Quando o Brasil vive sob um Governo que tenta apagar os escombros do regime militar, uma batalha avança em São Paulo para fazer do antigo endereço da tortura um espaço de dignidade para as vítimas
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MARCELO OLIVEIRA
EL PAÍS – São Paulo – 28 SEPT 2021 – 10:56 BRT
É uma memória quase perdida. Hoje funciona ali o 36º Departamento de Polícia de São Paulo e um laboratório de impressões digitais da polícia, que esconde um conjunto de edifícios baixos de cor acinzentada, hoje vazios. Era para lá que seguiam os presos políticos durante a ditadura. Apelidado de “açougue” entre os agentes que lá trabalhavam, o DOI-CODI deixou de existir em 1990. Não há sequer uma placa ou uma pintura em algum muro informando que aquele conjunto de edifícios é tombado pelo Patrimônio Histórico desde 2014.
Num momento em que o Brasil vive sob um Governo que atua para apagar os escombros que o regime militar deixou no país, uma batalha ganha espaço em São Paulo para tornar o antigo endereço do QG da tortura um espaço de dignidade para as vítimas que morreram ali e para o conhecimento das próximas gerações. Uma ação civil pública do Ministério Público de São Paulo, ajuizada em junho, solicita que a área ocupada por quatro prédios que faziam parte do DOI-CODI —exceto a delegacia— seja transferida da Secretaria de Segurança Pública para a Secretaria de Cultura do Estado. Esta deverá preservar os prédios tombados e elaborar um plano para instalar um centro de memória no antigo QG da repressão.
A demanda por um memorial já tem 11 anos. Em 2010, Ivan Seixas, que foi torturado ao lado do pai aos 16 anos, pediu o tombamento do antigo DOI-CODI e a criação do memorial quando ocupava a presidência do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana). Em novembro de 2013, integrantes das comissões Nacional, Estadual e Municipal da verdade estiveram com seis ex-presos políticos no DOI-CODI. Na ocasião, os ex-presos reiteraram o pedido de tombamento do antigo centro de torturas e sua transformação em um memorial.
Era no DOI-CODI do II Exército que despachava e onde morou com a família por um tempo um dos heróis às avessas do presidente Jair Bolsonaro: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou a “repartição” entre 1970 e 1974, e morreu de câncer em 2015, num hospital de Brasília, sem ter sido condenado em nenhum dos sete processos que o Ministério Público Federal tentou abrir contra ele.
A casa dos horrores torturou até a morte jovens opositores do regime militar. Outros viveram a perversidade de serem torturados na frente de filhos crianças, como Amélia e Cesar Teles. O casal, de pouco mais de 20 anos, foi preso em dezembro de 1972, e apanhou seguidamente. Amelinha, como é conhecida, chegou a ser colocada nua numa cadeira para tomar choques elétricos. Quando as descargas pararam, recebeu a visita dos dois filhos, então com 5 e 4 anos. Tudo sob a supervisão do comandante Ustra.
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Para debaixo do tapete
O Brasil joga para baixo do tapete as evidências dos crimes daquela época. A única sentença criminal de primeiro grau contra um agente da repressão da ditadura foi anunciada no mês de junho deste ano: o ex-investigador Carlos Alberto Augusto, o Carlinhos Metralha, foi condenado a 2 anos e 11 meses de prisão pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte, em 1971, processo no qual Ustra foi réu até morrer, sendo excluído da ação. Foi a memória de Ustra que Bolsonaro escolheu homenagear ao votar a favor do impeachment de Dilma Rousseff, em abril de 2016, em vídeo que ele usou ostensivamente em sua campanha eleitoral em 2018.
Frequentadores da região do antigo DOI-CODI, que passam com seus cachorros ou param seus carros para buscar os filhos em uma das duas escolas infantis que ficam a menos de 100 metros do antigo QG da morte, desconhecem esse passado sombrio. No dia em que a reportagem esteve nos arredores, dois terços dos entrevistados (inclusive moradores) não sabiam do passado daquele quarteirão.
A aposentada Josefa Martins da Silva, de 89 anos, que mora num prédio na esquina das ruas Tumiaru e Tutoia, faz parte do grupo que não esqueceu. “Dava para escutar os gritos”, conta. Segundo ela, “ninguém podia ficar olhando o movimento” no local das janelas de seus apartamentos, pois eram advertidos pelos policiais e militares que tomavam conta do local. O taxista Sergio Naltchadjian, 64, não frequentava o bairro do Paraíso na época da ditadura, mas há anos tem um ponto de táxi na rua Tutoia e conta que moradores mais antigos já lhe disseram que era possível ouvir os gritos. “E, se alguém colocasse a cara na janela, já perguntavam o que estava olhando”, recorda.
Quem sobreviveu à tortura também não esquece. Ex-integrante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o ex-preso político Ivan Seixas, 66, preso aos 16 anos no DOI-CODI com o pai, o operário Joaquim Alencar de Seixas (assassinado em abril de 1971), sabe apontar exatamente o local onde foi torturado ao longo dos 50 dias em que esteve preso. “Foi naquele prédio nos fundos do 36º DP, no último andar. Eram duas salinhas e todo mundo via o que acontecia lá. Eu costumo dizer que nunca houve porões da ditadura, pois tudo era aberto. Era terrorismo de Estado”, conta. O MRT era adepto da luta armada, e seu pai teria integrado o grupo que matou Albert Hening Boilisen, empresário dinamarquês radicado no Brasil, acusado de financiar o regime militar. O documentário Cidadão Boilisen, que conta a sua história, relata que o empresário acompanhava pessoalmente as sessões de tortura de presos políticos.
Foi também no DOI-CODI que, num intervalo de três meses, foram mortos sob tortura o jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e o operário Manoel Fiel Filho, em 1976. Em ambos os casos, o Exército anunciou falsamente que se tratavam de suicídios. Herzog era diretor da TV Cultura, e foi convocado a se apresentar às autoridades depois de uma reportagem que falava do regime militar. Era um tempo em que jornalistas estavam na mira da ditadura, como contou seu filho, Ivo Herzog, a este jornal, em maio de 2018. Fiel Filho era um operário metalúrgico e foi preso por ter em casa panfletos contra a ditadura.
A ex-presidenta Dilma Rousseff, segundo relatou, em 2001, ao Conselho Estadual de Direitos Humanos (Conedh) de Minas Gerais, foi torturada por policiais mineiros e da Oban (Operação Bandeirante, que antecedeu o DOI-CODI) por 22 dias seguidos no início de 1970. Um de seus torturadores foi o capitão Benoni de Arruda Albernaz, que atuou no DOI, e lhe arrancou um dente com um soco.
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Em 10 de maio de 2013, o então vereador paulistano Gilberto Natalini contou à CNV que foi torturado pessoalmente em 1972 por Ustra. Ali, ele encarou o coronel, que prestou depoimento no mesmo dia. Natalini foi preso por ter cópias de publicações da Molipo (Movimento de Libertação Popular) quando militava no movimento estudantil e cursava medicina em São Paulo. “Fiquei três dias sendo interrogado, de dia e de noite, de noite e de dia, inclusive pelo coronel Ustra, que entrou várias vezes na sala”, contou Natalini, que revelou ter sido torturado por 60 dias, inclusive pelo comandante do DOI. “Tive a vivência de ter o coronel Ustra sempre presente nas salas de tortura, presenciando, participando, orientando (…) Eu apanhei dele pessoalmente, o coronel Ustra me bateu (…). Ele me despiu, me colocou em pé numa poça d´água, ligou fios no meu corpo e chamou a tropa para fazer uma sessão de declamação de poesias que eu escrevia contra o regime e ficou com um cipó, ele mesmo, me batendo durante horas”, contou Natalini à CNV.
Preservar o passado para não se repetir
No último dia 9 de setembro, às 14h, numa audiência histórica e carregada de simbolismo, o judiciário paulista reuniu integrantes do Ministério Público e representantes do Governo de São Paulo para decidirem se estas memórias continuarão pertencendo a poucos ou pertencerão a todos. Não houve acordo sobre a cessão de prédios para a Secretaria de Cultura, mas a conversa ficou em aberto. A ideia de preservar a memória para que não se repitam horrores é uma demanda urgente. A tortura desse período contamina até hoje as práticas policiais no país. O tombamento de locais onde ocorreram graves violações de direitos humanos e sua transformação em memoriais é recomendação expressa do relatório da Comissão Nacional da Verdade, “para a preservação da memória das graves violações de direitos humanos”.
O conjunto foi tombado em maio de 2014 pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico). Ao determinar a audiência do último dia 9 no DOI-CODI, o juiz José Eduardo Cordeiro Rocha, da 14ª Vara da Fazenda Pública, concedeu uma liminar obrigando o Estado de São Paulo a preservar todos os elementos estruturais e arquitetônicos dos prédios localizados no terreno do antigo DOI-CODI. Dos quatro prédios de que o MP pede a cessão para a Secretaria de Cultura, a SSP usa apenas duas salas no prédio da rua Tomás Carvalhal. Uma é ocupada pelo laboratório de datiloscopia (impressões digitais) da Polícia Civil, outra é o depósito de pneus de tratores e ônibus da polícia. No pátio ficam carros examinados pelo laboratório.
Os prédios em jogo incluem o edifício de três pavimentos nos fundos da delegacia que eram usados para interrogatórios e tortura; a casa do comandante, de dois pavimentos; um prédio de três andares com entrada pela rua Tomás Carvalhal, que era o alojamento dos policiais e militares; a garagem e o pátio do antigo DOI e o muro externo da rua Tomás Carvalhal, onde ficava a entrada do centro de tortura e onde até hoje se veem duas guaritas. O prédio e a garagem, pelo menos por fora, parecem estar em boas condições. O mesmo não se pode dizer dos dois prédios localizados atrás do 36º DP. As paredes externas de ambos os edifícios têm infiltrações.Apoie a produção de notícias como esta.
A delegacia, inaugurada em 1960, é coadjuvante da ação. Por hora, o MP pede apenas que o Estado, caso condenado, apresente um “estudo para posterior desocupação das dependências da 36ª Delegacia de Polícia da Capital, integrando o prédio localizado na Rua Tutóia ao complexo do [futuro] Centro de Memória”.
A historiadora Deborah Neves, doutora em História pela Unicamp, e que atuou no processo de tombamento do DOI, coordena o grupo de trabalho criado pelo MP em 2016, quando foi aberto o inquérito civil público que resultou na ação. Para ela, mesmo antes do desfecho das negociações, é necessário dar andamento a pesquisas arqueológica e estratigráfica (que descasca uma parede, por exemplo, para saber quantas camadas de tinta ela tem). Há um projeto de pesquisadores para, inclusive, procurar restos humanos ali. Não há notícia de que corpos de desaparecidos políticos tenham sido enterrados no DOI-CODI, mas a ideia é procurar vestígios de sangue e dentes no local, antes da adaptação da área para um memorial.
O convênio para a realização das pesquisas já está nas mãos do secretário de Cultura, mas a ausência de cessão da área atrasa o projeto. Em 22 de maio deste ano, foi iniciada uma parceria entre a Secretaria de Cultura e o Memorial da Resistência para a preservação da memória oral do período. O primeiro depoimento colhido foi o de Ivan Seixas. A ideia é ouvir ao menos 100 pessoas presas e torturadas no local. “Já perdemos o [jornalista] Alípio Freire, o [sindicalista] Raphael Martinelli e o [operário e fundador do PT] Clóves de Castro e, por isso, iniciamos essa coleta de testemunhos. Fomos procurados por pessoas que não falaram nem para a CNV, nem para o Memorial da Resistência”, revela Neves, indicando que, passados tantos anos, ainda há muito a se revelar.
fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-28/doi-codi-as-memorias-do-qg-da-tortura-da-ditadura-precisam-seguir-vivas.html
- Mariluci Cardoso de Vargas
- 17 de ago. de 2021
Tortura e violência institucional da ditadura civil-militar à atualidade
Para iniciar o diálogo com as leitoras e os leitores do História da Ditadura por meio da coluna Vozes da ditadura, elegi a tortura e a violência institucional como chaves de reflexão visando apresentar a historicidade das normativas referentes à matéria e a maneira como a temática tem sido tratada pelo atual governo federal. Para tanto, além de percorrer as legislações promulgadas desde a Constituição de 1988, comentarei os ataques discursivos por parte do atual presidente às pessoas que foram torturadas durante a ditadura e algumas possibilidades para situarmos o testemunho desses sobreviventes. O objetivo dessa reflexão está em visualizarmos coletivamente esse panorama a fim de observarmos as políticas de prevenção à tortura e de apoio às vítimas de práticas dessa natureza e repudiarmos não somente a tortura, mas a desconstrução de uma estrutura estatal criada para combatê-la.
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Desaparecimento de Amarildo de Souza em 2013, após detenção, levou a acusações de tortura e morte. Fernando Frazão/ABr. Fonte: Agência Senado. Wikimedia Commons.
Destaco que essa coluna é uma extensão do site Vozes da ditadura: banco de testemunhos da história recente, lançado em 29 de outubro de 2020, projeto aprovado pelo Programa de Pós-graduação em História da UFRGS, por meio do Programa Nacional de Pós-Doutorado da CAPES, com apoio do Laboratório de estudos sobre os usos políticos do passado (LUPPA/UFRGS). A plataforma reúne listas de livros e filmes de conteúdo testemunhal publicados e lançados desde 1964 até os dias atuais, além de indicar bancos de dados, fundos arquivísticos e trabalhos acadêmicos que exponham ou analisem relatos de experiências ou de impactos deixados pela ditadura civil-militar brasileira. Perante os vestígios mapeados pela pesquisa, mobilizar o debate sobre a tortura se faz necessário porque as Vozes da ditadura, na perspectiva de pessoas que sobreviveram às graves violações de direitos humanos, tendem a abordar essa temática para além do tempo de sua ocorrência. No Brasil, temos dezenas de livros e documentários de conteúdo testemunhal, centenas de declarações fotocopiadas pelo projeto Brasil: Nunca Mais, milhares de processos de requerimento à Comissão de Anistia e de reconhecimento das torturas destinados às comissões estatais de reparação, de relatos registrados por oitivas e audiências públicas das comissões da verdade, a nacional, as dos estados, municípios e demais instituições. Recentemente, em 26 de junho, o assunto deveria ter circulado com destaque pelos meios de comunicação e em debates promovidos pelos poderes públicos, pela passagem do Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, estabelecido pela Organização das Nações Unidas em 1997, como forma de marcar uma década da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes que entrou em vigor em 1987. Apesar dessa Convenção estar em vigor há décadas no Brasil (Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991), a data passou sem debates notáveis promovidos pelas instituições estatais, como observado pelo jornalista Camilo Vannuchi.
Pela Lei nº 12.847 de 2013, o Estado brasileiro instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. No entanto, ao realizar uma busca por informações acerca do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é possível perceber que, sob a atual gestão governamental, o acesso às informações e às ações referentes ao trabalho desse órgão colegiado são precárias. Além disso, em março de 2020, as organizações da sociedade civil que compõem o CNPCT denunciaram à ONU as práticas de desrespeito ao regimento interno promovidas por Damares Alves, presidenta do CNPCT e atual ministra do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, além de iniciativas que caracterizam o desmonte da referida política pública.
Uma das últimas discussões públicas referentes ao órgão diz respeito à tentativa da ministra de retirar a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) dos membros que compõem o CNPCT, alegando que esta instituição não poderia ocupar uma vaga da sociedade civil já que se trata de um órgão da administração pública. A Defensoria Pública da União ajuizou uma ação para impedir que a UFRN seja retirada da composição. Essa situação indica que o Ministério que carrega no seu conceito os Direitos Humanos parece estar mais preocupado em controlar amplamente o órgão do que empregar esforços para combater ou prevenir as práticas de torturas e dar apoio às vítimas.
O tema da tortura não está presente somente nas atribuições do CNPCT, mas é também assunto recorrente nos comentários proferidos pelo atual chefe do Executivo. Em dezembro de 2020, após meses de vigência da pandemia de Covid-19 que já havia interrompido e enterrado mais de cento e oitenta e cinco mil vidas no Brasil, o dirigente do Estado brasileiro declarou em uma entrevista que ainda aguardava o exame de raio-X que confirmasse a lesão deixada pelas torturas na mandíbula da ex-presidenta Dilma Rousseff da época em que esteve detida pelos órgãos de repressão, detenção e tortura nos anos 1970. Ao utilizar a tortura praticada por agentes públicos e militares para atacar uma ex-presidenta, o comandante do país atinge todas e todos que foram torturadas e torturados os pelo fato de se posicionarem contra a ditadura e em oposição ao Estado de exceção.
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Dilma Rousseff durante auditoria militar do Rio de Janeiro, em 1970. Foto: Arquivo Nacional da Comissão da Verdade. Wikimedia Commons.
O repúdio à tortura é um dos legados dos pactos estabelecidos pelo Brasil após a ditadura ser desarticulada nos anos 1980, quando buscou aprofundar a democracia por meio de instrumentos jurídicos, medidas, projetos e políticas públicas. A Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988 afirma em seu artigo 5º que: “III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.” Igualmente em 1989, o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a qual passou a vigorar por meio do Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989. Por fim, em 1997, a Lei nº 9.455 entrou em vigor, a fim de definir os crimes de tortura entre outras providências. Em seu artigo 1º, a normativa esclarece que:
constitui crime de tortura: I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental; a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; em razão de discriminação racial ou religiosa; II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. (Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997)
Ao apresentar a adesão do Estado brasileiro às convenções internacionais e à incorporação dessa matéria nos seus instrumentos jurídicos internos para que as práticas de tortura sejam repudiadas, combatidas e punidas, percebe-se que se passaram vinte e cinco anos até o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura ser configurado por meio da lei de 2013. Desde 2019, assistimos aos ataques retóricos e práticos a toda essa estrutura embasada nos Direitos Humanos e voltada para um horizonte de erradicação desse crime. Nos anos da ditadura civil-militar brasileira, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade baseado no Direito Internacional dos Direitos Humanos, a tortura, além de grave violação aos Direitos Humanos, foi uma política de Estado e, pelo seu caráter sistemático e generalizado, configurou-se em crime contra a humanidade.
Sabemos que as práticas de tortura e violência institucional não foram inventadas pelos militares do Brasil recente, posto que circularam como um dos modos de manutenção da escravidão de indígenas e africanas/os. Nas primeiras décadas do século XXI, essas práticas seguem sendo um instrumento utilizado por agentes públicos contra as populações mais vulneráveis, contra a população privada de liberdade e contra pessoas ou grupos alvejados pelo racismo estrutural e pelos abusos por motivação de classe ou de gênero.
Especificamente em relação aos anos de vigência da ditadura civil-militar, nós, brasileiras e brasileiros, temos um acervo significativo de testemunhos – em alguns casos, com detalhes e identificação de autores – acerca das humilhações e das variadas violências perpetradas por agentes de Estado. Desde seu livro Los trabajos de la memoria (2002), a socióloga argentina Elizabeth Jelín, inspirada em uma ampla gama de pensadoras e pensadores, nos chama atenção para a importância do presente como regulador do compartilhamento de memórias e do exercício de elaboração dos sentidos para o passado. A tradução do vivido, em se tratando de situações de extrema violência experenciadas sob as ditaduras militares latino-americanas, foi censurada e punida pelos regimes; algumas vozes foram caladas ad aeternum; as de sobreviventes levaram tempo, muito tempo, para ganhar forma, por meio da escrita, da oralidade e de outros suportes. Os trabalhos da memória, segundo Jelín, são realizados em contextos nos quais o verbo tem permissão para ecoar, ou seja, quando encontra conforto em uma escuta respeitosa.
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Em um passado não muito distante, as instituições da República brasileira investiram em mecanismos e projetos de assistência psíquica às pessoas vitimadas por tortura ou violências afins. Essas medidas funcionaram paralelamente ao trabalho de comissões estatais que permitiram o registro e a reparação de requerentes vitimadas/os ou aos familiares de pessoas submetidas às graves violações de Direitos Humanos. Se durante as últimas décadas falar sobre torturas e violências institucionais já era algo bastante delicado ainda que sob políticas que pudessem, em alguma medida, acolher ou apoiar às vítimas de tortura, como retornar publicamente a esse assunto em um momento em que a instituição política máxima desacredita as pessoas torturadas?
As Vozes da ditadura referentes às práticas de tortura são parte de um patrimônio documental e audiovisual brasileiro. Apenas para citar algumas das produções de conteúdo testemunhal realizadas em um tempo muito próximo aos acontecimentos, destaco os livros Torturas e Torturados (1966), de Márcio Moreira Alves e Tortura. A história da repressão política no Brasil (1979), de Antonio Carlos Fon; os documentários Brazil: A report on torture (1971), de Saul Landau e Haskell Wexler, e No es hora de llorar (1971), de Pedro Chaskel e Luiz Alberto Sanz – bens culturais que estão listados pelo Banco de testemunhos da história recente. Além dos registros de experiências e de relatos baseados nas lembranças das pessoas vitimadas pela tortura, a escrita da História vem contribuindo para a elaboração desse passado sombrio e para a desconstrução dos usos que a ditadura fez da censura e das versões que não condizem com os acontecimentos construídas pelos órgãos de espionagem e contrainformação. Livros e filmes semelhantes aos exemplificados vem sendo analisados em trabalhos acadêmicos que buscam realizar uma interpretação crítica acerca desse passado.
Ao destacar alguns dos exemplos de conteúdo testemunhal, chamo atenção para as vozes da ditadura que se manifestaram como forma de denunciar os casos de torturas. Ao investigar o assunto, ouvir os relatos das pessoas que foram submetidas à graves violações de Direitos Humanos e trabalhar para que esses registros sejam parte do patrimônio documental e audiovisual brasileiro, alguns profissionais também acabam contribuindo para o apoio às vítimas de torturas, uma vez que garantem os espaços para que essas vozes possam ecoar. Nesse sentido, é fundamental sublinhar as variadas possibilidades de acesso as vozes de testemunhos da tortura para que possamos nos aproximar desse passado presente e para fazermos coro em repúdio a crimes dessa natureza e toda a violência institucional.
A cada declaração de desrespeito e descrédito às pessoas que foram torturadas a instituição presidencial se afasta dos compromissos aos quais o Estado brasileiro é signatário e explicita o tipo de relação que estabelece com a barbárie.
Em resistência à barbárie, seguiremos!
- P. S. 1: A escrita desse texto foi realizada logo após a libertação de Rodrigo Grassi. Um salve ao Estado democrático de direito!
- P. S. 2: Meu agradecimento a Carla Osmo e a Shana Santos pela leitura prévia e comentários.
Créditos da imagem destacada: Reprodução.
fonte: https://www.historiadaditadura.com.br/post/torturaeviolenciainstitucionaldaditaduracivilmilitaraatualidade