A crítica de Hans Küng à infalibilidade papal não nasceu no clima antiautoritário de 1968, mas se insere em um percurso coerente, iniciado com a tese de doutorado defendida em 1957 e dedicada à análise do tema da justificação.
A opinião é de Marco Rizzi, professor de literatura cristã antiga da Universidade Católica do Sagrado Coração, em Milão, Itália, em artigo publicado em Corriere della Sera, 06-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Morreu aos 93 anos de idade, na sua casa em Tübingen, Alemanha, o teólogo suíço Hans Küng. Nascido em Sursee, pequeno vilarejo no cantão de Lucerna, Suíça, no dia 19 de março de 1928, foi ordenado sacerdote em Roma em 1954, após os estudos de teologia na Universidade Gregoriana. Depois de um breve período de atividade pastoral na sua diocese de origem, a sua atividade se desenvolvera inteiramente no âmbito da pesquisa teológica.
Nessa qualidade, Küng conheceu um primeiro momento de notoriedade junto ao grande público em 1970, quando publicou o livro “Infallibile? Una domanda” [Infalível? Uma pergunta]. Como indica o ponto de interrogação do título, Küng examinava criticamente o dogma da infalibilidade papal, sancionado pelo Concílio Vaticano I em 1870.
O livro desencadeou uma onda de polêmicas que, a partir da Universidade de Tübingen, onde Küng lecionava, e do mundo acadêmico alemão, logo chegaram a Roma, resultando em uma convocação formal da Congregação para a Doutrina da Fé em 1975 e, quatro anos depois, na retirada do título de “teólogo católico”, necessário na Alemanha para lecionar nas faculdades de teologia presentes nas universidades públicas.
O caso teve repercussão mundial e desconcertou as autoridades acadêmicas; Küng não pôde mais lecionar na faculdade onde havia se tornado professor em 1960, quando tinha apenas 32 anos. Mas manteve a cátedra no Instituto de Teologia Ecumênica, por ele fundado após o Concílio Vaticano II.
Precisamente no Concílio, ele foi o mais jovem dos teólogos nomeados por João XXIII como peritos, ou seja, consultores dos trabalhos, junto com Joseph Ratzinger, apenas um ano mais velho. Os dois também seriam colegas em Tübingen até 1969, quando a explosão da contestação estudantil levou Ratzinger a se mudar para a mais tranquila Regensburg.
A crítica de Küng à infalibilidade papal, entretanto, não nasceu no clima antiautoritário de 1968, mas se insere em um percurso coerente, iniciado com a tese de doutorado defendida em 1957 e dedicada à análise do tema da justificação, ou seja, de um dos principais nós teológicos sobre os quais havia se consumado a separação entre católicos e protestantes no século XVI.
Por meio do exame dos escritos do maior teólogo protestante do século XX, o calvinista Karl Barth, Küng chegou a uma conclusão absolutamente inesperada no clima dos anos 1950, ainda ligada a esquemas de tipo polêmico, ou seja, a um modo de proceder que contrapunha afirmação a afirmação, categoria a categoria.
Para Küng, existem diferenças entre a posição católica e a de Barth, mas elas não dizem respeito ao núcleo da fé; a terminologia, as categorias, as formas do pensamento são simplesmente diferentes. Para usar uma metáfora, é como se a mesma coisa fosse dita em duas línguas diferentes. A tarefa da “teologia ecumênica” é fazer dialogar as teologias das diversas confissões cristãs, traduzindo-as, por assim dizer, de uma linguagem para outra.
A infalibilidade, portanto, é apenas uma etapa de um percurso mais geral, que, ao longo dos anos 1960, se concentrou sobretudo na eclesiologia (a reflexão sobre a Igreja e sobre as suas estruturas visíveis e espirituais), com volumes que antecipam ou desenvolvem os temas conciliares, como “Riforma della Chiesa e unità dei cristiani” [Reforma da Igreja e unidade dos cristãos] (Ed. Borla, 1965) ou “La Chiesa” [A Igreja] (Ed. Queriniana, 1967).
Os anos 1970, viram Küng comprometido, além do conflito com Roma, nos grandes assuntos teológicos, como a cristologia (“Ser cristão”, Ed. Vozes, 1979), Deus (“Dio esiste?”, Ed. Mondadori, 1979), escatologia (“Vita eterna?”, Ed. Mondadori, 1983), sempre abordados na perspectiva de uma integração efetiva entre as perspectivas das diferentes confissões cristãs.
Era até certo ponto inevitável que tal itinerário levaria ao longo dos anos 1980 ao alargamento do olhar de Küng para fora da tradição cristã, transferindo a sua abordagem ecumênica para o complexo das religiões do mundo: “Cristianesimo e religioni universali” [Cristianismo e religiões universais] (Ed. Mondadori, 1986), “Cristianesimo e religiosità cinese” [Cristianismo e religiosidade chinesa] (Ed. Mondadori, 1989), “Projeto de Ética Mundial” (Ed. Paulinas, 1993), “Ebraismo. Passato, presente, futuro” [Judaísmo. Passado, presente, futuro] (Ed. Rizzoli, 1993), “Islam” (Ed. Rizzoli, 2005) delineiam o quadro de uma aliança ética e intelectual entre todas as religiões em defesa da paz e da dignidade humana.
Küng não se esquivou sequer do debate com as disciplinas científicas, muitas vezes consideradas como “inimigas da teologia”, como emerge do livro “Teologia in cammino” [Teologia a caminho] (Ed. Mondadori, 1987), que se defronta com o ponto de vista das revoluções científicas de Thomas Kuhn, e de “L’inizio di tutte le cose” [O início de todas as coisas] (Ed. Rizzoli, 2006), em que Küng examina os resultados mais recentes da física teórica e contesta, sobre bases epistemológicas, a sua pretensão de constituir uma forma de conhecimento absolutamente certa.
Depois de tantas polêmicas, a reaproximação de Küng com a Igreja de Roma foi marcado pelo encontro com o seu antigo colega, Ratzinger, então no sólio pontifício, em setembro de 2005, e pela carta que o Papa Francisco lhe havia enviado no dia 20 de março de 2016, por ocasião do seu 88º aniversário, que começava com as palavras Lieber Mitbruder, “querido coirmão”.
Leia mais
- A dignidade humana em primeiro plano, a base da moral da Ética Mundial. Entrevista especial com Hans Küng
- Religiões mundiais e Ethos Mudial. Artigo de lHans Küng. Cadernos Teologia Pública, no. 33
- A Origem da Vida. Artigo de Hans Küng. Cadernos Teologia Pública, no. 44
- Bento XVI e Hans Küng. Contexto e perspectivas do encontro em Castel Gandolfo. Artigo de Karl-Josef Kuschel. Cadernos Teologia Pública, no. 21
- Ética global para o século XXI: o olhar de Hans Küng e Leonardo Boff. Artigo de Águeda Bichels. Cadernos Teologia Pública, no. 48
Morreu Hans Küng, célebre e polêmico teólogo suíço
O padre e teólogo católico Hans Küng, o renomado estudioso e prolífico escritor que convivia com o mal de Parkinson, a degeneração macular e a artrite desde 2013, morreu nessa terça-feira, 6 de abril, em sua casa em Tübingen, Alemanha. Ele tinha 93 anos.
A reportagem é de Patricia Lefevere, publicada em National Catholic Reporter, 06-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Poucos homens em toda a cristandade tiveram tanto a dizer ou tiveram a sua obra lida por tantos cristãos – e outros – quanto Küng, o célebre e controverso teólogo suíço e padre católico.
Abra uma revista ou ligue a televisão na Europa, e é provável que você veja o rosto e escute a voz em tom germânico do famoso professor suíço que viveu, ensinou e proferiu conferências por mais de 40 anos na Alemanha.
Muitas vezes, ele era fotografado na companhia de chefes de Estado – Tony Blair da Grã-Bretanha, Mikhail Gorbachev da União Soviética, Helmut Schmidt da Alemanha – assim como de líderes religiosos mundiais.
Ele frequentemente participava de diálogos públicos com representantes acadêmicos do budismo, das religiões chinesas, do hinduísmo, do islamismo e do judaísmo. Ele também se encontrou com o secretário-geral da ONU Kofi Annan em sua busca por uma ética global como um caminho para a paz internacional no século XXI.
Dezenas de milhares de seus leitores que vivem além das fronteiras da Europa, na América, Austrália, Ásia e África, também o ouviram ou pelo menos leram um ou mais de seus livros. Ele foi o principal teólogo católico a falar na China sobre religião e ciência, o primeiro teólogo a discursar para um grupo de astrofísicos e, mais tarde, no Congresso Europeu de Radiologia sobre o tema de uma medicina mais humana.
As razões para a sua popularidade eram onipresentes: legibilidade, clareza, erudição, honestidade, destemor. Ele era inteligente, ocasionalmente profundo. Alguém menos dotado intelectualmente podia entender seus argumentos e ser atraído pelos seus textos e pelas suas palestras exatamente por esse motivo.
Ele disse e escreveu aquilo que achava que precisava ser transmitido naquela que ele considerava como a sua luta implacável pela liberdade intelectual e a sua busca apaixonada pela verdade.
Em seu livro mais popular – “Christ sein” (“Ser cristão”, Ed. Vozes, 1979) – que rapidamente vendeu mais de 200.000 cópias em alemão quando foi lançado em 1974, Küng disse que investigou questões teológicas que preocupam qualquer pessoa instruída.
Ele escreveu para aqueles “que creem, mas se sentem inseguros”, para aqueles que costumavam crer “mas não estão satisfeitos com a sua descrença” e para aqueles que estão fora da Igreja e não estão dispostos a abordar “as questões fundamentais da existência humana com meros sentimentos, preconceitos pessoais e explicações aparentemente plausíveis”.
Bíblia e jornal
Para um público tão amplo, Küng mantinha as Escrituras e o jornal diário à mão. A partir dos 10 anos de idade, quando os nazistas invadiram a Áustria, vizinha da Suíça, dando início à Segunda Guerra Mundial, o jovem Hans – o mais velho de sete irmãos – começou a ler o jornal diário. Era uma disciplina que ele manteve até a sua morte, apesar do declínio da visão. Manter-se informado sobre os assuntos religiosos e mundiais o tornava “um realista, e não um romântico”, disse ele a esta repórter em vários de nossos encontros.
Muitas vezes polêmico, o nome “Küng” trazia a sua própria marca de adjetivos na Igreja conservadora e nas publicações políticas conservadoras: ele era o dissidente Küng, a bête noire, o desobediente, o herege, o apóstata, o errante, o protestante. Em suma, “l’enfant terrible da Igreja Católica”, gritavam muitas manchetes.
Seu livro de 1971 “Infallible? An Inquiry” [Infalível? Uma investigação], causou alvoroço em todo o mundo católico, contestando a declaração de infalibilidade papal promulgada em 1870 no Concílio Vaticano I. Küng investigou a base teológica da declaração e descobriu que a reivindicação da autoridade papal suprema era um impasse para a unidade com as outras Igrejas cristãs.
O livro foi publicado apenas três anos depois que o Vaticano pedira a Küng que respondesse a acusações contra seu livro anterior, “Igreja Católica” (Ed. Objetiva, 2002). Autoridades católicas contestaram a compreensão do teólogo sobre a autoridade papal e solicitaram que ele comparecesse em Roma para responder às acusações.
Küng manteve a sua posição. Ele não se retrataria. Ele queria ver o arquivo que o Vaticano acumulou sobre ele. Ele exigiu uma lista por escrito das questões a respeito do seu livro, assim como os nomes daqueles que examinaram a obra. Ele pediu para falar em alemão durante qualquer reunião com as autoridades vaticanas e ainda solicitou que o Vaticano pagasse as suas despesas de viagem para Roma ou então realizasse as audiências na casa de Küng em Tübingen.
Além de abordar a infalibilidade, Küng também criticou a lei do celibato, favorecendo, ao invés disso, um clero e um diaconato casados, ambos abertos tanto a mulheres quanto a homens. Ele defendeu que o celibato compulsório era a principal razão para a escassez de padres e acusou a hierarquia de preferir negar aos fiéis uma celebração da Eucaristia perto de casa para manter o celibato obrigatório. A lei contradizia o Evangelho e a tradição católica antiga, e deveria ser abolida, escreveu ele.
Ele criticou a proibição das dispensas para padres que desejassem deixar o sacerdócio – introduzida pelo Papa João Paulo II após a sua eleição como pontífice em 1978 – por considerá-la uma violação dos direitos humanos.
Sua abordagem histórico-crítica à pesquisa o levou a concluir que as primeiras comunidades cristãs em Corinto e em outros lugares tinham membros leigos que presidiam os serviços eucarísticos na ausência de um padre.
Ele discordou da proibição da Igreja à contracepção artificial e as suas inibições em questões de sexualidade humana. Ele até teve a ousadia de criticar o primeiro ano do pontificado de João Paulo II. Em um artigo publicado em oito jornais da Europa, das Américas e da Austrália, Küng questionou se o novo papa estava aberto ao mundo, se era um líder espiritual, um verdadeiro pastor, um colega bispo colegial, um mediador ecumênico ou até mesmo um verdadeiro cristão.
Küng reconheceu que os católicos tradicionais considerariam que fazer tais perguntas ao papa popular era “mais imperdoável do que a blasfêmia”. Mas ele disse que suas críticas surgiram do “compromisso leal” com a Igreja e sentiu que “o papa tem o direito de receber uma resposta da sua própria Igreja em solidariedade crítica”.
Revogação da licença para lecionar
Os redatores de manchetes e jornalistas em geral tiveram um dia cheio em 18 de dezembro de 1979, quando o Vaticano puxou o tapete da carreira de professor de Küng, revogando sua missio canonica, ou licença para lecionar como teólogo católico na Universidade de Tübingen, onde ele estava desde 1960. Tal licença é exigida para lecionar como teólogo católico em uma instituição reconhecida pelo pontífice, como a escola de teologia católica de Tübingen.
A secular universidade alemã tem há muito tempo escolas separadas de teologia católica e protestante. A sua escola católica, na qual Küng atuou como professor de teologia dogmática de 1963 a 1979, é renomada pela sua interpretação moderna do Novo Testamento.
Em “Disputed Truth” [Verdade controversa], o segundo livro dos seus três volumes de memórias, Küng gastou 80 páginas revisando as acusações contra ele – as reuniões secretas de bispos alemães e autoridades vaticanas fora da Alemanha, a traição de sete de seus 11 colegas de Tübingen e quase um colapso físico e emocional causado pela exaustão dos seus esforços para responder às acusações do Vaticano, enquanto preservava seu posto em uma universidade estatal.
No fim, Küng manteve seu cargo de professor, não no corpo docente católico, mas no Instituto de Pesquisa Ecumênica, um órgão secular da universidade, que ele havia fundado e dirigido desde o início dos anos 1960. Ele também continuou sendo “um padre em boa situação”, o que irritou aqueles que buscavam a sua excomunhão. Apesar de sua franqueza, Roma reconheceu a sua dedicação de uma vida inteira à Igreja e permitiu que Küng pregasse e publicasse até que a doença e a deficiência o desaceleraram em 2013.
Küng e Ratzinger
Küng mostrou uma certa consternação em 1979, quando soube do envolvimento do cardeal Joseph Ratzinger na remoção de sua licença de ensino. Como decano da teologia em Tübingen no início dos anos 1960, Küng havia oferecido – e Ratzinger aceitou – uma cátedra em Tübingen. Mas, depois das revoltas estudantis na Alemanha em 1968, Ratzinger deixou a academia, voltando para a sua cidade natal, Munique, onde se tornou arcebispo e depois cardeal. Mais tarde, ele chefiou a Congregação para a Doutrina da Fé durante 25 anos, sob o comando de João Paulo II.
Para surpresa de muitos, Küng solicitou um encontro com Ratzinger logo depois que este foi eleito papa em abril de 2005. Os dois padres mantiveram o respeito um pelo outro e uma correspondência limitada por mais de 45 anos. Ratzinger, agora Papa Emérito Bento XVI, concordou rapidamente em se encontrar com Küng. Os dois conversaram por quatro horas e jantaram na residência de verão de Bento XVI em Castel Gandolfo.
Um comunicado emitido pelo Vaticano dois dias após o encontro no dia 24 de setembro de 2005 indicou que o encontro foi amigável e que Bento XVI elogiou Küng pelos seus esforços para construir um código de ética global que consagrasse os valores que eram mantidos em comum entre as religiões e reconhecido por líderes seculares também.
Os dois não abordaram quaisquer questões doutrinais. Küng também não pediu que sua licença de ensino fosse restaurada. Em vez disso, eles encontraram um consenso sobre questões relativas à ciência e à religião, fé e à razão, e a questões sociais relacionadas com a ética e a construção da paz.
Embora essa noite compartilhada por eles fosse apenas uma centelha de tempo em comparação com o quarto de século em que Küng estivera em um estado de relações tensas com o Vaticano, o teólogo viu isso como um sinal de abertura e até mesmo um prenúncio de esperança para aqueles que compartilhavam a sua visão crítica da Igreja em relação àquilo que ele frequentemente chamava de “procedimentos inquisitoriais” contra ele e outros dissidentes.
Durante anos, Küng pediu aos padres e bispos que mostrassem alguma coragem contra aquilo que ele chamava de sistema repressivo romano, que demandava obediência acima da razão e conformidade acima da liberdade de consciência.
O que foi, de fato, que deu a esse pensador renegado uma confiança tão duradoura em meio a décadas de luta?
Uma indicação é fornecida em “Ser cristão”, que teve muitas edições e foi traduzido para dezenas de línguas. Küng o chamava de “uma pequena Summa”, na qual trabalhou por sete anos. Suas 720 páginas investigam se a fé cristã podia continuar enfrentando os desafios do mundo moderno e se a mensagem cristã era adequada para os homens e as mulheres de hoje. Küng disse que escreveu o livro porque não sabia o que era especificamente cristão e precisava descobrir.
No início da obra, Küng citou o físico e filósofo alemão Carl Friedrich von Weizsäcker, que disse: “Há uma coisa que eu gostaria de dizer aos teólogos: algo que eles sabem e que outros deveriam saber. Eles detêm a única verdade que vai mais fundo do que a verdade da ciência, sobre a qual repousa a era atômica. Eles têm um conhecimento da natureza do ser humano que está mais profundamente enraizado do que a racionalidade dos tempos modernos. Inevitavelmente sempre chega o momento em que o nosso planejamento falha e perguntamos e perguntaremos acerca da verdade”.
A busca da verdade foi a tarefa escolhida para a qual Küng ofereceu a sua investigação insaciável e o seu intelecto inextinguível.
“Eu tenho uma curiosidade intelectual infinita”, disse ele a esta jornalista durante o primeiro de muitos encontros ao longo de quase 40 anos. “Eu nunca estou satisfeito. Devo sempre saber mais sobre tudo, para detectar exatamente quais são os problemas. Eu não tenho muitos preconceitos antes de começar, pois não temo o resultado.”
“A cristologia apresenta muitos problemas, e por isso as pessoas dizem: ‘É perigoso tocar na questão do nascimento virginal, da pré-existência de Cristo, da Trindade’. Mas eu acho que a verdade não pode fazer mal – nem a mim pessoalmente nem à Igreja”, disse ele ao NCR.
A chance de refletir sobre Deus dava a Küng um enorme prazer e satisfação, relatou ele em “My Struggle for Freedom” [Minha luta pela liberdade], o primeiro volume de suas memórias.
“Eu sei nadar”
Quando jovem, Küng se lembra de ter voltado para casa “radiante” quando se deu conta de que “eu posso nadar (…) a água me sustenta”. Para ele, essa experiência ilustrava “a aventura da fé, que não pode ser provada teoricamente por um curso em ‘terra firme’, mas simplesmente deve ser tentada: uma aventura bastante racional, embora a racionalidade só surja no ato”, ele escreveu em seu primeiro livro de memórias.
Amante da natureza ao longo da vida, Küng passou muito tempo nos seus arredores – nadando quase todos os dias de sua vida e esquiando até os 80 anos durante as breves férias na Suíça. Esquiar o ajudava, pelo menos por algumas horas, a “arejar o meu cérebro e a esquecer todos os estudos, muitas vezes desafiando o frio, o vento, a neve e a tempestade”, afirmou ele em suas memórias.
Quase todos os seus livros foram compostos à mão enquanto Küng se sentava em seu espaçoso terraço em Tübingen, perto das margens do Rio Neckar, ou em sua casa junto ao Lago Lucerna, em Sursee, sua cidade natal na Suíça. O sol e o ar fresco permeiam seus textos tanto quanto a pesquisa, a história, os estudos exaustivos e as análises e soluções para problemas teológicos e filosóficos específicos.
Os elementos inclementes aos quais Küng aludia enquanto estava nas encostas dos Alpes tornaram-se o material de crítica da Congregação para a Doutrina da Fé. De fato, o Santo Ofício – como ela era conhecida nos tempos anteriores ao Vaticano II – abriu um arquivo secreto (o infame 399/57i) sobre Küng logo após ele ter escrito o seu primeiro livro, fruto da sua tese de doutorado, “Justification” [Justificação], em 1957.
Nele, Küng previu que era possível um acordo de princípio entre a teologia católica conforme estabelecida no Concílio de Trento do século XVI e a teologia da Reforma do século XX como evidenciada na “Dogmática Eclesiástica” (Fonte Editorial, 2019) do teólogo luterano Karl Barth.
Embora tivesse apenas 28 anos de idade quando publicou essa conclusão, essa seria a primeira de muitas investigações ecumênicas e inter-religiosas que solidificaram as suas próprias raízes em uma fé viva em Cristo, que, segundo ele, perdurou durante toda a sua carreira e o ajudou a estar sempre aberto a outras fés. De fato, Küng sustentou por muito tempo que a firmeza na própria fé e a capacidade de diálogo com os de outra crença são virtudes complementares.
Quatro décadas depois de escrever “Justificação”, Küng publicou livros sobre o cristianismo, o judaísmo, o islamismo e as religiões chinesas. No decorrer de sua pesquisa, ele se encontrou frequentemente com líderes religiosos na Ásia, África e Oriente Médio. Nesses encontros, ele disse que inicialmente tinha mais questões de fé (dogmática) do que de ética (moralidade). Mas, com o passar do tempo, ele percebeu que, apesar das diferenças dogmáticas entre as religiões, já havia características comuns decisivas na ética que poderiam ser o fundamento para uma ética global.
Ética mundial
Assim, no início dos anos 1990, Küng estava bem preparado para assumir a tarefa de preparar uma “Declaração para uma Ética Global” para o Parlamento das Religiões Mundiais que se reuniu em Chicago em 1993. A parte mais referenciada da declaração era a de que não há paz entre as nações sem paz entre as religiões.
Não surpreende que o menino que descobriu que sabia nadar se tornou o homem que reconheceu os três grandes sistemas fluviais das grandes religiões da China, da Índia e do Oriente Próximo semita, os quais ele conheceu ao preparar uma viagem de muitas semanas para a África subsaariana, em 1986, e enquanto trabalhava em uma série de televisão alemã na Austrália em 1998.
Nada disso teria acontecido se a sua licença de ensino não tivesse sido retirada em 1979, admitiu ele mais tarde.
Isso também não teria ocorrido se ele não tivesse sido ordenado padre católico. Esse evento ocorreu em 1954 em Roma. Küng celebrou sua primeira missa na Basílica de São Pedro e pregou para a Guarda Suíça, alguns dos quais ele conhecia bem depois de sete anos estudando filosofia e teologia em latim na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
Ele completou mais três anos de estudo em francês para o seu doutorado na Sorbonne e no Institut Catholique de Paris, onde escreveu a sua tese sobre a “Justificação”.
Küng voltou para a Suíça, atuando dois anos como padre assistente em Lucerna. Barth o convidou para uma conferência em Basel sobre o tema: “A Igreja sempre precisa de reforma”. Alguns na plateia acharam seu entusiasmo pela renovação excessivamente otimista. No entanto, no dia 25 de janeiro de 1959 – a semana seguinte à sua palestra – o Papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II. E Küng, ao preparar a sua conferência sobre a reforma do dia 19 de janeiro, já havia reunido extensas notas para um livro justamente sobre tal empreendimento.
Esse livro, “The Council, Reform and Reunion” [O Concílio, Reforma e Reunião], tornou-se programático para uma série de documentos do Vaticano II, incluindo aqueles sobre o estudo das Escrituras, o culto, a liturgia em língua vernácula, o diálogo com outras culturas e crenças, a reforma do papado, a liberdade religiosa e a abolição do Índice de Livros Proibidos.
O observador vaticano e ex-correspondente do NCR em Roma Peter Hebblethwaite aventurou-se a afirmar que nenhum teólogo jamais exerceria tanta influência na pauta de um concílio quanto Küng. O livro “O Concílio, Reforma e Reunião” não foi apenas um best-seller na Alemanha, na Holanda, na França e no mundo de língua inglesa, mas também recebeu a aprovação do cardeal Franz König, de Viena, que ditou seu imprimatur a Küng a partir do seu leito de hospital após sofrer graves ferimentos em um acidente de carro.
Conselheiro do Concílio
Pouco depois do lançamento do livro, o bispo de Küng, Carl Joseph Leiprecht, de Rottenburg, Alemanha, o convidou para ser seu perito pessoal, ou especialista, no Concílio vindouro. Küng não estava muito entusiasmado com um retorno a Roma. Mas vários colegas o persuadiram de que o Concílio prometia ser o evento eclesial do século e de que Küng não ousaria perdê-lo.
“Como eu poderia suspeitar que esse ‘sim’ determinaria o meu destino por mais de uma década?”, anotou ele em suas memórias.
Aos 34 anos de idade, Küng era o perito mais jovem do Concílio, logo acompanhado pelos dominicanos Edward Schillebeeckx, da Bélgica, e Yves Congar, da França; pelos padres alemães Ratzinger e Karl Rahner, além dos clérigos estadunidenses John Courtney Murray, George Higgins, John Quinn, Gustave Weigel e Vincent Yzermans.
Não eram apenas os bispos progressistas que procuravam a perspicácia e as habilidades de escrita de Küng, mas a sua fluência em francês, italiano, holandês, alemão, inglês e latim também o tornaram uma referência para lidar com a imprensa.
Ele era rápido em publicar seus pontos de vista sobre os textos do Concílio e as manobras dos bastidores em jornais importantes e era um frequente convidado da televisão, lembrado tanto pela sua boa aparência e pelos seus ternos, quanto pela sua expertise.
Durante a terceira sessão do Concílio em outubro de 1964 – quando o Papa Paulo VI já havia substituído o falecido João XXIII – parecia que o novo pontífice estava prestes a adiar a votação de declarações importantes sobre a liberdade religiosa e os judeus, devolvendo-as primeiro para uma verificação posterior por parte da Cúria altamente conservadora.
Trabalhando nos bastidores, mas em nome de poderosos homens da Igreja progressistas, Küng ajudou a convocar reuniões com 13 cardeais que rapidamente redigiram uma carta de protesto ao papa. Antes que a tinta secasse, Küng rompeu o sigilo imposto aos periti e revelou tudo ao público. Ele telefonou para os repórteres dos principais jornais europeus e os informou sobre as “escandalosas maquinações” contra as duas declarações.
Quando os bispos voltaram para a sessão da manhã de segunda-feira, eles foram recebidos por uma tempestade na imprensa internacional. O alvoroço, mais a intervenção pessoal dos cardeais junto ao papa, fez com que ambos os esquemas permanecessem na pauta do Concílio. O esboço sobre os judeus foi aprovado por 1.770 votos contra 185 no dia 20 de novembro de 1964.
Um ano depois, os bispos votaram a favor da Declaração sobre a Liberdade Religiosa por 2.308 votos a 70.
No dia 2 de dezembro de 1965, Paulo VI convidou Küng para uma audiência privada. Ela durou 45 minutos – mais do que o dobro do tempo previsto. Küng contou que o pontífice lhe disse que, depois de examinar tudo o que Küng havia escrito, o papa teria preferido que ele não tivesse escrito “nada”. Isso depois que o pontífice o elogiou pelos seus “grandes dons” e sugeriu que Küng usasse seus talentos a serviço da Igreja.
Conformar-se
Confuso, mas ainda sorridente, o teólogo assegurou ao chefe supremo: “Já estou a serviço da Igreja”.
Para isso, o papa deu a entender que Küng deveria se “conformar”, se realmente pretendia servir à Igreja. Antes de sair da biblioteca papal, Küng conseguiu direcionar a conversa para a controversa questão da contracepção, oferecendo ao papa um memorando com uma dezena de pontos a serem entregues à sua comissão papal que estudava a questão do controle de natalidade.
Mais tarde, ele lembrou que a audiência com Paulo VI o confrontou vividamente com a pergunta: para quem ele estava fazendo teologia? Ainda no fim de 1965, Küng entendeu: “A minha teologia obviamente não é para o papa (e seus seguidores), que claramente não quer a minha teologia como ela é”.
Naquele mesmo dia, Küng resolveu que faria teologia “para os meus semelhantes (…) para aquelas pessoas que precisam da minha teologia”.
Ao longo dos anos que se seguiram ao Concílio, Küng frequentemente assinalava as centenas de cartas que recebia e os comentários de multidões de apoiadores que compareciam às suas conferências na Alemanha e no exterior, testemunhando que eles permaneceram na Igreja por causa dos seus pontos de vista, da sua teologia e dos seus escritos.
Suas conferências na primavera de 1963 nos Estados Unidos, após a primeira sessão do Vaticano II, atraíram mais de 25.000 pessoas para a Universidade de Notre Dame, o Boston College e a Georgetown University, e para outros locais na Califórnia, Texas, Minnesota, Illinois, Pensilvânia e Washington.
Na Universidade de St. Louis, ele recebeu o primeiro de muitos doutorados honoris causa, mas a instituição jesuíta foi punida por não pedir primeiro a permissão de Roma para homenagear Küng.
No dia 30 de abril de 1963, o presidente John Kennedy acolheu Küng na Casa Branca, apresentando-o ao vice-presidente Lyndon Johnson e aos líderes do Congresso com as palavras: “E isto é o que eu chamo de um novo homem de fronteira da Igreja Católica”.
Entre dois “Joões”
Em novembro de 1983, no 20º aniversário do assassinato de Kennedy, Küng compartilhou com esta repórter como ele se sentiu privilegiado por ter vivido durante “o reinado dos dois Joões” [John Kennedy e João XXIII].
Observando que a morte de João XXIII ocorrera apenas cinco meses antes da de Kennedy, Küng lembrou que o tempo de cada um deles no cargo foi encurtado. No entanto, cada um teve uma breve janela de oportunidades que foi aproveitada – o papa ao convocar o Concílio, o presidente ao trabalhar no controle de armas com os soviéticos, disse Küng, enquanto relaxava em seu quarto de hotel em Ann Arbor, Michigan, onde ele estava para ministrar aulas na Universidade de Michigan.
Em visitas à sua casa em Tübingen em 1977 e 1985, e durante encontros subsequentes em Berkeley, Califórnia; Nova York; Ann Arbor; Detroit; Chicago; Pittsburgh; e Mahwah, Nova Jersey, esta repórter manteve amplas conversas com Küng sobre a sua fé, a sua família, o papel de Deus, a oração e a liturgia em sua vida.
Aqueles que tiveram o privilégio de ver Küng celebrando a missa – como esta repórter, em Greenwich Village, onde ele pregou sobre a Filiação de Deus no fim dos anos 1980 – viram um homem de profunda fé que dava tanta atenção às palavras e aos símbolos da liturgia quanto para compor seus livros e palestras.
Durante anos, ele presidiu a missa dominical das 11 horas na St. Johannes Kirche (Igreja de São João) no centro do campus de Tübingen. Küng havia proposto a missa para os professores.
“Eu tenho uma aversão real à má liturgia”, dizia ele. “Eu acho que é essencial que as pessoas sintam imediatamente que o homem que preside acredita no que diz, está comprometido com esta causa, está se dirigindo a elas, e não apenas encenando orações. As belas palavras litúrgicas e o maior louvor a Cristo – a menos que respaldados pelas Escrituras e compreendidos pelo povo – simplesmente não são úteis”, dizia ele em Tübingen.
Anos depois, em um seminário final sobre a “Vida Eterna”, ministrado a 20 estudantes e a 20 professores auditores na Universidade de Michigan, Küng se concentrou na Última Ceia.
“Vemos um homem enfrentando a sua morte. É muito simples. É uma cerimônia no contexto judaico tradicional. Ele pega o pão, dá a sua bênção, parte-o e distribui-o”, disse Küng, estendendo seus braços para as pessoas próximas. “Ele sabe que é a sua última vez com elas. Ele diz: ‘Tomem. É o meu corpo. Lembrem-se de mim. Desta noite’”.
Os estudantes trocaram olhares. Pessoa para pessoa. Católicos e hindus. Olhos úmidos e silêncio. Uma sensação de comunhão encheu a sala do seminário.
“Há profundezas de piedade nesse homem que ainda não começamos a sondar”, disse o estudioso bíblico David Noel Freedman ao NCR após o seminário. Freedman creditou a forte fé de Küng à sua formação católica suíça muito tradicional, à sua mãe forte e ao seu pai, que dirigia uma loja de sapatos no meio de Sursee – “e às cinco irmãs dele”.
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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/608130-morreu-hans-kueng-celebre-e-polemico-teologo-suico
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Faleceu o teólogo suíço Hans Küng
Vatican News
Na terça-feira (06) faleceu o teólogo suíço Hans Küng aos 93 anos em sua casa em Tübingen, na Alemanha. Nascido em Sursee em 19 de março de 1928, foi ordenado sacerdote em 1954. Três anos depois, em sua tese de doutorado, ele defendeu a convergência entre católicos e reformados sobre a doutrina da Justificação: na realidade, ele argumentou, afirma-se a mesma coisa em línguas diferentes. Em 1960, tornou-se professor titular da Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Tübingen e mais tarde participou do Concílio Vaticano II como especialista, onde teve a oportunidade de se confrontar com Joseph Ratzinger, o futuro Papa Bento XVI.
Além de dedicar-se ao estudo da história das religiões, em particular as religiões Abraâmicas, era conhecido por suas posições nos campos teológico e moral, com frequentes críticas em relação a certas questões da doutrina católica. Em particular, ele se pronunciou contra o dogma da infalibilidade papal, conforme entendido pelo Concílio Vaticano I. Em 1979, a Congregação para a Doutrina da Fé revogou sua faculdade de ensinar como teólogo católico, mas ele continuou a trabalhar como professor emérito de teologia ecumênica na Universidade de Tübingen.
O encontro entre Bento XVI e Küng
Küng criticou várias vezes tanto São João Paulo II quanto Bento XVI. No início do pontificado do Papa Ratzinger, foi realizado um encontro entre os dois em Castel Gandolfo, no dia 24 de setembro de 2005. Ao dar a notícia, a Sala de Imprensa do Vaticano sublinhou que a reunião aconteceu “em um clima amistoso”. Ambas as partes concordaram que não fazia sentido, no contexto do encontro, entrar em uma discussão sobre questões doutrinárias persistentes entre Hans Küng e o Magistério da Igreja Católica”. A conversa centrou-se em dois temas que foram de “particular interesse para o trabalho de Hans Küng: a questão de Weltethos (ética mundial) e o diálogo da razão das ciências naturais com a razão da fé cristã”.
O teólogo – prosseguia o comunicado – “destacou que seu projeto de Weltethos não é de modo algum uma construção intelectual abstrata; ao contrário, ele destaca os valores morais sobre os quais convergem as grandes religiões do mundo, apesar de todas as diferenças, e que podem ser percebidos como critérios válidos – dada a razoabilidade convincente delas – pela razão secular”.
Por sua vez, Bento XVI havia apreciado “o esforço do Professor Küng em contribuir para um renovado reconhecimento dos valores morais essenciais da humanidade através do diálogo das religiões e no encontro com a razão secular”, salientando “que o compromisso com uma renovada consciência dos valores que sustentam a vida humana é também um objetivo importante de seu Pontificado”.
Ao mesmo tempo, o Papa reafirmou sua concordância com a tentativa de Küng de “reavivar o diálogo entre a fé e as ciências naturais e afirmar, em relação ao pensamento científico, a razoabilidade e a necessidade da Gottesfrage (a questão sobre Deus)”. Küng – concluiu o comunicado – expressou “sua aprovação aos esforços do Papa em favor do diálogo das religiões e também do encontro com os diferentes grupos sociais do mundo moderno”.
Apesar deste encontro, as posições permaneceram distantes em muitas questões como o celibato sacerdotal, o sacerdócio feminino, a contracepção, a eutanásia. Em suas pesquisas, Küng também analisou a relação entre fé e ciência, contestando as afirmações de algumas teorias científicas de chegarem a certezas absolutas. Nos últimos anos, ele diminuiu sua atividade pública, retirando-se em vida privada por razões de saúde.
fonte: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2021-04/morte-teologo-suico-kung-bento-xvi.html
Ratzinger-Küng, a polaridade que marcou o pós-Concílio
Com a morte de Hans Küng, encerra-se uma parte do pós-Concílio católico, aquela que encontrou na polaridade especular Ratzinger-Küng a sua representação midiática a ser explorada em um sentido ou outro. Ambos filhos de uma mesma visão da Igreja e do catolicismo no contexto cultural mais amplo, separados apenas pela direção tomada para implementá-la na prática.
O comentário é do teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 06-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Dois breves comunicados de imprensa da Universidade de Tübingen e da Stiftung Weltethos anunciaram a morte de Hans Küng, ocorrida nessa terça-feira, 6 de abril, aos 93 anos de idade.
Uma das figuras que caracterizaram o pós-Concílio da Igreja Católica em nível global, graças também ao conflito que se desencadeou com o Vaticano após a publicação do seu livro sobre o primado petrino, “Infalível?”.
Küng foi talvez o primeiro dos teólogos clássicos do século XX, com formação pré-conciliar, que usou os meios de comunicação não eclesiais como um instrumento de pressão sobre as questões vaticanas – criando um cenário de apoio público muito amplo para as suas posições na diatribe romana que caracterizou toda a fase central da sua vivência teológica.
Após a revogação da permissão de docência por parte da Santa Sé, Küng criou a fundação Weltethos, ancorando-a à Universidade de Tübingen, que apoiou com convicção esse empreendimento – que mais tarde se revelou premonitório sob muitos pontos de vista e capaz de uma visão de futuro para uma aliança das religiões para proteger a nossa humanidade comum.
A sua escolha de usar a comunicação de massa como meio de debate com o Vaticano abriu caminho para uma modificação profunda da atividade de controle e censura da Congregação para a Doutrina da Fé. Deslocando, não sem detrimento para a coisa teológica, o centro nervoso do argumento em questão para a sua comunicação, primeiro, e depois até mesmo para a sua possível recepção por parte do público mais amplo na sua forma midiatizada.
Com a sua morte, encerra-se uma parte do pós-Concílio católico, aquela que encontrou na polaridade especular Ratzinger-Küng a sua representação midiática a ser explorada em um sentido ou outro. Ambos filhos de uma mesma visão da Igreja e do catolicismo no contexto cultural mais amplo, separados apenas pela direção tomada para implementá-la na prática.
Embora marcada por limites, não sem profundas repercussões até o momento presente, aquela foi uma época alta do catolicismo e da teologia – hoje, sobre esses ombros, não conseguimos mais subir nem com a escada. Talvez também porque o tempo presente nos peça outra coisa, outras atenções e sensibilidades – serão precisamente estes os índices sobre os quais seremos medidos, nós que conhecemos aquela época a partir dos relatos de parte.
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Hans Küng, divulgador da paixão pelo Evangelho. Artigo de Fulvio Ferrario
Para mim, Hans Küng sempre pareceu um superstar da cultura, um homem muito competente e um fiel convicto, que transmitia com paixão pelo evangelho a tarefa de pensar a fé. É um pouco paradoxal, mas foi precisamente ao lê-lo, ele que queria se dizer católico a todo o custo, que me tornei protestante.
A opinião é de Fulvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Riforma, 07-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
“O que importa, em última análise, é que o ser humano – sadio ou doente, hábil ou inábil ao trabalho, eficiente ou ineficiente, acompanhado ou abandonado pelo sucesso, culpado ou inocente – mantenha, com imperturbável firmeza, durante toda a sua existência e não apenas no fim, aquela confiança que, com todo o Novo Testamento, nós chamamos de fé. E se o seu Te Deum é para o único Deus verdadeiro, não para uma das muitas falsas divindades, então você pode referir a si mesmo, em qualquer situação em que se encontre, as palavras conclusivas do hino, às quais atribuirá o significado de uma promessa: ‘In te Domine speravi, non confundar in aeternum’ [Em Vós espero, meu Deus, não serei confundido eternamente].”
Assim, em uma das suas obras mais importantes, “Ser cristão” (Ed. Vozes, 1979), Hans Küng resume a mensagem da justificação somente pela graça: como pastor evangélico, citei mil vezes essa formulação de um teólogo católico para indicar o evangelho redescoberto pela Reforma, pois não é fácil encontrar outra que seja igualmente eficaz.
Na realidade, Küng, falecido no dia 6 de abril aos 93 anos de idade, não era, rigorosamente falando, um “teólogo católico”.
Ele era teólogo, acadêmico de grande prestígio e divulgador brilhantíssimo, autor de dezenas de livros de alto nível; e era também apaixonadamente católico, ligado à sua Igreja, que criticava com ênfase, mas que amava visceralmente.
De acordo com a Sé romana, no entanto, ele não podia ensinar teologia em nome da Igreja Católica (nesse sentido, portanto, ele não era um “teólogo católico”), particularmente porque havia rejeitado explícita e obstinadamente o dogma da infalibilidade papal.
Em 1979, pouco antes do Natal, havia sido revogada a sua autorização eclesiástica para o ensino. A Universidade de Tübingen reagiu separando o Instituto de Pesquisa Ecumênica da Faculdade de Teologia, confiando-o a Küng, para que ele continuasse ensinando e atraindo estudantes para a cidade de Württenberg.
E pensar que esse mesmo suíço catolicíssimo, natural de Lucerna, formou-se na Gregoriana, residindo no Germanicum, o severo colégio dirigido pelos jesuítas, não muito longe da Praça Barberini. Porém, ele obteve o doutorado em Paris, com uma tese justamente sobre a justificação, na qual defendeu a compatibilidade da doutrina do Concílio de Trento com a evangélica, em particular na formulação de Karl Barth.
Em 1957, esse livro pareceu um pouco estranho (Barth afirmou que Küng o entendeu muito bem, mas não entendeu Trento; Joseph Ratzinger escreveu que o autor havia restituído Trento retamente, mas não havia compreendido Barth), mas que, 42 anos depois, seria substancialmente confirmado pela Declaração Conjunta Católico-Lutero.
Era o início de uma fulgurante carreira, que o levou à cátedra com pouco mais de 30 anos de idade, na prestigiada Faculdade Católica de Tübingen. Nos anos do Concílio, Küng esteve entre os porta-vozes da renovação, mas logo se mostrou desiludido; o seu livro sobre a “Igreja Católica” (Ed. Objetiva, 2002), de 1967, é uma resposta crítica à Lumen gentium.
Mas a verdadeira bomba estourou, como já dissemos, com o livro sobre a infalibilidade, de 1970, um panfleto muito eficaz. Ao contrário da maioria dos seus colegas, Küng chama pão de pão e vinho de vinho; neste caso, que o dogma da infalibilidade não tem bases bíblicas e tradicionais.
Desde então, tornou-se o alvo de uma perseguição por parte do magistério romano. Muitos teólogos, não só católicos, esnobavam de Küng como “divulgador”. E assim ele teve que “se contentar” com um imenso sucesso, acompanhado por ótimos ganhos e uma vasta popularidade, incluindo uma capa da revista Time.
É verdade, porém, que, a partir dos anos 1970, Küng se dirigiu amplamente ao público em geral: o já citado “Ser cristão” marca para muitos o primeiro contato com a exegese crítica. Uma década depois, chega a teologia das religiões.
Ao mesmo tempo, Küng continuava a sua batalha pela renovação da Igreja Católica. Ele era muito amigo dos seus colegas evangélicos de Tübingen, Jüngel e Moltmann, mas brigava com eles quando tentavam lhe explicar que dificilmente o papa deixaria de ser papista; na Itália, foi pouco apreciado por Vittorio Subilia, que o considerava um moyenneur, como diria Calvino, ou seja, um homem de compromissos.
Para mim, ele sempre pareceu um superstar da cultura, um homem muito competente e um fiel convicto, que transmitia com paixão pelo evangelho a tarefa de pensar a fé. É um pouco paradoxal, mas foi precisamente ao lê-lo, ele que queria se dizer católico a todo o custo, que me tornei protestante e, também por isso, sempre lhe fui grato.
Küng não carecia de autoconsciência: ele escreveu, por exemplo, uma autobiografia em três volumes (um em italiano), em um total de quase 2.000 páginas e se lamentava frequentemente de não ter recebido reconhecimentos eclesiásticos.
Sobre ele, circula a seguinte anedota. Com a morte de João Paulo II, algum cardeal “progressista” imaginou eleger ao sólio pontifício “aquele famoso professor de Tübingen. Só para mostrar que a Igreja Católica não é tão conservadora”. Alguém telefonou para verificar a sua disponibilidade, mas obteve uma resposta negativa: “Ele quer permanecer infalível!”.
Porém, vale a pena reler esse simpático narcisista: não é obrigatório pensar como ele. Basta deixar-se estimular por ele.
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Hans Küng, teólogo rebelde. Artigo de Vito Mancuso
“O adjetivo grego katholikós significa de fato “universal” e Küng sempre almejou isso: unir ao máximo os seres humanos. Ele não quis ser católico-romano, mas mais genuinamente católico-universal, isto é, homem entre os homens, a serviço do bem do mundo, no mesmo caminho percorrido por católicos como Ernesto Balducci, Raimon Panikkar, Leonardo Boff, Carlo Maria Martini“, escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Repubblica, 07-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
A Igreja logo percebeu os dons extraordinários de Hans Küng, que morreu em Tübingen aos 93 anos: depois de seus estudos em Roma e Paris, o nomeou com a idade de 32 anos professor titular da Faculdade de Teologia Católica de Tübingen, o mais importante centro de teologia alemã e, portanto, do mundo naquela época.
Era 1960 e dois anos depois se iniciava o Vaticano II, onde Küng foi chamado como consultor teológico, o mais jovem participante da assembleia conciliar. O que então levou esse teólogo e sacerdote que teve diante de si oportunidades de carreira não menores que as de Joseph Ratzinger (um ano mais velho, mas chamado a Tübingen para lecionar pelo próprio Küng), a criticar a Igreja cada vez mais, a ponto de induzir João Paulo II em 1979 a revogar seu título de teólogo católico?
A resposta parece paradoxal: a vontade de ser verdadeiramente católico. O adjetivo grego katholikós significa de fato “universal” e Küng sempre almejou isso: unir ao máximo os seres humanos. Ele não quis ser católico-romano, mas mais genuinamente católico-universal, isto é, homem entre os homens, a serviço do bem do mundo, no mesmo caminho percorrido por católicos como Ernesto Balducci, Raimon Panikkar, Leonardo Boff, Carlo Maria Martini. Atuando em países com forte presença protestante, como sua terra natal Suíça e Alemanha, Küng quis acima tudo para contribuir para a unidade entre católicos e protestantes e nesta perspectiva ele elaborou a tese de doutorado sobre a doutrina da justificação em Karl Barth, mostrando sua coincidência com a mais genuína teologia católica e recebendo uma leitura entusiástica do próprio Barth e a já prestigiosa nomeação católica já mencionada.
Depois deu origem a uma disciplina teológica especial, a teologia ecumênica, que ensinou por mais de 20 anos, fundando o Instituto de Pesquisa Ecumênica em Tübingen. Seu desejo pelo diálogo o levou a enfrentar com rigor o pensamento leigo como negação de Deus: é de 1978 um de seus mais belos livros, Deus existe? Resposta ao problema de Deus na era moderna, onde em mil páginas ele discute as objeções dos vários ateísmos. Ele abordou o nó da fé-ciência com O início de todas as coisas, de 2005, ainda hoje uma das melhores contribuições a esse respeito.
Foi sempre o chamado à universalidade que o levou ao estudo sistemático das grandes religiões: publicou Cristianismo e religiões universais em 1984, Cristianismo e religiosidade chinesa em 1988, Judaísmo em 1991, Islã em 2004, ensaios de peso e de proveitosa leitura que o levaram para as universidades de todo o mundo. O Projeto por uma ética mundial data de 1990, do qual nasceu alguns anos depois a Stiftung Weltethos, “Fundação para a ética mundial”, uma instituição educacional que hoje opera em vários países (mas não na Itália) com o objetivo de desenvolver a cooperação entre as religiões através do reconhecimento de valores comuns e de um conjunto de regras universalmente compartilhadas Küng também tratou de ética e economia, contribuindo para preanunciar aquela terceira via entre liberalismo e comunismo que procura aliar rentabilidade e justiça, eficiência e solidariedade.
Mas o que o Magistério Católico considerou problemático em todo este imenso trabalho? A resposta é simples: a liberdade. A liberdade com que Küng procedia (o primeiro volume de sua autobiografia intitula-se Minha batalha pela liberdade) foi considerada uma perigosa ameaça para a estabilidade da instituição. A questão tornou-se crítica com a publicação do livro Infalível? Uma pergunta, ensaio de 1970 com o qual Küng desafiava o dogma da infalibilidade pontifícia. Outros motivos de dissenso foram se acrescentando, entre os quais a função da hierarquia eclesiástica, os critérios para as nomeações episcopais, o papel da mulher, a sexualidade, a eutanásia, o celibato sacerdotal, a liberdade da pesquisa teológica. E foi assim que João Paulo II o tirou do time. Küng, no entanto, não deixou de se sentir plenamente católico e nenhum outro tema como a fé cristã recebeu a mesma atenção dele. Mas a questão é que ele nunca fez o cristianismo coincidir com a pertença eclesial, e em 2011 ele radicalmente começou a se perguntar: “Ist die Kirke noch zu retten?“, “A Igreja ainda pode ser salva?”, infelizmente traduzido para o italiano com o fraco exortativo Vamos salvar a Igreja. Hoje, um dos maiores problemas da Igreja é a desconexão entre a fé pessoal e a pertença eclesial, entre espiritualidade e dogmática. Graças à inteligência, ao trabalho e à preparação linguística que lhe permitia falar várias línguas com facilidade, incluindo um italiano quase perfeito, Küng foi em minha opinião o teólogo católico mais influente de nosso tempo. Sua obra pode ser descrita como dotada das seguintes características:
1) grande capacidade teórica: além de teólogo, foi também filósofo, como Agostinho, Tomás de Aquino, Cusano, Florenskij, Tillich, Balthasar, Panikkar;
2) grande capacidade sistemática: em suas obras principais revive o gênero das Summae medievais com aquela organização da matéria de uma forma didaticamente clara e hierarquicamente configurada, particularmente preciosa hoje quando abundam as análises, mas são escassas as visões gerais;
3) grande capacidade expositiva: Küng foi um ensaísta de sucesso em nível mundial, seu estilo, nunca hermético, mas sempre atento ao leitor, correspondia perfeitamente a suas inatas gentileza e amabilidade;
4) grande honestidade intelectual: um dia Barth lhe escreveu “gosto de considerá-lo em toda a sua forma de agir um israelita in quo dolus non est“, uma clara referência às palavras de Jesus que definia Natanael “um israelita em quem não havia falsidade “. Isso é o que fez de Küng não só o eminente teólogo mencionado acima, mas também um dos mais ouvidos intelectuais do mundo: prova disso são os 16 títulos honorários e os inúmeros prêmios em todos os continentes, dos quais na Itália a cidadania honorária de Siracusa em 2002, o título Honoris causa da Universidade de Gênova em 2004, o Prêmio Nonino em 2012.
Com sua morte, está chegando ao fim o período extraordinário da teologia do século XX, que produziu personalidades únicas: entre os protestantes Barth, Bultmann, Tillich, Bonhoeffer, Moltmann, Pannenberg; entre os católicos Teilhard de Chardin, Rahner, von Balthasar, Congar, de Lubac, Panikkar, Boff. Entre eles, teve aqueles que interpretaram a própria investigação em função da instituição eclesial e outros que olharam mais para a frente, para o futuro. Entre estes, o suíço Hans Küng ocupará sempre um lugar de honra, um homem justo e alegre como a música de Mozart tão amada por ele.
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- As memórias de Hans Küng. Artigo de Rosino Gibellini
fonte: http://www.ihu.unisinos.br/608182-hans-kueng-teologo-rebelde-artigo-de-vito-mancuso
Hans Küng. “Estava em paz com a Igreja, Francisco o abençoou”. Entrevista com Walter Kasper
“No verão passado ele já estava muito fraco, temia-se que estivesse morrendo. Assim chamei o Papa e imediatamente Francisco, por meu intermédio, enviou-lhe a sua bênção. Hans ficou muito feliz, era importante para ele”. O cardeal teólogo Walter Kasper, de 88 anos, conhecia Küng a vida toda, “desde que ele ensinava em Tübingen no final da década de 1950″, ele próprio foi seu assistente. “Tínhamos posições diferentes, mas sempre mantivemos contato”.
A entrevista com Walter Kasper é de Gian Guido Vecchi, publicada por Corriere della Sera, 07-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Por que era importante, Eminência?
Porque Küng era um crítico duro, às vezes até injusto, mas no fundo de seu coração sempre foi um homem da Igreja e na Igreja. Ele nunca pensou em deixá-la, sua intenção era fazer o melhor pela Igreja, estando dentro dela. Ele sempre se sentiu cristão e católico. Por isso sentiu-se grato pelas palavras do Papa.
O que ele disse?
Recordo que o Papa me disse para lhe transmitir as suas saudações e bênçãos ‘na comunidade cristã’. E era como se Küng se sentisse em paz com a Igreja e com Francisco, uma espécie de reconciliação. Bento XVI também sabia de sua condição e orou por ele. Alguns diziam: deve ser reabilitado. Mas não faz sentido, quando você está morrendo não se fazem processos, outro juízo nos espera.
Qual foi o ponto de atrito?
Da Humanae Vitae ao sacerdócio feminino, eram diferentes. Mas a crítica central era contra o dogma da infalibilidade papal. A maneira como o fez não agradou a Roma, eu também não estava de acordo.
O que resta de Küng?
Ele tinha a capacidade de falar uma linguagem que todos podiam entender, de explicar a religião aos outros. Assim, ajudou muitos a abraçar a fé ou a permanecer na Igreja.
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Profeta da crítica à Igreja. Artigo de Margot Kässmann
“É preciso perseverança, força e um grande fôlego para apresentar visões. Mas precisamos de visões para moldar o futuro do mundo, da humanidade, das religiões, das Igrejas. Trata-se de garantir que as religiões não sejam mais um fator de agravamento dos conflitos, mas contribuam realmente para neutralizar os conflitos e alcançar a reconciliação. Hans Küng com sua Fundação Weltethos transmitiu essa visão para nós. É uma enorme contribuição de toda a sua vida”, escreve pastora e teóloga alemã Margot Kässmann, ex-presidente do Conselho da Igreja Evangélica Alemã (EKD), a Igreja Luterana da Alemanha, em artigo publicado por Zeit, 07-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Ela amava as contradições e unia as religiões com seu conceito de ética mundial. Obituário pessoal do teólogo Hans Küng. Há quase três anos, em 20 de abril de 2018, fui convidada à Universidade de Tübingen para fazer o discurso em honra de Hans Küng por seu 90º aniversário. O auditório estava lotado. Quando Hans Küng em uma cadeira de rodas foi apresentado por Stephan Schlensog, secretário-geral de sua Fundação Weltethos, todos os presentes se levantaram e o aplaudiram. Eles expressavam respeito pelo trabalho de uma vida de Hans Küng, mas também seu afeto e simpatia por esta pessoa especial. Homem erudito e culto, sua teologia foi importante não só no âmbito universitário, mas também na vida das pessoas e da sociedade. Eu experimentei isso por uma última vez em 2015, quando, após um evento em Tübingen, Hans Küng me convidou para sua casa na manhã seguinte para o café da manhã. Entre canapés e geleia, ele começou a discutir se perguntando se a ajuda para morrer poderia ser conciliável com a fé cristã. Estava convencido disso. Como muitas vezes acontecia, a contradição o deixava feliz, porque assim tinha a oportunidade de expressar suas convicções de forma extremamente clara. Foi muito estimulante poder discutir com Hans Küng. Com sua voz melódica com sotaque suíço e o brilho às vezes malicioso em seus olhos, Küng pode ser compreendido por qualquer pessoa que assista a seus programas na Sternstunde Religion no arquivo da televisão suíça.
Os piores quatro meses de sua vida
Já em 1977, eu ouvia fascinada Hans Küng em Tübingen. Para nós, jovens estudantes, ele era um exemplo, um rebelde que sustentava as suas convicções. Um católico com um habitus de Reforma. Especialmente porque havia escrito sua tese em 1957 sobre a doutrina da justificação de Karl Barth. Que foi publicada novamente como primeiro volume de sua Opera omnia – que será composta por 24 volumes. Küng ficou muito feliz com esta coletânea de suas obras. Ao período de Tübingen, seguiram-se aqueles que Hans Küng, com um olhar retrospectivo, definiu como os quatro piores meses de sua vida (de 18 de dezembro de 1979 a 10 de abril de 1980). Ele disse que não desejava tal experiência nem mesmo para seus piores adversários. A revogação de sua licença de ensino pela Igreja Católica o magoou profundamente.
Na coletiva de imprensa de 10 de abril de 1980, junto com o reitor da universidade Adolf Theis e seu amigo Walter Jens, ele nos explicou: “Independentemente da solução intrauniversitária, as questões fundamentais permanecem e as disputas não cessarão”.
Ainda permanece sem resposta por Roma e pelos bispos a questão de sua infalibilidade. Resta a questão de um anúncio cristão hoje credível na Igreja e na escola. Resta a questão da compreensão entre as denominações cristãs e o reconhecimento mútuo dos ministérios e da celebração da Eucaristia. Resta a questão das tarefas urgentes de reforma: do controle da natalidade aos matrimônios mistos e ao divórcio até à ordenação das mulheres, ao celibato obrigatório e à resultante catastrófica falta de padres”. Suas perguntas permanecem sem resposta 41 anos depois, essas perguntas continuam a estar agudamente presentes, em vista dos processos de reforma interna da Igreja Católica. Nisso, Küng foi profeta. E se tornou um visionário. Ele estava convencido de que a verdade do evangelho e a verdade das grandes religiões do mundo podem ser dialeticamente conectadas uma à outra. Segundo Küng, a busca pela identidade cristã não exclui, mas inclui a construção do consenso ecumênico e também inter-religioso.
Por meio de seus estudos e diversos encontros, Hans Küng chegou à conclusão de que – mesmo com todas as diferenças que não devem ser subestimadas em termos de fé, doutrina e rito – pode-se observar convergências entre as religiões do mundo. Todas as pessoas se deparam com as mesmas grandes questões, as questões primordiais como “de onde viemos” e “para onde vamos”, como mundo e como seres humanos, de superação da dor e da culpa, das normas de vida e ação, do sentido de viver e morrer. Em analogia aos conceitos de política mundial, economia mundial, sistema financeiro mundial, Küng cunhou o conceito de ética mundial, “Weltethos”. E resumiu sua visão em quatro frases: “Não pode haver paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não pode haver diálogo entre religiões sem normas éticas globais. Não pode haver sobrevivência do nosso planeta sem uma ética mundial”.
Um homem de fé
É preciso perseverança, força e um grande fôlego para apresentar visões. Mas precisamos de visões para moldar o futuro do mundo, da humanidade, das religiões, das Igrejas. Trata-se de garantir que as religiões não sejam mais um fator de agravamento dos conflitos, mas contribuam realmente para neutralizar os conflitos e alcançar a reconciliação. Hans Küng com sua Fundação Weltethos transmitiu essa visão para nós. É uma enorme contribuição de toda a sua vida.
Em “Justificação“, ele escreveu: “Apesar de sua enorme carga política, Lutero continua profundamente um homem de fé”. Quinhentos anos depois, isso também vale para Hans Küng. E em suas memórias, publicadas em 2013, ele reconheceu ter vivido como um cristão de fé: “Quando eu atingir meu eschaton, no último de minha vida, não me espera o nada, mas o todo que é Deus. A morte é a passagem para a verdadeira pátria, é a entrada no encobrimento de Deus e na magnificência do homem”. Que ele agora veja o que ele acreditava. Obrigado, Hans Küng!
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