“É o que Francisco quer nos relembrar nessa Encíclica: através de uma análise lúcida, crítica e implacável do mundo que criamos, para a qual, no entanto, nunca deixa espaço para a rendição, para o pessimismo e para o desespero, ele nos chama de volta às armas, numa batalha obstinada e amável a ser travada juntos e com o prazer de nos reconhecermos uns nos outros. Com uma linguagem simples e direta, aliás familiar – nos lembra justamente que todos pertencemos à mesma família, aquela humana, na qual ninguém se salva sozinho”, escreve Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (Giunti e Slow Food Editore), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre a “ecologia integral” e o destino do planeta, em artigo publicado por La Repubblica, 05-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
“Como eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres”. Assim, em 2013, o Papa Francisco iniciou seu pontificado, já traçando de forma inequívoca qual era seu sonho e sua ideia de mundo. Um programa que se desenvolveu de forma coerente até agora e que encontra o seu significado profundo não tanto numa simples reforma institucional da Igreja, mas numa dimensão muito mais ampla, em uma escolha do campo espiritual que diz respeito a todos, crentes e não crentes. Essa nova encíclica é mais um passo à frente neste extraordinário processo: um caminho cotidiano, de viés indubitavelmente franciscano, mas que se caracteriza por um ritmo e rigor próprios de um jesuíta como Bergoglio. Características que retornam, de forma clara, em Fratelli Tutti: nesse incrível documento em que as temáticas e as tomadas de posições são tão fortes e precisas, quanto lentos são os tempos do diálogo e do confronto das ideias.
Mais uma vez nos deparamos com um documento de altíssimo valor político, uma mensagem universal válida para todos, não apenas para o mundo católico. Um documento que tem uma temporalidade própria e precisa, pois trata de problemas incrivelmente atuais, mas ao mesmo tempo atemporais porque parte daquela transição ecológica que deve envolver o mundo inteiro precisa de tempo longos e deve nos ver todos como protagonistas. “A paz social é laboriosa, artesanal. (…) O que conta é gerar processos de encontro, processos que possam construir um povo capaz de recolher as diferenças”: assim afirma o ponto 217. O diálogo torna-se, portanto, o meio principal para conviver em harmonia com os outros e com a casa comum, e para encontrar uma síntese para as imensas contradições do nosso tempo. Um método radical que só encontra espaço se apoiado na fraternidade e na amizade social.
O confronto verdadeiro e fecundo, de fato, só surge onde existe uma reciprocidade autêntica e gratuita, que é a inclinação natural do nosso sermos humanos, seres sociais com uma capacidade relacional muito forte – embora muitas vezes esquecida. Assim, para revolucionar este mundo, podemos valorizar as experiências passadas e recuperar aquela Liberté, Égalité, Fraternité dos nossos primos franceses: desta vez, porém, convém não esquecer a terceira irmã, última, mas não menos importante. De fato, sem a “lei suprema do amor fraterno“, assim como a chama Francisco, a liberdade corre o risco de se tornar uma abertura ao mundo fictícia que na realidade esconde um deprimente individualismo e um triste dobramento sobre si mesmos; a igualdade, da mesma forma, algo apenas de fachada, desprovida de qualquer substância.
Para alimentar essa amizade social, Francisco também chama em causa a amabilidade – que já caiu no esquecimento – não como “um detalhe secundário ou uma atitude superficial e burguesa”, mas como uma ferramenta capaz de nos libertar da crueldade e abrir caminhos “onde a exasperação destrói todas as pontes”. É o que Francisco quer nos relembrar nessa Encíclica: através de uma análise lúcida, crítica e implacável do mundo que criamos, para a qual, no entanto, nunca deixa espaço para a rendição, para o pessimismo e para o desespero, ele nos chama de volta às armas, numa batalha obstinada e amável a ser travada juntos e com o prazer de nos reconhecermos uns nos outros. Com uma linguagem simples e direta, aliás familiar – nos lembra justamente que todos pertencemos à mesma família, aquela humana, na qual ninguém se salva sozinho.
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“O barco: não há conceito que represente melhor a ideia do nosso planeta. Um barco que navega no universo e nós o estamos pilhando por dentro. É um conceito da encíclica Fratelli Tutti com o qual um cientista só pode concordar”.
Roberto Cingolani, físico, 100% leigo, ex-diretor científico do Instituto Italiano de Tecnologia e hoje diretor da pesquisa de Leonardo, foi um dos convidados mais assíduos do Cortile dei Gentili: uma série de encontros entre cientistas e religiosos promovidos pelo Cardeal Gianfranco Ravasi.
A entrevista com Roberto Cingolani é de Elena Dusi, publicada por La Repubblica, 05-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Você se considera em sintonia com a encíclica?
Sim em vários aspectos, especialmente o da sustentabilidade. No mesmo navio estão os que ocupam a cabine da primeira classe, os que são encarregados dos serviços gerais e os que nem têm o que comer. Mas quando aparece uma falha, ou todos se salvam ou não se salva ninguém.
A pandemia seria a falha?
A pandemia tem muito a ver com nosso modelo de desenvolvimento descontrolado. Mas o discurso do Papa é mais geral. Sustentabilidade significa viver em uma casa sem comer suas paredes. Parar de se fixar no balanço do PIB e iludir-se achando que talvez esteja crescendo, sem perceber que o telhado tem buracos. Mais cedo ou mais tarde, teremos que nos preocupar com o telhado.
O Papa também falou sobre as vacinas e o compartilhamento dos cuidados.
Posso ser pessimista, mas não acho que veremos grandes exemplos de compartilhamento. Se tivéssemos um vírus que não mata 2% das pessoas, mas 20% ou 30%, todo mundo se fecharia atrás de seu muro e se manteria grudado em sua vacina.
No entanto, repetimos isso desde os tempos da AIDS: só podemos nos salvar das epidemias todos juntos.
A encíclica toca no ponto da memória: da importância de não esquecer as experiências passadas, como os massacres ou a bomba atômica. Infelizmente, porém, a espécie humana tem a lamentável característica de esquecer e, portanto, de repetir os erros. É uma das razões pelas quais persistimos em nossos comportamentos insustentáveis. A única maneira de evitar isso é nunca parar de estudar.
Outros valores que você compartilha?
O milagre da amabilidade, isto é, a aceitação do outro e do diferente. E a importância da superação dos muros, não só aqueles de tijolos, mas também aqueles de ódio que vemos, por exemplo, nas redes sociais e que limitam a biodiversidade da espécie humana.
A ciência laica e a religião compartilham muito mais do que parece.
Só até certo ponto, é claro. Alguns argumentos levantados pelo Papa não são apenas cristãos, são universais. Acrescentaria também o tema do perdão, que significa não se vingar, mas sem remover da memória. E que, segundo uma leitura ainda mais sofisticada, torna-se um convite a ser justos até mesmo com quem não o merece. O perdão, junto com a memória fruto do estudo e com a amabilidade que supera os muros, sustenta o modelo de sociedade que nos inspira. Um modelo muito diferente daquele atual, eu percebo.
Nesse sentido, leigos e religiosos estão ambos em minoria.
Até porque a ambas as categorias é solicitado estudar e trabalhar muito, num longo percurso muito específico que não inclui atalhos. Eles têm que aceitar os limites de seu entendimento. E nunca devem ter medo diante de algo que não entendem, mesmo que isso exija muita coragem. Depois, há um outro aspecto que pertence aos dois âmbitos e que tem a ver com os temas da encíclica.
Qual?
A consciência de que cada nossa ação, mesmo a menor, têm consequências no sistema global. Perceber isso não é apenas uma conquista moral, mas também científica. É por isso que hoje percebemos que vivemos de acordo com um modelo que não é sustentável. Há algum tempo li uma estatística segundo a qual um cidadão dos Estados Unidos tem 11 quilowatts de potência à disposição, um europeu 6 ou 7, um chinês 2, um indiano 0,2 e outros ainda menos. Existem demasiadas velocidades diferentes neste planeta.
A esse respeito, o Papa também dedica espaço aos migrantes.
E me pergunto como é possível que a Europa, com meio bilhão de habitantes, não consiga administrar uma questão que diz respeito a alguns milhares de pessoas, deixando-as até morrer nos barcos. Olhando para os números, não podemos deixar de perceber que é um problema muito pequeno para que a Europa não saiba gerenciá-lo melhor do que está fazendo.
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Acredito que a novidade desta encíclica é a ponte que lança entre Iluminismo e catolicismo. O Papa usa repetidamente as palavras liberdade, igualdade e fraternidade, ou seja, o fulcro daquele pensamento secular historicamente oposto ao pensamento da Igreja. Do ponto de vista político, ‘Fratelli Tutti’ é um pouco mais incisiva que as anteriores, ainda que permaneça na linha, já tradicional, das encíclicas sociais de crítica à globalização”.
Massimo Cacciari, filósofo e voz laica, não esconde suas reservas. “O discurso de Bergoglio é um grande apelo à fraternidade universal que, sabemos, infelizmente não será ouvido”.
A entrevista com Massimo Cacciari é de Maria Novella De Luca, publicada por La Repubblica, 05-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
No entanto, é um apelo que se posiciona fortemente contra as desigualdades, contra a pena de morte, do lado dos migrantes, denuncia a exploração sem regras do planeta.
Temas, justamente, já clássicos nas encíclicas da Igreja. Em suma, é natural que Bergoglio fale das tragédias do mundo nesses termos. Um elemento de novidade, porém, é a condenação não só da guerra, mas também da guerra justa. Finalmente a Igreja tomou partido contra.
E a definição do vírus não como “castigo divino” ou “revolta da natureza”, mas como “a própria realidade que geme”?
Só faltava que o Papa definisse a pandemia como um castigo divino. E até mesmo a natureza tem pouco a ver com isso. É o homem que geme, a natureza sempre ressurge, seremos nós, com os desastres que aprontamos no meio ambiente, que um dia não poderemos mais viver neste planeta. A natureza, por outro lado, encontrará uma forma de sobreviver a nós.
Existem indicações políticas precisas na encíclica de Bergoglio. A reforma da ONU. Contra soberanismos e nacionalismos. Em um mundo que já parece incapaz de prevenir a guerra.
É um apelo justo, a ONU parece ter falhado na sua tarefa que é encontrar mediações e acabar com os conflitos. Mas por trás dessas palavras, concretas, sinto a desorientação daqueles que, com sensibilidade religiosa, se perguntam por que, nestes dias sombrios, o Anticristo está vencendo. Há uma sensação de apocalipse nesta parte da encíclica.
Não há apenas desconforto. Bergoglio indica o diálogo como um antídoto para o desespero. “Fratelli Tutti”, justamente.
Um apelo universal e assim permanecerá, apenas um apelo. O Papa justamente invoca o diálogo entre diferentes, mas ignora a outra parte do discurso, a única que pode mudar as coisas. Ou seja, a busca por menores denominadores comuns que nos permitam encontrar soluções para governar, para mediar conflitos. Não basta o Bom Samaritano, é preciso a política.
Claro, mas o Papa utiliza aquela parábola para nos convidar a construir novos laços sociais, sem dar às costas à dor dos outros.
É o que esperamos ouvir de um Papa, mas não é suficiente. Não existe uma crítica radical verdadeira ao sistema que cria as desigualdades, a um sistema político fundado no entrelaçamento da burocracia com as finanças.
Você compartilha o conceito de que o Covid, como diz Francisco, nos colocou todos no mesmo barco e ninguém pode se salvar sozinho? Cada um de nós pode contaminar e ser contaminado.
É a realidade. Mas o vírus não fez nada além de ressaltar e aprofundar imensas diferenças sociais.
Em suma, Cacciari, essa encíclica “Fratelli Tutti” não o convenceu?
Acho que não tem grandes elementos de novidade. Pobreza, meio ambiente, ecologia, críticas à globalização têm sido os cavalos de batalha da Igreja, eu diria há um século. A surpresa, porém, são aquelas três palavras: liberdade, igualdade, fraternidade.
O que lhe surpreendeu?
Ler várias vezes na encíclica termos que foram o símbolo do Iluminismo, detestado pela Igreja. Palavras que se tornaram agora uma ponte com o mundo secular, como valores universais para crentes e não crentes. Junto com a condenação da “guerra justa”, aquelas passagens da encíclica “Fratelli Tutti” representam, efetivamente, algo novo.
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Cinco coisas a ver na nova encíclica do papa Francisco. Artigo de Thomas Reese
“Esta encíclica não é uma leitura rápida que pode ser usada para brigas partidárias. É um trabalho que requer meditação para o verdadeiro entendimento. Deve fornecer subsídios para filósofos e teólogos, bem como líderes políticos e sociais e cidadãos comuns”, escreve Thomas Reese, jesuíta estadunidense, ex-editor-chefe da revista America, publicação dos jesuítas dos EUA, de 1998 a 2005, e autor de “O Vaticano por dentro” (Ed. Edusc, 1998), em artigo publicado por Religion News Service, 04-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eis o artigo.
“Fratelli Tutti”, a nova encíclica papal sobre a fraternidade e a amizade social, é um importante documento didático que deve ser lido por quem deseja saber de onde vem o papa Francisco.
Ao longo dos séculos, os Papas escreveram cartas ou encíclicas sobre questões importantes, às vezes dirigidas a bispos, outras vezes a todos os católicos, mais recentemente a todas as pessoas.
Com o formato de encíclica, Francisco está anunciando que tem algo importante a dizer sobre a fraternidade e a amizade e deseja que as pessoas prestem atenção.
Aqui estão cinco coisas que você deve se ater sobre a nova encíclica.
1. Não é uma leitura de praia
Em primeiro lugar, existem algumas maneiras de compreender a nova encíclica: folheá-la ou lê-la lentamente em pequenos pedaços. Eu não recomendo a tentar obter através do documento de 43 mil palavras, escrito em prosa papal imponente, como se fosse um livro – a dizer sobre um fim de semana. Você se pegará cochilando.
Ler a encíclica em busca de algumas citações interessantes o deixará pronto para o próximo coquetel católico.
Mas se você quer entender Francisco, vá com calma. Não tente ler mais do que um capítulo de uma vez. Dê tempo ao texto para marinar. Cada capítulo leva tempo para ser digerido.
O capítulo um descreve o triste estado do mundo. É deprimente, mas o Papa oferece esperança. “Dificuldades que parecem avassaladoras”, escreve ele, “são oportunidades de crescimento, não desculpas para uma resignação taciturna que só pode levar à aquiescência”.
O capítulo dois, uma meditação sobre a parábola do Bom Samaritano, pode ser um bom material para grupos de discussão paroquiais.
Os capítulos três e quatro apresentam a visão fundamental do papa. “A estatura espiritual da vida de uma pessoa é medida pelo amor”, escreve. Este amor deve se estender além da família, tribo e nação para estranhos, migrantes e todas as pessoas em uma amizade social onde o valor de cada pessoa é reconhecido. Esses capítulos são fundamentais para a abordagem de Francisco da humanidade e seus problemas.
O capítulo cinco apresenta a filosofia política do Papa, o capítulo seis é sobre a importância dos valores sociais e culturais e o capítulo sete trata da reconciliação e da construção da paz. Só podemos desejar que os políticos e líderes mundiais leiam esses capítulos, que enfatizam que devemos ver todos como nossos irmãos e tratá-los com bondade e respeito.
Por fim, o capítulo oito fala do papel da religião na construção da fraternidade. Este capítulo será especialmente útil para diálogos ecumênicos e inter-religiosos.
2. Você já ouviu muito sobre isso antes
A segunda coisa a observar sobre a encíclica é que muito dela repete o que Francisco disse antes. As citações constituem mais de um quarto da encíclica, com 288 notas de rodapé para levar o leitor às suas fontes.
Aqui, Francisco é como um escritor de opinião que, após sete anos de escrita, decidiu recompactar sua obra e apresentar seu pensamento de forma abrangente e sistemática.
Quem tem prestado atenção reconhecerá na encíclica os princípios que guiam o papado de Francisco. Para quem não tem prestado atenção, a encíclica será uma grande introdução ao pensamento que anima este papado.
Também pode haver uma estratégia teológica por trás de todas essas citações. Ao incorporar ditos passados de homilias, discursos e declarações em uma encíclica, um dos mais altos níveis de ensino na igreja, eleva sua autoridade. Certamente ele tinha isso em mente quando citou extensivamente o acordo de Abu Dhabi do ano passado, assinado com o Grande Imam de Al-Azhar, o xeque Ahmed Al-Tayeb. Essas citações são agora o ensino oficial da igreja.
3. Você não vai ficar chocado
A terceira coisa a se notar sobre a encíclica é que não há bombas. Ele evita mencionar os temas a mídia gosta de escrever sobre. Não se diz nada sobre questões internas da igreja. Ele menciona o aborto apenas uma vez, de passagem. Não há nada sobre pessoas LGBTQ e pouco sobre mulheres.
O que ele diz sobre as mulheres é positivo: “A organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir claramente que as mulheres possuem a mesma dignidade e direitos idênticos aos dos homens”. Ele também condena a violência contra as mulheres e o tráfico de pessoas. A encíclica vê homens e mulheres como parceiros iguais para lidar com os problemas do mundo.
A encíclica expressa opiniões fortes sobre a pena de morte, guerra e economia, mas o Papa escreve com nuances. Ele não oferece soluções simples, mas incentiva o diálogo e a inclusão: todos devem ser incluídos na conversa e no processo de tomada de decisão para lidar com os desafios do mundo.
4. É uma afirmação de valores, não uma prescrição de soluções
A quarta coisa a notar sobre a encíclica é que, embora faça propostas específicas, é mais sobre atitudes e valores do que programas. Em sua meditação sobre o Bom Samaritano, ele conclui: “A decisão de incluir ou excluir os feridos à beira da estrada pode servir de critério para julgar todos os projetos econômicos, políticos, sociais e religiosos”.
Ele também fala com eloquência de bondade que envolve “falar palavras de conforto, força, consolo e encorajamento” e não “palavras que rebaixam, entristecem, irritam ou mostram desprezo”.
Para Francisco, porém, a gentileza não é apenas uma virtude pessoal, mas algo que deve permear a cultura. Porque a gentileza “envolve estima e respeito pelos outros, uma vez que a gentileza se torna uma cultura dentro da sociedade, ela transforma estilos de vida, relacionamentos e as formas como as ideias são discutidas e comparadas”, escreve. “A gentileza facilita a busca por consenso; abre novos caminhos onde a hostilidade e o conflito queimariam todas as pontes”.
Isso deve levar a uma “cultura do encontro”, diz ele, onde as pessoas “devem ser apaixonadas por conhecer outras pessoas, buscar pontos de contato, construir pontes, planejar um projeto que inclua todos”.
Mas esse foco em valores elevados não impede Francisco de dizer aos políticos que eles deveriam implementar esses valores.
Os políticos são fazedores, construtores com objetivos ambiciosos, possuidores de um olhar amplo, realista e pragmático que olha além de suas próprias fronteiras. A sua maior preocupação não deve ser a queda nas pesquisas, mas sim encontrar soluções eficazes para “o fenômeno da exclusão social e econômica, com suas consequências nefastas: o tráfico de pessoas, a comercialização de órgãos humanos, a exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo prostituição, tráfico de drogas e armas, terrorismo e crime organizado internacional”.
5. Este não é um documento apenas para americanos
A quinta coisa a se notar sobre a encíclica é que ela foi escrita para o mundo inteiro, não apenas para a igreja e não para os Estados Unidos. Não tente lê-lo no contexto da eleição presidencial!
O estilo filosófico da encíclica, de fato, pode ser mais acessível aos europeus e latino-americanos do que aos cidadãos norte-americanos, que tendem a ser mais pragmáticos e concretos em seu pensamento. Por isso mesmo, a encíclica é especialmente útil para os americanos que precisam elevar os olhos para uma visão mais elevada e, ao mesmo tempo, manter seu foco prático.
Em conclusão, esta encíclica não é uma leitura rápida que pode ser usada para brigas partidárias. É um trabalho que requer meditação para o verdadeiro entendimento. Deve fornecer subsídios para filósofos e teólogos, bem como líderes políticos e sociais e cidadãos comuns.
As encíclicas são importantes, mas são raros os documentos de ensino no pontificado de Francisco. Ele publicou apenas duas outras encíclicas. A primeira, Lumen Fidei foi basicamente escrita pelo papa Bento XVI antes de sua renúncia. Francisco fez pequenas alterações e assinou a encíclica em 2013 para mostrar a continuidade entre seu papado e o de Bento XVI.
A segunda, Laudato Si’, foi um toque de clarim para a ação em nome da Terra, que está sofrendo com a devastação ambiental e o aquecimento global. A resposta à carta de 2015 foi extremamente positiva, exceto pelos negadores das mudanças climáticas.
“Fratelli Tutti”, terceira encíclica de Francisco, apresenta a sua visão de como a humanidade deve responder às necessidades do século XXI. Vai demorar para ser absorvido, mas pode sustentar a vida.
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Fratelli Tutti. “Mensagem radical, a propriedade privada vem depois do bem de todos”. Entrevista com Carlo Petrini
A nova Encíclica do Papa Francisco “clama pela necessidade de uma boa política, com base no diálogo e não nos insultos. E na amabilidade, que pode fazer milagres”. Ele lembra que “os populismos não estão realmente a serviço dos povos, mas são uma ameaça”. E pede uma “sacrossanta” reforma da ONU, chamada para um verdadeiro “exercício global da democracia”, sem mais países privilegiados. Carlo Petrini, fundador e presidente do Slow Food e da Universidade de Ciências Gastronômicas de Pollenzo, comenta “Fratelli tutti”, o novo documento do magistério de Bergoglio.
A entrevista com Carlo Petrini é editada por Domenico Agasso jr, publicada por La Stampa, 05-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Como você define essa encíclica?
Um grande e radical documento social, com posições bem definidas sobre questões e problemas decisivos para a humanidade.
Quais são eles?
O acolhimento do diferente e do distante, o multilateralismo, a necessidade de instituições que tenham uma relação poliédrica com a realidade, atentas ao global e ao local. E depois, a tomada de distância dos populismos, que na realidade não estão a serviço dos povos. Pelo contrário, ameaçam as democracias.
Qual é o conceito mais corajoso expresso pelo Papa?
Reafirmar que a propriedade privada está a serviço das pessoas e não vice-versa, e vem depois da destinação universal dos bens da terra.
E qual é a passagem que mais lhe surpreendeu?
Aquela sobre o ‘milagre da amabilidade’ que cria uma convivência saudável.
A que se conecta?
À política de hoje. Enquanto estamos voltando do último duelo entre Trump e Biden, todo feito de insultos e acusações, ouvir um líder mundial que pede para aplicar a amabilidade como um modelo relacional é quase revolucionário. E providencial.
Por falar em política, quais são as mensagens mais importantes?
A Encíclica chama a atenção para a necessidade de uma boa política. E o caminho indicado por Francisco é o diálogo, baseado no respeito pelas ideias dos outros. Além disso, o Pontífice sugere também o método de trabalho.
Pode descrever para nós?
É aquele da escola jesuíta: levar adiante as urgências e ao mesmo tempo, onde for possível, deixar que os tempos das soluções sejam lentos, mas que prossigam. As emergências e reflexões de longo prazo devem ser tratadas ouvindo e compartilhando, nunca unilateralmente. Todos os partidos deveriam ler a Encíclica: Bergoglio é o líder mais lúcido, crível, confiável e esclarecedor do cenário internacional. E também o mais realista.
O Papa pede a reforma da ONU: o que você acha?
Nas Nações Unidas ainda há países privilegiados com direito de veto: por que eles têm direitos que outros não têm? O Pontífice reivindica o trabalho do multilateralismo, com atenção à diversidade e à solidariedade. Convida a ONU a um verdadeiro exercício planetário de democracia.
A terceira conversa com o Papa que você publicou no recente livro “TerraFutura” (Giunti – Slow Food Editore) aconteceu enquanto o Pontífice finalizava a encíclica: reconhece algo?
A proposta de reformar o sistema econômico-político e social mundial através da participação e da fraternidade. Seu mentor na encíclica é o Grande Imã de al-Azhar, e isso transmite a universalidade da linguagem de Bergoglio.
A encíclica é publicada no momento em que chuva e lama assolam o Noroeste da Itália: o que isso o faz pensar?
À ‘realidade que geme e se rebela’ de que fala o Papa. Esses desastres são uma confirmação alarmante de como todo o clima esteja mudando rapidamente e o meio ambiente esteja em desordem. Especificamente no Piemonte, a tragédia da água e da lama no Val Tanaro é maior que a de 1994 e, sobretudo, é diferente: manifestou-se em poucas horas, não ‘lentamente’ como há 26 anos.
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04/10/2020 | domtotal.com
‘Fratelli Tutti’: um tapa na cara do ‘cristianismo de mercado’
Tudo o que está na encíclica é plausível e louvável. O que incomoda é o que não está nela
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Julio Eduardo dos Santos Ribeiro Reis Simões*
O título desta encíclica me trouxe, quando o li, bem como sua introdução, a ideia de que leria eu palavras melífluas e mansas, com o coração pacífico e cheio de amor. Ledo engano, e graças a Deus: não existe nada mais chato que o otimismo tacanho de quem acredita que Deus nos ajudará a resolvermos os problemas que nós mesmos insistimos em criar, recriar e viver. Fratelli Tutti é uma delícia porque é subversiva, é incisiva, é corajosa, na medida que as encíclicas sociais conseguem ser. Foi assim com a Rerum Novarum, que embora tímida, introduziu o tema do valor atrelado e intrínseco ao e do trabalho, algo corajoso na saída do século 19 e no fervilhar que culminou na revolução russa. Foi assim com a Quadragesimo Anno, que embora criticadíssima por considerar a propriedade como inerente à liberdade humana, estabeleceu a noção de função social da propriedade como modulador da possibilidade de propriedade, o que questiona a valência dos conceitos de propriedade e posse. E assim por diante. Cada encíclica social que a Igreja de Roma produziu ao longo dos últimos quase 130 anos de tal expertise foi relativamente tímida e corajosa ao mesmo tempo. Esta não é diferente. É tímida em termos de pautas palpáveis, mas extremamente corajosa na grande pauta que traz, que exporei no próximo parágrafo. Por hora, quero destacar a própria intenção de Francisco sobre a encíclica produzida. Para ele, sua encíclica serviria “como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras.” (FT 6).
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Ao longo do capítulo 1 da encíclica, que Francisco nomeia como encíclica social também em 6, o bispo de Roma comenta sobre todos os aspectos possíveis para se comentar sem causar grave desconforto mesmo nos setores mais retrógrados da Igreja Católica Apostólica Romana. De tráfico sexual de mulheres e crianças às condições de subemprego, passando pelo ressurgimento de ultra nacionalismos, o capítulo 1 é uma descrição de feridas da sociedade cristã. Mas não de todas elas. Voltarei a este incômodo mais tarde.
O capítulo 2 é uma hábil catequese pragmática sobre a conhecida parábola do Bom Samaritano, onde Francisco insiste e demonstra que da mesma maneira que a sociedade palestinense do século 1º, a nossa está constituída para ignorar as dores, não olhar as feridas e passar ao largo.
Os capítulos 3 a 7, eu diria, são cândidos, quase inocentes. Talvez acreditando que no tipo de sociedade constituída segundo o que ele mesmo expôs em 1 e 2 alguém ainda tome a palavra de um papa como realmente importante e até mesmo bem acertada (quem sabe infalível!), Francisco propõe uma série de atitudes, principalmente macroatitudes, do tipo que só podem ser levadas a cabo por governantes, grandes corporações, chefes militares, chefes de escritórios internacionais etc., que evidentemente não estão e não estarão nem aí pra encíclica. Nem esta, nem as que vieram antes, nem as que vierem depois. Mas são ideias interessantes, como o uso social da propriedade, a discussão do valor inerente ao trabalho, o fazer ou não guerra, a possibilidade de pena de morte e coisas assim, bem macro. É claro que Francisco tem uma linguagem pastoral e sempre coloca exemplos palpáveis de promoção de valores dentro do universo palpável dos reais leitores, isto é, promove o bem estar familiar, promove o bem estar social da classe trabalhadora, aponta pregações cheias de esperança. Estes são os pontos cândidos! Mas é perceptível que as atitudes pessoais que realmente causariam a mudança do estado de coisas descrito em 1 teriam de ser tomadas pelas pessoas que provavelmente, se lerem, não darão a mínima pras palavras de Francisco, que eu chamaria de poderosos. Há que se pensar se esta construção argumentativa contribui mais para, na verdade, a manutenção do estado de coisas, pois fica claro que estamos nas mãos de outrem ou se esta percepção não é somente exagero meu. Dou meu voto de confiança e fé sobre estes capítulos e sobre o autor, que afinal é um camarada super gente boa, e sentencio: para mim a palavra que cabe é “candura”.
De volta ao terreno que lhe é mais próprio, o capítulo 7 é dedicado ao delineamento do papel das religiões na construção dos ideais do capítulo 2, em vista da superação do estado de coisas descrito no capítulo 1, e como motivação religiosa das ações a serem empreendidas pelos que delas são capazes, descritas nos capítulos 3 a 7. O capítulo 8 é sobre “As religiões ao serviço da fraternidade no mundo”, e este é seu título. Embora o titulo traga o plural “religiões”, a leitura do capítulo deixa óbvio que se tratam de religiões teístas, de cunho monoteísta, e especialmente as abraâmicas. Outras religiões não são contempladas no texto, inclusive manifestações religiosas que o antigo cardeal de Buenos Aires deve conhecer bem, como religiões indígenas, negras, etc. Este é, de novo, meu ponto de incômodo.
Vou dedicar estes parágrafos que aqui se abrem para que o leitor e a leitora compreendam bem o que me incomoda: O que me incomoda não é o que está na encíclica. Tudo o que está na encíclica me parece plausível, louvável, fundado na tradição católica de doutrina social, com bom embasamento bíblico e teológico, com uma catequese espetacular sobre o Novo Testamento e o conteúdo do Reino de Deus. É um conteúdo, em uma palavra, excelente! Fosse este um trabalho acadêmico sobre a Doutrina Social da Igreja Romana em uma perspectiva dialógica, era nota 10! E talvez seja apenas isto…
É notável que esta encíclica siga demarcando o território do papado como um território conservador e não progressista. Os invisíveis da sociedade atual ?” negros, imigrantes, gays, lésbicas, travestis, transexuais, trisais, o trabalhador de grandes empresas, mães solteiras, indígenas, animistas, enfim, os pequenos… não aparecem na encíclica como AGENTES DE MUDANÇA, mas como INJUSTIÇADOS. Isto quando aparecem. Pois alguns destes grupos, que estão sempre na pauta das ações de promoção de igualdade de direitos fora da noção romana de sociedade ideal, bem expressa pelos capítulos cândidos, isto é, no mundo real, simplesmente não são sequer citados nenhuma vez.
O mundo para o qual a Fratelli Tutti foi escrita parece-me não existir ou não ser o meu. Eu não acredito no sistema, lógico. Concordo com Francisco em que as mudanças neste sistema infelizmente só são possíveis de cima pra baixo. As bases têm pouquíssimo poder, enquanto subjugadas peças deste sistema, de o questionar. Mas o que Francisco não ousa propor, no que diz respeito aos grupos de “injustiçados”, é que seja possível sair do sistema, construindo por exemplos redes locais de economia solidária, de permacultura urbana, de ensino gratuito, de produção de conteúdo de multimídia, de produção cultural e literária. Isto é notável quando penso no ambiente cultural de Buenos Aires, local de origem de Bergoglio, com tantas editoras cartoneras por exemplo. Estas são o tipo de editora que só publicam autores desconhecidos em material artesanal reciclado, recolocando o produtor de conteúdo cultural (o escritor), o artesão (encadernador manual) e o fornecedor de material (catador de papelão e papéis), além do técnico em informática com o computador obsoleto, em outro lugar que é, de certa forma, parte da lógica do sistema, mas que funciona como ruído no mesmo, pouco a pouco o questionando e ruindo por dentro-e-fora de si mesmo. Ou será que a Buenos Aires de Bergoglio era apenas aquela, famosa, “que tem mais livrarias (que só vendem produtos [livros] industrializados por grandes proprietários, lógico) que o Brasil inteiro…”?
O discurso de Bergoglio, o pai dos pobres feito Francisco, é direcionado a que camada da sociedade? Esta pergunta é importante porque ele se chama de Francisco e lança sua encíclica na data da festa litúrgica do seráfico Francisco de Assis, além de ser a mais proeminente liderança do cristianismo ocidental. Quem eram os ouvintes principais de Jesus e Francisco? Os muito ricos da Judéia ou de Assis? Ou os leprosos entre Assis e o Subiaco; além dos mendigos das aldeias da Galiléia?
Meu incômodo é que este texto, este discurso, não empodera as massas, mas as põem à espera e mercê de soluções vindas de cima. Cândidos (?) Capítulos 3 a 7…
Além disto, também me incomoda demais a invisibilidade de outras religiões que não as monoteístas, a exclusão (ou preferência pela invisibilização) das revoltas raciais gritantes e acesas durante o período de redação da mesma (será que o papa assiste notícia ou só assiste Canção Nova…?), o não tocar em questões de gênero, chaga social aberta e inflamada, a invisibilidade completa dos que, por assim dizer, estão mesmo sempre “de fora.”
Isto me incomoda porque é lógico que a mesma transposição entre grandes e pequenos da sociedade de agora e as de Assis e Palestina que propus há pouco não é possível… mas será que estes excluídos, mal falados, mal queridos, ignorados, como eram as prostitutas, os cobradores de impostos, as crianças… não seriam estes os que seriam postos em evidência?
Faço aqui uma cândida mea culpa. É óbvio que Francisco não está, a princípio, interessado em manter o sistema, embora uma leitura mais crítica, como a que proponho, possa apontar nesta direção. Ele declara, já ao apresentar sua carta como encíclica social, no parágrafo 6, que deseja que as ideias se transbordem em algo mais que discurso. Ele quer ações. Mas como todo o material produzido pela Santa Sé, precisa ser meio tépido mesmo, senão acabam derrubando o bispo de Roma.
A tepidez, aparente cinismo, é inerente ao cargo. É dizer sem de fato mudar nada, e ao fazer isto provocar a ponta de cá, teólogos subalternos, esquecidos, desimportantes, a dizer “mas porque isso e isso e aquilo não aparece? E se fizermos assim e assado? Vossa Santidade poderia fazer o favor de dar voz aos subalternos? Os subalternos poderiam falar, por favor?”. É parte da dialética. Nos desperta, em nós teólogos, nossa paixão pelo Reino, pelo discurso amplamente inclusivo e desafiador de Jesus… sou forçado, prazenteiramente, a concordar com este que é meu parágrafo preferido:
“36. Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio. Além disso, não se deveria ignorar, ingenuamente, que ‘a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca.’ (Laudato si, 204) O princípio salve-se quem puder traduzir- se-á rapidamente no lema todos contra todos, e isso será pior que uma pandemia”.
Obrigado, Companheiro Santidade. Recuperemos nossa paixão por poder divergir. Dê-me aqui sua mão, vamos juntos. Mas não se esqueça: sou anglicano e não vou lhe obedecer.
*Julio é candidato às sagradas ordens na Diocese Anglicana do Rio de Janeiro, pai do Antonio, marido da Gisele, doutor em Ciência da Religião, bacharel e mestre em Teologia. É fã dos Beatles e odeia Você-Sabe-Quem.
Na Encíclica “Fratelli Tutti” o Papa Francisco propõe converter o amor em uma força universal
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