ESTADO POLICIAL – Em vez de investigar uma denúncia do Intercept, a Polícia Civil decidiu investigar Leandro Demori por ter escrito este texto

Tudo indica que a DRCI se tornou uma delegacia de repressão política. O Intercept não vai se curvar a isso, nunca.

O ESTADO POLICIAL que vem rapidamente erodindo a democracia no Brasil cumpre mais um capítulo nefasto. A Polícia Civil do Rio de Janeiro abriu um inquérito para investigar Leandro Demori pela ousadia de fazer jornalismo e de questionar a própria Polícia Civil. Em uma inversão total de prioridades éticas e funcionais, a polícia decidiu agir contra o jornalista mensageiro em vez de investigar a grave denúncia feita pelo editor-executivo do Intercept. Em uma newsletter enviada a nossos assinantes no dia 8 de maio (e que vocês podem ler abaixo), Demori elenca evidências apuradas com fontes sobre a possível existência de um grupo de matadores agindo no coração da corporação.

O jornalista mostra que diversas ações da Core, a Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil (a mesma que foi protagonista no massacre do Jacarezinho no mês passado), resultaram em dezenas de mortes seguindo o mesmo roteiro. “A Polícia Civil do Rio mantém um grupo de assassinos?”. Essa foi a pergunta inicial do artigo jornalístico publicado na news do Intercept, seguida de fatos públicos e notórios que deveriam mover as instituições para que se investigue a Core.

Em democracias saudáveis, a polícia estaria preocupada com a pilha de mortos que a Core vem deixando em suas operações. No Brasil dos nossos tempos, a polícia quer intimidar e pressionar o mensageiro. Demori foi intimado a comparecer na Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática na próxima quinta-feira, às 14h. A DRCI é a mesma que intimou Willam Bonner, Renata Vasconcellos e Felipe Neto, em casos com evidente viés político. Tudo indica que a DRCI se tornou uma delegacia de repressão política. O Intercept não vai se curvar a isso, nunca.

A facção da Core

PAIRA NO AR a ideia de que o massacre do Jacarezinho enfraquece o poder do Comando Vermelho para favorecer as milícias. Está longe de ser uma ideia descabida, diga-se. Em uma cidade cada vez mais dominada por gente como Adriano da Nóbrega e pelos comparsas do “cara da casa de vidro”, é natural que se faça a ligação entre uma coisa e outra. De modo simbólico, sim, é possível que as milícias aplaudam o massacre. Mas eu quero dar um passo em outra direção.

Antes: até poucos anos atrás, acreditava-se que seria impossível que a milícia entrasse na Cidade de Deus, por exemplo. A favela é muito cobiçada e, hoje se sabe, está sendo comida pelas bordas pelos milicianos. No Jacarezinho é diferente. O Comando Vermelho é muito forte em toda a região: Manguinhos, Arará, Mandela, Urubu, Mangueira, Alemão, Penha, Maré.

Então se não existe, até hoje, movimentação evidente de que grupos milicianos estejam ativamente tentando invadir o Jacarezinho, o que sobra? Evidências de que a Polícia Civil do Rio de Janeiro está mantendo impune um grupo de assassinos.

Policiais que participaram do massacre de quinta-feira – 24 mortos ainda sem nome – são conhecidos à boca pequena como “facção da Core”, a Coordenadoria de Recursos Especiais. A história cresce quando juntamos outros fatos: a “facção” está envolvida no caso João Pedro (menino de 14 anos, morto durante uma operação), na chacina do Salgueiro (oito mortos) e no caso do helicóptero da Maré (oito mortos). São 41 homicídios somente nesses casos. Quantos mais?

É preciso que se investiguem as circunstâncias e os responsáveis dessas operações assassinas. Mas não só isso. É preciso apurar as intenções desses massacres. Não parece que tudo isso possa ficar na conta de seguidas trapalhadas. A PGR precisa devassar a vida dos delegados que comandaram a ação. São agentes públicos. Precisamos saber se ainda somos nós – que pagamos seus salários – os seus verdadeiros patrões.

fonte: https://theintercept.com/2021/06/08/denuncia-core-leandro-demori/

LEIA também https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2021/06/08/acao-da-policia-contra-editor-do-intercept-e-intimidacao-e-absurdo-tecnico.htm


POR QUE O INTERCEPT DECIDIU QUE LEANDRO DEMORI NÃO VAI SE SUBMETER AO DEPOIMENTO POLICIAL CONTRA NOSSO JORNALISMO

Apesar dos esforços de alguns, ainda vivemos em uma democracia. E nossa Constituição garante a liberdade de imprensa e protege o sigilo de fonte.

 

A POLÍCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO é a que mais mata no Brasil e uma das mais letais do mundo. Nos últimos anos, a brutalidade aumentou de modo aterrorizante, seguindo os pesados ventos da extrema direita no país. Esse é o fato público a ser investigado. É preciso parar a máquina da morte que a Coalizão Negra por Direitos acertadamente classifica como genocídio negro.

A Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro, no entanto, acredita que o problema se resolve de outra maneira: investigando os jornalistas que denunciam a matança.

João Pedro Mattos tinha 14 anos quando foi assassinado, em maio do ano passado, durante uma operação da Coordenadoria de Recursos Especiais, a Core. Policiais atiraram em uma área residencial de dentro de um helicóptero, ação extrema e ineficaz, que já havia sido proibida, em 2018, pela Secretaria de Segurança.

Quando pousaram a aeronave, os policiais crivaram de tiros uma casa. O imóvel estava cheio de crianças, que brincavam – os policiais mentiram sobre os disparos em um primeiro depoimento, negando a autoria. As crianças gritaram de terror. Baleado, João Pedro foi carregado nos braços por outro adolescente e levado até o helicóptero da polícia, onde embarcou. O menino, negro, sumiu.

A família rodou todos os hospitais da região atrás do filho, descobrindo somente no dia seguinte que peritos do IML os aguardavam para o reconhecimento de corpo. João Pedro estava morto. Denise Roz, tia, disse: “Meu sobrinho era um menino negro. Não é porque é negro que ele é bandido. Meu sobrinho não vai passar por bandido pra ninguém, pra corrigir erro de policial nenhum.” O inquérito que realmente importa, aquele que deveria revelar os assassinos, segue sem conclusão.

Não é o único caso de morticínio em favelas envolvendo a Core. Como Demori escreveu no artigo, apurado com fontes e que incomodou a Delegacia de Repressão de Crimes de Informática, que o investiga por calúnia contra a Core, “a história cresce quando juntamos outros fatos [para além da chacina do Jacarezinho, com 18 mortos]: a “facção” [da Core] está envolvida no caso João Pedro (menino de 14 anos, morto durante uma operação), na chacina do Salgueiro (oito mortos) e no caso do helicóptero da Maré (oito mortos). São 41 homicídios somente nesses casos. Quantos mais?”

E cobra providências, papel vital do jornalismo em todo o mundo: “É preciso que se investiguem as circunstâncias e os responsáveis dessas operações assassinas.”

O estado policial que vem erodindo a democracia no Brasil não parece interessado em investigar policiais. Em vez disso, prefere perseguir jornalistas. Ameaças como essa não nos intimidam. Apesar dos esforços de alguns, ainda vivemos em uma democracia. E nossa Constituição garante a liberdade de imprensa e protege o sigilo de fonte. Continuaremos a fazer nosso jornalismo independente e corajoso, sempre buscando revelar o que aqueles que detêm o poder preferem esconder. Há quem não goste.

 

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fonte: https://theintercept.com/2021/06/10/por-que-o-intercept-decidiu-que-leandro-demori-nao-vai-se-submeter-ao-depoimento-policial-contra-nosso-jornalismo/

O PODER DAS MILÍCIAS NO BRASIL: do Rio a Brasília


Eu quero o fim do delegado de polícia

Não acabou, tem que acabar! Cargo é herança do Brasil imperial, quando autoridade jurídica e policial se misturavam. Divide corporação em castas; nos inquéritos, viola direito ao contraditório e a ampla defesa — alicerçando as injustiças

Motivos não faltam para que a esquerda brasileira faça inúmeras críticas às Polícias Militares do país. As cenas de violência policial, agora em maior quantidade nos programas jornalísticos porque gravadas pelos cidadãos, geralmente são protagonizadas pelos policiais fardados, sendo natural que a maior parte do repúdio popular recaia sobre as PMs. As esquerdas, sejam elas partidárias ou de movimentos sociais, porém, não podem cair no erro de focar suas acusações apenas nos militares. Por trás da violência da farda, há um sistema de segurança pública ainda mais complexo que deve ser compreendido.

No Brasil, este sistema é fragmentado pelo chamado ciclo fracionado de policiamento. No âmbito estadual, que possui as maiores competências da segurança, possuímos duas polícias: a militar, responsável pelo policiamento preventivo de caráter ostensivo e pela manutenção da ordem, e a civil, responsável pela polícia judiciária, ou seja, a que investiga e dá as condições para que um crime vire um processo penal. Assim, o ciclo do trabalho policial brasileiro é fracionado em duas instituições diferentes, podendo-se dizer que nossos estados têm, na verdade, duas meias-polícias, que realizam apenas metade da atividade de policiamento cada uma.

Este é um modelo que difere da maior parte do mundo, principalmente dos países desenvolvidos, onde as instituições policiais, ainda que múltiplas, realizam o ciclo completo. Mesmo na França, por exemplo, onde há a militarizada Gendarmerie e a Polícia Nacional de caráter civil, a divisão entre estas é feita por critérios territoriais, e não por atividade, ficando a gendarmaria mais restrita a pequenas cidades rurais e regiões de fronteira. O mesmo acontece em Portugal, com a militar GNR e a civil PSP. Todas estas, ao contrário das brasileiras, são polícias de ciclo completo.

Ineficaz e marcado por rivalidades, este sistema fracionado brasileiro tem raízes históricas e pode ser explicado pela presença de duas figuras que sofreram pouquíssimas alterações no desenvolvimento do nosso Estado: o Delegado de Polícia e o inquérito policial. E se a história da Polícia Militar remete a tempos autoritários em que o controle social sobre os escravos e os mais pobres ditava os objetivos das instituições, a história destas duas figuras que estruturam a Polícia Civil não é muito diferente.

Assim como as PMs, a origem das Polícias Civis também remonta aos tempos do Império, principalmente ao conturbado período Regencial, recheado de revoltas abolicionistas, republicanas e separatistas, além das rotineiras insurgências de escravos. É nesse contexto que o Código de Processo Criminal de 1832 estruturou um sistema centrado nos Juízes de Paz, que acumulavam, de certa forma, funções policiais e judiciárias, trabalhando desde a prisão até a formação de culpa dos acusados, com o auxílio de escrivães, oficiais de justiça e inspetores de quarteirões. A confusão entre Judiciário e policiamento era tanta que o próprio Chefe de Polícia deveria ser um Juiz de Direito.

Em 1841, uma grande reforma seria, para muitos, o marco da origem das Polícias Civis do país, recriando o cargo de Delegado, encarregado das funções dos Juízes de Paz e de outras como a vigilância e a manutenção da tranquilidade pública. Para se ter uma ideia do impacto histórico desta reforma, Polícias Civis como a paulista ou a gaúcha a comemoram como seus próprios nascimentos. Simbólico da centralidade que a figura do Delegado exerce nestas instituições.

Estes Delegados, ainda misturando funções judiciárias e policiais, teriam em suas mãos um instrumento com alta capacidade de controle social que, por mais de um século, marcou a história do Brasil: os chamados “termos”. O “termo de bem viver” e o “termo de segurança” tinham a capacidade de qualificar pessoas criminalmente sem qualquer tipo de julgamento, fixando penas, de forma sumária, contra pessoas em situação de “vadiagem” (desempregados e sem domicílio fixo), bêbados ou prostitutas.

Como um “superjuiz”, capaz de prender pessoas em atividades de policiamento e julgá-las, o trabalho dos Delegados, desde os primórdios, era marcado pela inquisitorialidade, ou seja, pela falta de oportunidades de defesa aos que eram acusados. Some-se a isso um Código Criminal de 1830 que, apesar de praticamente ter abolido a pena de morte, a manteve aos crimes ligados à insurreição de escravos, além de apresentar uma série de outros tipos penais que poderiam ser usados como forma de censura a opositores do Império. Ao lado dos Corpos Permanentes militarizados recém-formados, igualmente, os Delegados teriam para si todos os instrumentos necessários para uma política policial de controle social.

Outra reforma, em 1871, porém, poderia ter iniciado um novo rumo para a Polícia Civil em formação. Nesta, finalmente as atividades judiciárias e policiais seriam separadas, retirando dos delegados as funções jurisdicionais e a capacidade de formar culpa aos acusados, limitando-os ao preparo dos processos dos crimes por meio do inquérito policial. Ainda assim, este inquérito, por sua vez, acabou representando uma peça essencial para a futura formação de culpa, ocupando-se de diligências e coletas de indícios que virariam provas nos processos judiciais.

Problemático, já que o próprio inquérito conservaria uma das principais características das atividades do Delegado de Polícia: a inquisitorialidade. Ou seja, apesar da reforma visar a separação entre as funções julgadora e policial, as atividades dos delegados continuaram possuindo papel essencial, ainda que inicial, na formação de culpa dos acusados e sem precisar respeitar a ampla defesa e o contraditório. Anos se passariam, as polícias, tanto as militarizadas quanto as civis, seriam amplamente usadas de forma política, como mecanismos de controle social sobre os mais pobres e os trabalhadores organizados, em regimes como o da Velha República, da Era Vargas ou da Ditadura Militar, e estas características pouco se alterariam.

O inquérito, por exemplo, é basicamente regido pelo Código de Processo Penal atual, vigente desde 1941, o qual manteve a inquisitorialidade como essência desta peça. Mesmo legislações mais novas mantêm estes traços imperiais, como a Lei 12.830 de 2013, que determina que as atividades do Delegado de Polícia são de natureza jurídica, devendo ser restritas a bacharéis de direito, ao mesmo tempo que lhe concede a qualidade de autoridade policial.

Esta dubiedade dos Delegados e, por consequência, do inquérito policial gera algumas perguntas: a carreira de Delegado é policial ou jurídica? O inquérito é um procedimento meramente administrativo ou ainda tem características jurisdicionais? Questionamentos que parecem pequenos, mas escondem um grande conflito democrático.

Afinal, se a carreira de Delegado for essencialmente jurídica, conservando traços imperiais de quando este cargo se confundia com o de juiz, não faz sentido que ela possa ignorar dois dos mais fundamentais princípios jurídicos: o contraditório e a ampla defesa. Da mesma forma o inquérito que, se considerado jurisdicional, deveria se submeter a estes dois preceitos. E alguém duvida do impacto que os inquéritos têm na fase processual de um julgamento? Sobretudo em um país como o Brasil, onde a palavra dos policiais tem sido sistematicamente usada para fundamentar condenações. Pautado pela inquisitorialidade, o Delegado de inquérito nas mãos pode ser tão ou mais antidemocrático do que a anomalia de uma polícia militarizada.

Mas esta falta de democracia não se manifesta só nas relações da Polícia Civil com os cidadãos. A figura do Delegado causa reflexos autoritários dentro da própria corporação. Afinal, a exemplo da Polícia Militar, dividida entre oficiais e praças, a Civil também acaba fracionada em duas castas: a superior, dos Delegados, e a inferior, das demais carreiras como a de investigadores, agentes ou escrivães.

Também de forma semelhante aos militares, as Polícias Civis são estruturadas por regimentos recheados de normas que permitem todo tipo de arbitrariedade da casta superior contra seus subalternos. A Lei Orgânica da Polícia Civil de São Paulo, por exemplo, chega a caracterizar como transgressão o descuido da aparência física e permite a remoção de policiais das demais classes para outras localidades de forma pouco justificada. Falar na extinção da carreira de Delegado através da imposição da carreira única dentro da Polícia Civil, portanto, é também falar na própria democratização interna da instituição.

Assim, não faltam motivos para que as críticas da esquerda, quando o assunto for segurança pública, não foquem apenas na estrutura militarizada da PM. A desmilitarização, logicamente, é a bandeira central da reforma que precisamos para este sistema, porém, não pode ser levantada de maneira isolada. Precisamos também combater as arbitrariedades dos inquéritos policiais e questionar a própria necessidade de existir um cargo dúbio como o de Delegado de Polícia.

O “esculacho” de um soldado da PM nas periferias das cidades é apenas a ponta de lança de um amplo, complexo e arcaico sistema de segurança pública. O Delegado de Polícia, aliás, poderia ser o primeiro no combate a este tipo de atitude, já que é ele quem diariamente recebe presos espancados por policiais em seu expediente. Mas não é o que se vê na realidade brasileira. No nosso dia a dia, por trás de toda violência de um soldado da PM, existe a leniente caneta de um Delegado de Polícia. Este sistema precisa acabar.

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