa de morte materna, por aqui, está em 59,1 mortes por 100 mil nascidos vivos, ficando bem atrás do índice recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que seria menor que 20. “No Brasil, de 1996 a 2018, foram registrados 38.919 óbitos maternos no SIM [Sistema de Informação Sobre Mortalidade], sendo que aproximadamente 67% decorreram de causas obstétricas diretas”, reporta um relatório publicado pelo Instituto Federal de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente (IFF), da Fiocruz. Uma das principais causas da morte de gestantes é o aborto, quando feito de maneira insegura – dado considerado subestimado, já que a prática é criminalizada no Brasil.

Em termos de violência doméstica, a meta da UNFPA é que os números cheguem a zero até 2030. Não parece ser algo possível de se alcançar, e os números brasileiros ajudam a inflar o pessimismo. Em 2020, foram feitas 694.131 ligações de emergência para pedir socorro por violência doméstica – uma por minuto. Com a pandemia, o número de casos de feminicídio escalou. Segundo o Datafolha, 48,8% das mulheres que relataram ter sido vítimas de violência, entre 2020 e 21, foram agredidas dentro de casa

Há outro dado que o UNFPA considera violência contra mulheres: o casamento infantil – considerado uma violação de direitos humanos que afeta principalmente as meninas. Embora em queda suave, a porcentagem de garotas em união formal ou informal antes dos 15 anos era de 7,5%, em 2015, conforme explicita o gráfico abaixo. A ideia é que chegue também a zero, em 2030.

Embora seja um problema pouco debatido por aqui, o Brasil está em quarto lugar em números totais de casamentos de pessoas abaixo dos 18 anos no mundo. Mais de 65 mil meninas se casam entre 10 e 14 anos de idade. É uma violência que afeta principalmente aquelas em vulnerabilidade social: muitas vezes o casamento é visto como maneira de se livrar de um ambiente familiar abusivo. E é outra mazela que piorou com a pandemia.

Falando em família… A outra meta da UNFPA diz respeito ao acesso a planejamento familiar. Até 2017, 11,5% das mulheres no mundo haviam passado por necessidade de uso de métodos contraceptivos que não foi atendida. No Brasil, a Atenção Básica do SUS disponibiliza contraceptivos para a população, como métodos hormonais, inserção de DIU e distribuição gratuita de camisinhas. Mas mesmo isso pode estar sob ataque, com um ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos que já considerou estimular a política do “eu escolhi esperar” para prevenir gravidez na adolescência…

GABRIELA LEITE – Gabriela é editora, designer e produtora audiovisual de Outras Palavras.

fonte: https://outraspalavras.net/outrasaude/a-desigualdade-de-genero-em-tres-graficos-reveladores/

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