Financiamento público às Comunidades Terapêuticas cresce e põe em risco a reforma psiquiátrica

Em nome da política de guerra às drogas, o investimento nas entidades religiosas foi de R$560 milhões em 4 anos

Gabriela Moncau
Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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A data de 18 de maio é marcada como Dia Nacional da Luta Antimanicomial – Foto: Maíra Cabral / Mídia NINJA

“Louco é o sistema”. “Por um SUS antimanicomial”. “Contra o fascismo, em defesa do cuidado em liberdade e dos direitos humanos”. “(Ainda) por uma sociedade sem manicômios”. Esses são eixos de alguns dos atos que estão sendo organizados, Brasil afora, nesta quarta, 18 de maio, dia nacional da luta antimanicomial.

Eles dão o tom do momento reativo vivido pelo movimento, nascido na década de 1970 no Brasil, em defesa dos direitos das pessoas com sofrimento mental e visando o cuidado em liberdade.

Desde que foi aprovada em 2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica estruturou a política de saúde mental no Brasil com base no fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos (também chamados de hospícios ou manicômios) e no desenvolvimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que oferece cuidados interdisciplinares, em liberdade e próximo da residência de quem recebe esses cuidados.

Reforma em risco

Mas desde 2011 e mais intensamente a partir de 2016, no entanto, a reforma psiquiátrica vem sofrendo uma série de ataques. Para a psiquiatra e psicóloga Miriam Abou-yd, integrante do Fórum Mineiro de Saúde Mental, da Frente Mineira Drogas e Direitos Humanos e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), se vive em 2022 “o momento mais difícil do SUS, da reforma psiquiátrica e da luta por uma sociedade sem manicômios”.

“Os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) não recebem nenhum aumento de recursos financeiros desde 2011. E desde 2017 está em vigor uma portaria do Ministério da Saúde que, entre outros enormes retrocessos, interrompe o fechamento de hospitais psiquiátricos e lhes garante aumento financeiro”, explica Abou-yd.

Em sua visão, uma das formas mais consistentes com que o governo federal tem atacado a perspectiva antimanicomial é por meio da sua política de guerra às drogas.

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“Houve um incremento nas contratações das Comunidades Terapêuticas e um aumento astronômico de investimentos nessas instituições, contra as quais há incontáveis denúncias de graves violações de direitos humanos”, destaca Miriam Abou-yd.

O que são Comunidades Terapêuticas? 

Existentes no Brasil desde a década de 1960, as Comunidades Terapêuticas (CTs) são instituições privadas que oferecem internações para pessoas que fazem uso problemático de drogas. Em sua maioria, tem ligação com igrejas católicas ou evangélicas, se localizam em espaços afastados da cidade e pregam a abstinência.

A quantidade de entidades que se autodenominam Comunidades Terapêuticas não para de aumentar, em paralelo ao crescimento numérico, político e econômico das igrejas evangélicas no Brasil. Segundo a última pesquisa de abrangência nacional feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2017 havia cerca de duas mil CTs no país.

Uma série de pesquisas e inspeções trouxeram à tona denúncias de violações de direitos humanos praticadas em Comunidades Terapêuticas. Uma delas foi realizada em 2018 pelo Ministério Público Federal, o Conselho Federal de Psicologia e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

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Em todas as 28 unidades inspecionadas em 11 estados brasileiros, foram identificadas violações. Entre elas, a obrigatoriedade de execução de tarefas repetitivas, laborterapia, supressão de alimentação, privação de sono, alta medicalização, uso irregular de amarras, além de violência física. Em 16 delas foram constatadas práticas de castigo e punição aos internos.

“Comunidades terapêuticas são os atuais manicômios” 

Entre 1990 e 2007, o escritor, editor e ativista Roque Júnior passou 387 dias internado em hospitais psiquiátricos, “sem contar uns dois anos do período pós internação. Aquele período que tem uma adaptação de medicamentos, de retorno à sociedade”, relata.

Atualmente usuário dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial, Júnior se cuida em liberdade e se tornou um ativista da luta antimanicomial. Autor de 65 livros publicados, ele faz parte do Fórum Gaúcho de Saúde Mental e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila).

“Comunidades terapêuticas são os atuais manicômios”, explica ele. “As pessoas ficam ali por seis meses, um ano, depois ficam um período na sociedade e retornam para essas CTs, muitas das quais impõem um trabalho praticamente escravo, para multiplicar seus prédios e ampliar as internações”, diz.

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Diretor-executivo da Desinstitute (ONG que atua pela garantia de direitos humanos e pelo cuidado em liberdade no campo da saúde mentalno Brasil e na América Latina), o psicólogo e psicanalista Lúcio Costa argumenta que “o cenário de desmonte da política de saúde mental comunitária se conecta com o avanço da guerra às drogas, porque, dentro desse projeto de sociedade, os sujeitos considerados não desejáveis precisam ser aprisionados, seja na esfera penal, seja na esfera cível”.

“Em nome do cuidado e da saúde pública, muitos direitos foram violados no Brasil ao longo da história”, sintetiza Costa.

Financiamento público de CTs 

O investimento de verba do Sistema Único de Saúde (SUS) em Comunidades Terapêuticas começou em 2011, sob o governo de Dilma Rousseff (PT). Sem função bem definida, elas foram incluídas como parte da Rede de Atenção Psicossocial por meio da portaria 3.088 do Ministério da Saúde.

O financiamento público a essas entidades se tornou mais robusto em 2017, com Michel Temer (MDB) na presidência, recebendo valores ainda maiores depois que Jair Bolsonaro (PL) assumiu, em 2018.

Segundo estudo feito pela ONG Conectas Direitos Humanos e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), entre 2017 e 2020 o investimento federal em Comunidades Terapêuticas chegou a R$ 560 milhões.

O auge foi durante os dois últimos anos pesquisados, 2019 e 2020, com cerca de R$ 105 milhões de recursos públicos direcionados a essas entidades privadas a cada ano.

“A tendência mais provável é que o investimento continue crescendo, especialmente por parte do governo federal, que faz do repasse às CTs o eixo principal de sua política de cuidado a quem faz uso problemático de drogas”, aponta o relatório.

Além disso, em 2021 foi aprovada a Lei Complementar 187. A partir daí, essas entidades passaram a ter o direito a imunidade tributária.

De acordo com a Conectas e o Cebrap, “não há clareza sobre o tipo de serviço contratado, sobre a composição de seu custo, dos seus insumos, dos produtos esperados e, principalmente, de seu impacto e de sua efetividade”. Ainda a respeito da eficácia dos tratamentos oferecidos pelas CTs, o relatório discorre que “as evidências são escassas e, enquanto política pública, inexistentes”.

A aposta no tratamento em liberdade 

Usuário do sistema de saúde mental, Mário Moro é um dos entrevistados de um documento que será lançado em breve pelo Desinstitute, sob o nome Da saída do manicômio à vida na cidade: estratégias de gestão e de cuidado.

“Querem lucrar em cima da loucura e da abstinência dos usuários, porque imagine só o quanto não proporciona de lucro para essas instituições religiosas, que estão hoje gerenciando as Comunidades Terapêuticas?”, questiona Moro.

Apesar do momento difícil, Miriam Abou-yd ressalta que “a luta antimanicomial brasileira tem lastro, história, raiz, portanto, mesmo com enorme dificuldade, temos conseguido manter uma resistência ancorada nos serviços substitutivos que construímos e na força, também fragilizada mas viva, dos movimentos sociais e de seus parceiros da sociedade em geral”.

“E quem nos garante esta força”, complementa, “são as usuários e usuários da saúde mental que confiam em nós, que militam conosco, e que nunca nos deixarão esquecer da aposta vitoriosa do tratamento em liberdade”.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho

fonte: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/18/financiamento-publico-as-comunidades-terapeuticas-cresce-e-poe-em-risco-a-reforma-psiquiatrica

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Portaria assinada pelo golpista Michel Temer cortou os avanços dos últimos 30 anos na área da saúde mental
Portaria assinada pelo golpista Michel Temer cortou os avanços dos últimos 30 anos na área da saúde mental – Reprodução

Nesta quarta-feira (18) se comemora o dia nacional da luta antimanicomial, com manifestações e atividades marcadas por todo o Brasil.

Defendendo que cuidado se faz em liberdade, os movimentos que lutam pelos direitos das pessoas com sofrimento mental tomaram corpo no país a partir da década de 1970. Foram formados, em sua maioria, por trabalhadores e sindicalistas, pessoas que passaram por internações psiquiátricas e seus familiares organizados.

Nesse mesmo dia 18 de maio, mas do ano de 1987, um encontro de trabalhadores da saúde mental aconteceu na cidade paulista de Bauru. Foi ali que se definiu a data como um dia nacional de lutas e que se discutiram as bases de uma proposta de reforma no sistema psiquiátrico brasileiro.

“O manicômio é expressão de uma estrutura presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres”, caracteriza o Manifesto de Bauru, documento do evento de 1987, considerado um dos marcos fundantes da luta antimanicomial brasileira.

“Lutar pelos direitos dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida”, defende o manifesto.

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Psicólogo, psicanalista e diretor do Desinstitute, uma Organização da Sociedade Civil (OSC), Lúcio Costa explica que a luta antimanicomial “não fala só de cuidado, mas também aponta que determinados procedimentos que, em especial antigamente, eram considerados procedimentos médicos, são violência, tortura e segregação. Em nada podem ser comparados com qualquer conceito de saúde ou diretriz de cuidado”.

A transição para o cuidado em liberdade

O cenário das políticas públicas de saúde mental – que durante ao menos dois séculos era de hospícios funcionando sob a lógica da internação e exclusão prolongada de pessoas rotuladas como loucas – é transformado no Brasil principalmente a partir de 2001.

Nesse ano é aprovada a Lei 10.216, também chamada de Lei Paulo Delgado ou Lei da Reforma Psiquiátrica. Ela determinou que a política de saúde mental no país passasse por uma transição, com o fechamento dos leitos em hospitais psiquiátricos e o desenvolvimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), oferecendo serviços abertos, comunitários e territorializados.

De acordo com o Desinstitute, na década de 1980 havia no Brasil cerca de 100 mil leitos em hospitais psiquiátricos, também chamados de hospícios ou manicômios. Com a aplicação da Reforma Psiquiátrica a partir de 2001 e o desenvolvimento da RAPS, que tem os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como seu serviço mais conhecido, esses leitos foram sendo gradativamente fechados. Atualmente existem 13 mil no país.

Depois do avanço, os passos para trás

Mas ao longo da última década, mais precisamente desde 2011, o avanço da perspectiva antimanicomial enquanto política de saúde mental oferecida pelo Estado sofre abalos.

Naquele ano, sob gestão de Dilma Rousseff (PT), as Comunidades Terapêuticas – instituições privadas de internação de usuários de drogas, em sua maioria religiosas – são incluídas nas normativas legais e passam a receber financiamento público.

A partir de 2016, depois do impeachment, ao longo do governo de Michel Temer (MDB) e, em seguida, de forma ainda mais intensificada desde que Jair Bolsonaro (PL) assumiu a presidência, uma série de medidas estão sendo tomadas pelo governo federal no caminho inverso ao da reforma psiquiátrica.

“No final de 2017 uma portaria incluiu hospitais psiquiátricos no centro da Rede de Atenção Psicossocial, isso era algo impensável antes”, critica Lúcio Costa.

De acordo com uma pesquisa lançada neste mês de maio pela Conectas Direitos Humanos e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), entre 2017 e 2020 o investimento federal em Comunidades Terapêuticas chegou a R$ 560 milhões.

Além disso, em 2021 foi aprovada a Lei Complementar 187. A partir daí, essas entidades passaram a ter o direito de receber imunidade tributária.

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Em 22 de março deste ano, o Ministério da Saúde revogou, por meio da portaria 596, o custeio mensal do Programa de Desinstitucionalização, voltado para a reinserção social de pessoas internadas há mais de um ano em hospitais psiquiátricos.

Na semana seguinte, o Ministério da Cidadania publicou um edital com incentivos que somam R$ 10 milhões para financiar projetos nos mesmos hospitais psiquiátricos que o programa anterior pretendia esvaziar.

“Cenário de barbárie”

Lúcio Costa atuou como perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Lá coordenou, em 2017, uma inspeção nacional em hospitais psiquiátricos em 11 estados brasileiros. “Barbárie é a melhor palavra que define essas instituições”, destaca.

“Encontramos pessoas privadas de sua liberdade por longos anos. Eu conheci um senhor que estava dentro do hospital havia 60 anos. Encontramos indícios graves de tortura, tratamento cruel, desumano e degradante”, expõe Lúcio.

A camisa de força tradicional que vem à mente, aquela que cruza e amarra os braços da pessoa para trás, não é mais usada. A inspeção, no entanto, se deparou com uma nova modalidade. “São gessos em formato de camisa, que imobilizam todo o tronco da pessoa, inclusive os braços”, denuncia Costa.

De interno à ativista e escritor

Roque Júnior, diagnosticado com bipolaridade, passou por oito internações em hospitais psiquiátricos entre 1990 e 2007. Atualmente usuário de serviços da rede substitutiva de saúde mental, como o CAPS, Júnior integra o Fórum Gaúcho de Saúde Mental e a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila). Se apresenta, também, como companheiro da Martha e avô de Pedro.

Em liberdade, cursou metade dos cursos de sociologia e história e desenvolveu sua habilidade literária. Escritor e editor, Roque Júnior é autor de nada menos que 65 livros publicados.

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“Hoje vivemos um retrocesso, mas seguimos com atividades ótimas”, avalia, citando que no CAPS que frequenta são desenvolvidas atividades de redução de danos e um Grupo de Gestão Autônoma de Medicamentos.

“Também quero citar o CAPS III, que é 24h. Se passarem por um momento de crise, as pessoas podem ficar lá alguns dias, até passar a crise, sem precisarem se internar num manicômio ou numa Comunidade Terapêutica”, expõe.

Hoje

Nas avaliações de Roque e Lúcio, o avanço da luta antimanicomial nos últimos 30 anos foi imenso. “Fechamos quase 90% dos leitos em psiquiatria no país, construímos uma Rede de Atenção Psicossocial significativa a ponto de, na década de 2000, a Organização Mundial da Saúde reconhecer a política de saúde mental no Brasil como exemplar para o mundo”, argumenta o psicólogo.

“Ocorre que os grupos econômicos que defendem o manicômio nunca saíram do cenário e não foram derrotados enquanto concepção”, avalia.

Roque Júnior afirma que, desde 2016, a luta contra os manicômios sofre ataques “praticamente a cada semana”. Por outro lado, pondera, “a saúde antimanicomial, em liberdade, segue sendo o norte da atuação da maior parte das pessoas e entidades”. Nesse contexto, chega mais um 18 de maio.

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Edição: Rodrigo Durão Coelho

fonte: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/18/18-de-maio-o-que-e-e-quais-sao-os-desafios-atuais-da-luta-antimanicomial

 

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