Entrevista: como o cristianismo fundamenta e orienta a direita global

Em livro recém-publicado, vaticanista Iacopo Scaramuzzi mostra como a religião católica fundamenta e orienta a direita global
 

DE ROMA A WASHINGTON, de Moscou a Paris, de Budapeste a Brasília, a geografia política e religiosa da extrema direita que ascendeu nos últimos anos contém um particular denominador comum: a instrumentalização do cristianismo como estratégia política.

O sacro tornou-se um meio para marcar território, distinguir inimigos e – quem sabe – erradicar a diversidade, seja ela representada por gays, muçulmanos, imigrantes ou qualquer outra “modernidade” que ameace a tríade “Deus, pátria e família”.

Do ex-capitão do Exército defensor da tortura e de milicianos ao ex-araponga Vladimir Putin, o todo-poderoso da Rússia que também abraçou a Igreja Ortodoxa de seu país, da jovem Marion Marechal-Le Pen na França, integrante da terceira geração de uma família ultraconservadora que está numa cruzada contra os muçulmanos, aos espanhóis do Vox, a extrema direita global desfruta dos símbolos e supostos valores do cristianismo. 

Trata-se de um caso de marketing político (particularmente bem-sucedido em alguns ambientes) que encontrou ressonância também em pensadores, instituições, cardeais e bispos no interior da Igreja Católica insatisfeitos com o pontificado do papa Francisco. O argentino acabou se transformando num inimigo comum para todos eles, sejam políticos ou religiosos.

A eleição de Donald Trump em 2016, com o entusiasmado apoio que o republicano recebeu – e ainda recebe – de católicos tradicionalistas e demais grupos conservadores, serviu como ponto de partida para a consolidação do que muitos estudiosos classificam de “nacional-catolicismo”.

O fenômeno opera atualmente numa rede global e é um dos pilares de projetos como o de Viktor Orbán e sua democracia cristã iliberal na Hungria, do recém-reeleito Andrzej Duda e sua tradição sacra na Polônia, de Matteo Salvini, que tentou se tornar homem forte do governo da Itália  brandindo rosários e falando em nome de Maria, além de ter pavimentado a vitória de Jair Bolsonaro e seu “Deus acima de todos”.

“Eles dizem defender o cristianismo, mas o transformam, infelizmente, em uma ideologia petrificada, num esqueleto, num monumento aos caídos”, escreve o vaticanista Iacopo Scaramuzzi,  autor de um pequeno mas informativo livro recém-publicado na Itália em que destrincha como o cristianismo virou uma peça importante na radicalização política da extrema direita.

Intitulada “Dio? In fondo a destra – Perché i populismi sfruttano il cristianesimo” (em tradução literal, Deus? No fundo à direita – Porque os populismos desfrutam do cristianismo), a obra estampa na capa quatro dos principais expoentes desse fenômeno: Salvini, Trump, Bolsonaro e Putin. Jornalista da agência italiana Askanews, Scaramuzzi acompanha o cotidiano do Vaticano em Roma desde 2006.

Lucas FerrazFoto: Arquivo pessoal/Lucas Ferraz

No meio da tempestade que agita o mundo, o cristianismo é explorado como uma “estrutura sólida”, um “outro país protegido”, lugar de paz e prosperidade para a “família tradicional” – a dos que os brasileiros conhecem como “homens de bem”. Não importa se, na prática, a política implementada seja notadamente marcada pela ausência de valores cristãos.

Como escreve Scaramuzzi, a exploração visa louvar um passado supostamente glorioso, além de ter um forte apelo a todos aqueles perdidos com as crises econômica, política, cultural, da globalização etc. A estratégia é mais ou menos simples e fácil de ser compreendida pelo eleitorado. O objetivo também é pueril: criar um sentido comum e respeitabilidade, conta o autor.

No capítulo dedicado ao Brasil, o título dado por Scaramuzzi é um sucinto resumo do país de Bolsonaro: “Aliança entre militares, neoliberais e pentecostais”. Ele ressalta que o presidente brasileiro (católico) tem vários referentes religiosos, além dos pastores evangélicos, entre eles católicos tradicionalistas como o youtuber Bernardo Küster, e que frequentemente faz uso político do cristianismo quando transmite ao eleitorado a necessidade de um sacrifício, “quase um martírio”, para se afastar do mal.

Isso vale para defender reformas econômicas de cunho neoliberal, para falar da facada que quase o matou na campanha eleitoral ou ainda sobre a necessidade de promover uma guerra cultural contra os valores considerados de “esquerda” para proteger a família.

A formação de um “povo puro” a partir da instrumentalização do cristianismo, mostra o autor, encontra ferrenha oposição no atual chefe do Vaticano, que já declarou que mensagens revestidas de ódio e certas políticas como as que preveem muros contra imigrantes nada têm de cristãs. O desencontro entre essas correntes tem sido uma das marcas do papado de Jorge Mario Bergoglio.  “Não é surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa Francisco”, me disse Scaramuzzi num bar do centro de Roma.

Leia, a seguir, a entrevista com o pesquisador.

Acostumado a acompanhar o Vaticano, autor diz extrema direita se apropriou de símbolos e reduziu a religião a elementos identitários – e parte da Igreja se identifica com ela.

The Intercept Brasil – O seu livro mostra métodos semelhantes da extrema direita em diversos países para explorar politicamente o cristianismo, muitas vezes para criar uma imagem de respeito ou mesmo para seduzir o eleitorado. É só uma estratégia eleitoral ou estamos diante de um retorno do fundamentalismo religioso à política?  

Iacopo Scaramuzzi – Não estamos na fase do retorno do sacro, mas sim na fase da nostalgia. O que é muito diferente. É mais a recordação romantizada de um passado que não existe mais e que talvez nunca tenha existido. É um pequeno retrato de um mundo antigo. Esse ideal de mundo, com uma família tradicional formada por homem e mulher, é idealizado. Parece o mundo de uma peça publicitária, todo mundo loiro e feliz.

Sempre houve um cruzamento entre religião e política, seja no cristianismo, no judaísmo, no islã, no hinduísmo. O que surpreende nesses últimos anos é a forma como a religião católica vem sendo instrumentalizada. Ela é usada como um objeto, de forma completamente superficial. Reduzida a um elemento identitário. Católicos conservadores ou progressistas sempre existiram, isso faz parte da história e não é novo. Mas, em poucos anos, essa estratégia virou algo comum para a direita populista em muitos países.

Todas as religiões estão um pouco atravessadas pela questão da secularização [processo no qual a religião perde influência sobre as diversas esferas da vida social] e são reutilizadas de forma nostálgica e instrumentalizada, seja por parte do populista de direita europeu ou do jovem jihadista que não tem ideia nenhuma do que é o islã e depois se dá conta de que aquela é a sua identidade e se casa com ela. Não se trata de radicalização do islã, mas da islamização do radicalismo. Agora acontece algo semelhante com o catolicismo. Qualquer um pega um pedaço que lhe é mais cômodo e utiliza. Contradizem uma história etnográfica, teológica, doutrinária, mas isso não é importante para esses líderes.

Você descreve estratégias de radicalização a partir do cristianismo que acabaram adaptadas às realidades de cada país. Não há um coordenador por trás disso? 

As semelhanças entre os países são muitas. Utilizam palavras de ordem e referências que demonstram uma certa coordenação. A ideia de fazer o livro surgiu após eu escrever sobre a coincidência de vários políticos se referirem à Nossa Senhora de Fátima. Salvini usa a santa para defender a eleição de seus aliados. Mais ou menos no mesmo dia [de maio de 2019], Bolsonaro participou de uma cerimônia em Brasília com um grupo de parlamentares católicos ao lado de Nossa Senhora de Fátima. Depois Viktor Orbán e seu chefe de gabinete falam de Fátima. Então logo você entende que isso não é casual. Há uma coordenação. Há toda uma história sobre Nossa Senhora de Fátima, que funcionou como um ímã de toda a mitologia política anticomunista do século passado. A imagem dela foi bastante utilizada politicamente, sobretudo por Salazar [António de Oliveira Salazar, ditador português], que citava frequentemente os três “Fs”, futebol, fado e Fátima.

A religião católica é usada como objeto. Reduzida a um elemento identitário.

A conclusão que cheguei é que há uma coordenação entre um grupo de ideólogos, que se encontram em eventos, em Roma, onde ocorreu um em fevereiro, em Budapeste, onde houve um encontro dos cristãos perseguidos. Eles se conhecem, trocam informações. O filho de Bolsonaro [o deputado federal Eduardo Bolsonaro] encontra Salvini, Orbán se encontra com o chefe de gabinete de Trump. Há uma rede. Esses políticos têm estrategistas que elaboraram as ideias. Acho errado reduzir tudo a um grande arquiteto, uma pessoa que está por trás de tudo. É quase uma teoria da conspiração que agrada tanto a esses populistas de direita.

Quando exatamente começa esse exploração do cristianismo? 

Simplificando, começa com a crise da globalização, a crise econômica de 2008. Esse coordenação será compreendida ao longo dos anos. Depois, em 2015, vem a crise da imigração na Europa. É um processo longo e complexo.  Se olharmos para políticos como Salvini, Putin e Bolsonaro, vamos ver que a conversão deles acontece de maneira muito rápida. Eles tomam esse caminho de forma muito superficial. Por exemplo, Salvini, na Itália, não tem nenhum background católico. Nunca foi interessado em religião, não vai à missa. Salvini usa com frequência um rosário, que ele nunca rezou. Não são políticos interessados nos ensinamentos da igreja, muito menos em temas como o acolhimento aos imigrantes, tão caro ao papa. Trata-se de uma evolução muito diferente da agenda teocon conservadora que esteve em moda durante o governo de George W. Bush nos EUA e de [Silvio] Berlusconi na Itália.

Agora, são mensagens dirigidas a um eleitorado perdido, seja por causa da secularização, de uma sociedade multicultural, com uma mistura de pessoas de diferentes etnias e religiões, onde o percentual de católicos é cada vez menor. De frente a essa mudança de panorama sócio-etno-religiosa, há um pedaço da sociedade, na Itália e também em outros países, que reconhece nesses símbolos religiosos da extrema direita qualquer coisa de confortável. Os ideólogos entenderam que esse é um caminho a ser explorado. O cristianismo é uma linguagem que mais ou menos todos entendem, há uma referência cultural, traz um senso de identidade, mesmo se a maioria do eleitorado não frequenta a igreja. O referimento tem pouco a ver com a fé cristã, funciona mais como marcador identitário. Isso se tornou forte nos últimos anos e tenho a convicção de que vai aumentar com a pandemia.

Brazilian President Jair Bolsonaro raises an image of Jesus Christ during a gathering with Catholic and anti-abortion supporters in front of Planalto Palace in Brasilia on April 18, 2020 amid the coronavirus COVID-19 pandemic. - Brazilian President Jair Bolsonaro on Friday defended his decision to restart economic activity in the middle of the coronavirus pandemic, after sacking his health minister over differences in how to tackle the disease. (Photo by Sergio LIMA / AFP) (Photo by SERGIO LIMA/AFP via Getty Images)

Jair Bolsonaro com uma imagem de Jesus Cristo entre apoiadores católicos e anti-aborto na frente do Palácio do Planalto, em abril deste ano. Foto: Sergio Lima/AFP via Getty Images

 

Não há um grande arquiteto por trás desse uso político do cristianismo, como você diz, mas ao menos há um alvo claro, que é o papa. 

Isso é muito interessante. Roma, que para muitos era uma cidade em declínio, voltou a ser um centro importante e de atração nesse cenário. Isso explica porque Steve Bannon queria criar um centro de estudos para novos populistas ao lado de Roma. Aleksandr Dugin, que não é o ideólogo de Putin, mas uma pessoa muito importante no seu círculo, vem a Roma expor suas ideias no prédio do Casa Pound [movimento e partido politico italiano neofascista, que se autointitula fascistas do terceiro milênio].

Há um pedaço da sociedade que reconhece nesses símbolos religiosos da extrema direita qualquer coisa de confortável.

Orbán e Marechal-Le Pen vêm a Roma para falar de João Paulo II e de sua aliança com [o ex-presidente e ícone conservador americano Ronald] Reagan contra o comunismo. Duda, o presidente polonês recém-eleito, disse que sua primeira viagem, quando a covid-19 permitir, será a Roma, por causa do centenário de João Paulo II [comemorado em 2020]. Roma, como capital do cristianismo, voltou a ter importância.

O renascimento desse nacionalismo que abraça o cristianismo como uma de suas bases de sustentação acontece exatamente no momento em que há no Vaticano um papa que vai para outra direção. Um papa que, com todos os seus limites, abriu a Igreja para o mundo. No mesmo momento em que esses movimentos se fecham em seus países, usando um cristianismo que o próprio Francisco diz não ser cristianismo. Cria-se um conflito mundial em que Roma se torna um ponto de atração, um alvo e também um ponto de observação privilegiado.

Francisco já fez várias críticas aos populismos da direita, inclusive citando recentemente que as declarações de ódio de alguns políticos o fazem lembrar dos anos 1930 (quando houve a ascensão de Hitler e do nazismo). 

Esse papa criou condições para um movimento que representa uma contradição na história recente da Igreja Católica. Mesmo que não seja um revolucionário, Bergoglio é um reformista que mudou algumas coisas. Ele fala coisas diversas não só dos católicos conservadores, mas também dos seus dois antecessores e do mainstream católico. Ele se liga ao Concílio Vaticano II [realizado na primeira metade dos anos 1960 com o objetivo de modernizar a Igreja Católica, entre outras coisas tornando-a mais próxima dos pobres]. Nos últimos trinta anos o catolicismo conservador foi majoritário e encontrou referências em papas como João Paulo II e Bento XVI, pontífices que deixaram de lado os pontos do concílio e que fizeram alianças conservadoras.

Enquanto esse papa abria a igreja, em poucos anos houve a eleição de Trump, Mauricio Macri, Bolsonaro, a reeleição de Orbán, de Erdogan. O mundo foi para a direita de uma forma muito rápida e impressionante, e o papa, que não pode ser considerado de esquerda, mas diz muitas coisas de esquerda, claramente mudou a dinâmica de seu pontificado. Essa mudança aconteceu significativamente após a eleição de Trump. A oposição a ele cresceu rapidamente depois daquela eleição. Os opositores ficaram mais orgulhosos. Começaram as dúvidas doutrinárias, os manifestos de cardeais opositores e um deles fez até um pedido de demissão de Bergoglio.

O que esses grupos católicos conservadores, cardeais e outros líderes religiosos ganham com essa aliança com políticos da extrema direita? 

A história que vemos hoje é uma mutação daquele conservadorismo católico dos últimos 30 anos. Políticos como Trump, Salvini, Bolsonaro, Orbán são uma evolução em relação a Bush, Berlusconi e outros dos anos 2000. São muito mais radicais, mais nacionalistas, mais anti-União Europeia, muito mais protecionistas. Eles vêm daquela história, quando a política também tinha uma aliança com a Igreja Católica. Então não é surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa Francisco.

Não é surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa Francisco.

Uma parte dos católicos está muito perdida e cansada do mundo de Francisco, que fala de pobreza, de ambientalismo, de crise do capitalismo, então isso causou uma fratura. Muitos desses líderes, como Bannon e Salvini, colocaram na cabeça que se deve fazer uma oposição a Francisco, uma oposição eclesial. Muitas vezes financiando-a, mas também mantendo contatos com cardeais contrários.

Há um incômodo e uma preocupação no confronto com o papa, estamos numa época histórica de desencontros e os líderes religiosos também se radicalizaram. E estão ali a testemunhar, do seu ponto de vista, o que é o catolicismo. Também há uma divisão interna entre os opositores sobre como enfrentar o papa.

DUBLIN, IRELAND - AUGUST 26:  Pope Francis arrives as people gather for the Closing Mass in Phoenix Park on August 26, 2018 in Dublin, Ireland. A congregation of approximately 500,000 people have gathered in Phoenix Park for the Closing Mass of the visit of Pope Francis to Ireland, centred on the Papal Cross in Phoenix Park, which was the site of the historic 1979 Papal Mass. Pope Francis is the 266th Catholic Pope and current sovereign of the Vatican. His visit, the first by a Pope since John Paul II's in 1979, is expected to attract hundreds of thousands of Catholics to a series of events in Dublin and Knock. During his visit he will have private meetings with victims of sexual abuse by Catholic clergy. (Photo by Matt Cardy/Getty Images)

Papa Francisco incomoda com seu discurso pelos pobres e pró meio ambiente. Mas, ao mesmo tempo, precisa garantir a unidade da Igreja. Foto: Matt Cardy/Getty Images

 

O papa Francisco se move bem nessa história? Ele já fez críticas aos populistas da direita, mas muitas vezes parece tomar distância e não é muito incisivo, sobretudo em relação a líderes como Bolsonaro e Trump.

É verdade, mas acho que ele foi mais direto em relação a Bolsonaro. Ele escreveu uma carta para Lula [quando o ex-presidente estava preso], depois o recebeu em Roma. Enviou recentemente respiradores para o Brasil, dizendo ao núncio apostólico que no país havia um grande problema com o coronavírus. Ele falou certa vez numa homilia sobre como se faz um golpe, com acosso judicial, que depois é explorado pela mídia. Faltava só dizer nome e sobrenome, mas era claro para todo mundo que ele se referia à situação vivida por Dilma Rousseff.

Acho que há pelo menos duas razões para explicar isso. Primeiro, o seu papel. Ele fala de maneira bastante direta, mas enquanto papa, não pode promover uma guerra do Vaticano contra Estados Unidos ou Brasil. Depois, ele é uma autoridade espiritual, não política. O papa dá indicação de fundo moral, mas o Vaticano já aceitou a diferença entre Igreja e estado faz tempo. A Igreja não vai entrar em questões político-partidárias, esse é um ponto saudável da separação entre estado e Igreja.

E acho que existe também uma decisão de salvar a unidade da Igreja. Ele inclusive diminuiu um pouco a velocidade das reformas que estava promovendo para preservar essa unidade. Francisco entendeu que dentro e fora há o risco de uma ruptura, um cisma, pequeno ou grande, mas existe o risco. E um dos papéis do papa é preservar a unidade da Igreja. Bolsonaro, Trump ou Putin são referências para uma parte de cardeais, monsenhores e bispos, e também para uma parcela dos fiéis, que vê a modernidade como um incômodo e critica os imigrantes. O papa vai para outro lado, mas não pode ignorar um pedaço do mundo católico.

Uma eventual derrota de Trump neste anos é esperada como portadora de novos ares, principalmente no Brasil. Se isso ocorrer, mudará também a dinâmica no Vaticano? 

Sim, mudaria o mundo e também o Vaticano. Há quatro anos, esse papa parecia realmente sozinho. Ele iniciou o pontificado com grande apoio popular, depois começam as eleições que praticamente deixaram Bergoglio sozinho ao falar sobre China, islã, imigrantes etc. Mas alguma coisa aconteceu nos últimos anos. O jornal Financial Times, ainda antes do coronavírus, falava da crise do capitalismo, da desigualdade. Quando o papa escreveu a Laudato Sì [encíclica ecológica divulgada em 2015], ele era uma pessoa bastante isolada nessa questão ambiental. Agora tem a Greta Thunberg, goste-se ou não dela. O coronavírus criou, em quem quer entender, uma consciência sobre a relação com o meio ambiente, o tempo, o consumo. Nos últimos anos, Francisco passou a estar menos isolado. Esse papa sabe muito de política, de política externa, e ele levou seu papado para fora da Europa. Mas houve uma coincidência com a chegada de todas essas questões da extrema direita a Roma.

CORREÇÃO: 27 de julho de 2020, 11h55
Para maior precisão, o título foi alterado para substituir “Igreja Católica” por “cristianismo”, termo que abrange outras correntes também mencionadas pelo entrevistado.

 

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Lucas Ferrazlucasffa@​gmail.com@lucasf

fonte: https://theintercept.com/2020/07/27/entrevista-direita-populista-usa-cristianismo-para-criar-sentido-comum-e-respeitabilidade/


Como Datena e os programas pinga-sangue ensinaram os evangélicos fundamentalistas a odiar

Os programas sensacionalistas educaram o brasileiro no ódio ao bandido e parecem ter alcançado de forma particular o coração dos fundamentalistas.

 

Foto: Suamy Beydoun/AGIF via AP

É UMA LUTA que provavelmente as gerações mais jovens não conhecem. A guerra da televisão. Nos tempos de TV CRT de 30 quilos, anos 1990, era comum ter uma só em casa. Então, um controle-remoto dava um poder desproporcional a quem dele se apossava.

Na minha casa, quem detinha o poder era o pastor. Meu avô. Como um toque de recolher, minha liberdade de escolher o que ver na TV terminava todo dia às 4h da tarde. Era quando começava a maratona de programas favoritos dele. O primeiro era Carlos Alborghetti, o furioso apresentador que virou um meme. Depois o “Aqui Agora”, um ambicioso e bem financiado projeto de jornalismo sensacionalista, que duraria até 1997. Terminava com o Telejornal Brasil, de Boris Casoy. O primeiro de uma afiliada da TV Gazeta em Curitiba, os demais, por uma do SBT de Sílvio Santos. No total, a tirania do pastor sobre a TV durava cinco horas.

 

Talvez o velho estivesse se esbaldando com um novo vício. Ser pastor da Assembleia de Deus era guiar uma igreja na qual o consenso era que crente nem sequer devia ter TV em casa. Não chegava a ser proibido, mas passava a impressão que o dono da TV não tinha compromisso com o modo de vida cristão e permitia às tentações do mundo entrarem em casa pela antena. E, dentro do espaço possível na Assembleia na década de 90, meu avô era até moderno: não tinha nada contra calças para mulher ou cortar o cabelo. Dizia que essas coisas eram só costumes, não doutrina (isto é, são coisas não bíblicas, só hábitos da igreja). Mas TV mesmo, ele só foi ter depois de aposentado.

Mas quando teve uma, esbaldava-se em programas pinga-sangue. Hoje ou 30 anos atrás, quem viu a cobertura jornalística de um programa pinga-sangue, viu todas. “Travesti injeta silicone industrial e pede ajuda para não morrer” – apresentador chama de imbecil, mas ajuda. “Esposa queima marido com álcool”. “Marido esfaqueia esposa e joga no riacho”. Alguém faz sexo com animais. Crimes menos espetaculares. Gente pobre. Sempre o bandido tentando esconder a cara da câmera, o policial forçando. Alguns vítimas terminando tão humilhadas como seus abusadores.

Crias da ditadurajacinto-rodrigues

Jacinto Figueira Júnior, ‘O Homem do Sapato Branco’, foi um dos pioneiros no show de miséria nos anos 80.

 

Foto: Reprodução/Youtube – SBT

Sempre odiei esses programas, mas até pouco tempo atrás nunca havia pensado na ideologia que eles transmitem. Quando eu vi o documentário “Bandidos na TV”, na Netflix, me deu o estalo. Programas pinga-sangue estão entre os maiores eleitores de Bolsonaro: eles influenciaram os crentes a odiar não só o pecado, mas o pecador.

O pinga-sangue educou o brasileiro no ódio ao “bandido” – ódio também ao “amigo do bandido” e seus “direitos humanos”. Por diversas razões, parece ter falado de forma particular ao coração dos fundamentalistas, ajudando-os a desabrochar nas figuras agressivamente políticas do presente.

Um pouco de história: programas pinga-sangue têm origem nos tempos da ditadura. “Um dos pioneiros nesta linha foi Jacinto Figueira Júnior, que estreou, em 1966, o programa ‘O Homem do Sapato Branco e permaneceu no ar com seu show de misérias por vários anos”, escreveu o filósofo e teólogo padre Jaime Carlos Patias, em “O telejornal sensacionalista, a violência e o sagrado”. “Seu programa foi veiculado pela Bandeirantes, Globo, SBT e até mesmo pela TV Cultura, emissora teoricamente mais preocupada com o padrão de qualidade da sua programação.”

Jacinto começou na TV e depois foi também para o rádio. Várias outras figuras pioneiras, como Gil Gomes, Afanásio Jazadji e Carlos Alborghetti, começaram como radialistas de noticiário policial antes do fim do regime. Em 1968, Gil Gomes descobriu que um crime sexual havia ocorrido no mesmo prédio de sua rádio e resolveu, pela primeira vez, cobrir ao vivo, andando com o microfone, inaugurando seu estilo dramático.

Nessa época, a ditadura e os sensacionalistas estavam mais ou menos em lados opostos. Jacinto, eleito em 1966 deputado estadual em SP pelo MDB, a oposição permitida pela ditadura, perdeu o mandato (por “atentado contra a moral e bons costumes”), em 1969, após o AI-5, e foi tirado do ar até 1979. Gil Gomes relatou que foi preso 30 vezes no período.

‘Sempre odiei esses programas, mas até pouco tempo atrás nunca havia pensado na ideologia que eles transmitem’.

A era de ouro do sensacionalismo viria na democracia. No momento em que a censura foi banida, com a Constituição de 88. Foi uma época em que as TVs partiram para testar os limites. Fausto Silva falando palavrão no meio da tarde – parece difícil de acreditar hoje, mas babaca e pentelho já foram palavrões. No SBT, surgia um programa baseado em mostrar seios, “Cocktail”. A banheira do Gugu. Em 1991, o já citado noticiário pinga-sangue “Aqui Agora” (que o Sílvio Santos, aliás, pretende trazer de volta).

É um paradoxo. A ditadura não se entendia com o pinga-sangue, mas no final das contas o pinga-sangue acabou por abraçar, reproduzir e divulgar talvez a mais duradoura herança da guerra suja, do porão da ditadura. A cultura da brutalidade policial, da ilegalidade, do grupo de extermínio.

Isso porque, nesse ramo, de certa forma, o papel do jornalista não é só ser simpático ao policial. Ele se confunde com o próprio policial. Em entrevista ao Intercept, o jornalista Danilo Angrimani, autor de “Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa”, traz um exemplo antigo. “Essa ‘promiscuidade’ entre o repórter policial e a polícia não é nova. Lembro de Nelson Gatto, que prendeu, pessoalmente, um bandido e rendeu a manchete ‘Promessinha preso’, em letras garrafais no Última Hora, em 1958. Ou seja, ele não se limitava a informar. Ele mesmo ‘criava’ a notícia”.

Ritual na TV

Os dois estudiosos descrevem o papel do apresentador-sensacionalista como um agente da notícia. “O sensacionalismo opera em uma espécie de balança, atuando, às vezes, como transgressor e, em outros momentos, como ‘instrumento’ de punição”, afirma Angrimani. “O veículo sensacionalista, em alguns momentos, alardeia a quebra da ordem e, em outros, glorifica o restaurador da moralidade.”

O filósofo e teólogo Jaime Patias faz uma análise sob a ótica religiosa dos programas sensacionalistas. Com base no trabalho do filósofo francês René Girard, estabelece uma distinção entre violência sagrada e profana, suja e limpa, pecaminosa ou purificadora. Como funciona: as vítimas em um programa policial, lesadas pela violência profana, são resgatadas pela violência sagrada. “Quando um sistema ou instituição se coloca acima das demais instituições, ao combater a violência, o faz como violência purificadora”, afirma. “A sua atuação se dá numa dimensão religiosa, transcendental.”

Isto é a polícia, acima das leis, ocupando uma função sagrada, e o apresentador cumprindo um papel de sacerdote, numa espécie de ritual de expiação do pecado. “No apresentador [José Luiz] Datena, do Brasil Urgente, percebe-se traços característicos de mediador religioso que se pretende purificador ante a violência comum”, define.

Gil Gomes

O jornalista e radialista Gil Gomes do “Aqui e Agora”, levado ao ar pelo SBT.

 

Ari Vicentini/AGE via Estadão Conteúdo

E aqui retornamos ao meu avô. Patias defende que essa relação do espectador com o apresentador é uma substituta da religião. “De certa forma, a mídia é, ao mesmo tempo, produtora da notícia e detentora das grandes verdades e soluções. Dessa forma, ocupa o lugar que outrora foi de Deus, como a verdadeira religião a quem a pessoa recorre.”

Não consigo imaginar meu avô pastor realmente trocando Deus por Datena. Acredito que é algo que corre em paralelo. Uma espécie de sincretismo, digamos assim.

Quando a gente brigava pelo controle da TV, eu achava que o entusiasmo do meu avô por programas policialescos era mero mau gosto, falta de estudo – apesar de, por causa de sua profissão, o pastor ser o único na família a ter uma biblioteca não era decorativa.

Mas a relação era mais profunda. Bíblica. A TV sensacionalista traz uma visão do mundo externo que condiz com o que os evangélicos fundamentalistas pensam. É um mundo caído, em pecado, onde a falta de Jesus no coração leva a todo tipo de abominação, de desgraça, de vergonha. A violência profana da qual fala o professor Patias, que domina o mundo fora da igreja. Ou simplesmente “O Mundo”, como gostam de falar.

Basicamente tudo na vida de um crente fundamentalista se divide entre O Mundo e a Graça, a vida em pecado e em comunhão com Cristo. Coisas d’O Mundo são ruins: música, filmes, ciência que contradiz a Bíblia, bebida, drogas, sexo, tudo o que pode levar o crente a se perder. Um filme ou música profana são a porta de entrada do Diabo na vida de alguém. O objetivo da vida de um evangélico fundamentalista é viver ao máximo segregado d’O Mundo. Essa era a razão para os crentes antigos rejeitarem a televisão.

“O pastor, ao falar para seus fiéis, cita o Diabo como responsável por todas as transgressões”, afirma Danilo Angrimani. O crente precisa se afastar do Diabo, para não pecar mais, para não transgredir.” Os pinga-sangues mostram a vida profana, o mundo do Diabo, exatamente como os crentes o imaginam.

‘Os pinga-sangues mostram a vida profana, o mundo do Diabo, exatamente como os crentes o imaginam’.

Do lado oposto, eles já trazem uma visão que se parece com a do policial encarnado em anjo vingador por esses programas. Uma cultura de autoridade, de leis duras, de tradições pétreas e de guerra – uma guerra constante com o Mundo, o pecado, como é a “guerra” contra o crime do policial militar brasileiro. Uma cultura na qual o bandido está do lado do diabo, em que é basicamente um possesso. E uma cultura policialesca na qual aqueles que se opõem às ações da polícia são como pedras no caminho desse trabalho sagrado. Defender os direitos humanos dos encarcerados e dos alvos da polícia é estar do errado da guerra santa contra o crime. Os que fazem isso costumam ser os mesmos que defendem aborto, religiões afro e “gayzismo”. A esquerda, assim, passa a ter algo de satânico.

Em um programa de 2010, José Luiz Datena demonstrou, de forma transparente, essa relação. Atribuiu a execução de uma criança de dois anos à “ausência de Deus”, num nietzschianismo vulgar.

“Esse é o exemplo típico de um sujeito que não acredita em Deus. Matou um menino de dois anos de idade. Essa gente é quem mata, enterra pessoas vivas, quem estupra, quem violenta nossas mulheres. (…) É por isso que o mundo está essa porcaria, guerra, peste, fome e tudo mais. São os caras do mal. (…) Quem não acredita em Deus não tem limite. Quem não acredita em Deus não respeita limite porque se acha o próprio Deus”.

O insulto mobilizou os descrentes do Brasil. Datena acabou perdendo judicialmente contra a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, a Atea. Mas o resultado foi, segundo o presidente da entidade, “vinhetas bem aguadas e genéricas sobre tolerância religiosa”.

Da minha parte, na época, soou uma coisa óbvia a alguém como Datena dizer. Um insulto no topo de uma montanha. Datena – e pouco importa o que pense ou diga sobre Bolsonaro em si – representa uma faceta central desse bolsonarismo ancestral no qual eu fui criado.

Mas poderia ter sido diferente. Eu mesmo nunca imaginei que um dia haveria um presidente “deles”. Quem sabe os crentes fundamentalistas – e o Brasil – tivessem ficado melhor se continuassem sem televisão.

 

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Fábio Martonmarton.fabio@​gmail.com@FabioMarton

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