De volta ao infame Mapa da Fome

“Estudo do instituto de estudos latino-americanos na Alemanha aponta que em dezembro de 2020 a insegurança alimentar atingiu 59% dos domicílios brasileiros, sendo 15% em situação grave, a fome propriamente dita. Em 2013, 3,6% passavam fome”, escreve André Luiz Passos Santos, economista, mestre em História Econômica pela USP e doutorando no IE/UNICAMP, em artigo publicado por Brasil Debate, 14-04-2021.

Eis o artigo.

 

Pesquisa recentemente divulgada, realizada por um grupo multidisciplinar de pesquisadores brasileiros do núcleo Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality in a Bieconomy, do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Freie Universität Berlin (IELA-FUB), da Alemanha, em conjunto com pesquisadores da UFMG e da UnB [1], demonstra, através de entrevistas com cerca de 2.000 pessoas, realizadas no período de agosto a dezembro de 2020, que a insegurança alimentar se agravou de forma alarmante no Brasil.

A segurança alimentar é assim classificada pelo IBGE:

1. SEGURANÇA ALIMENTAR: Quando a família/domicílio tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais;

2. INSEGURANÇA ALIMENTAR LEVE: Quando há preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro; qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam a não comprometer a quantidade de alimentos;

3. INSEGURANÇA ALIMENTAR MODERADA: Quando há redução quantitativa de alimentos entre adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos;

4. INSEGURANÇA ALIMENTAR GRAVE: Redução quantitativa de alimentos também entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação resultantes da falta de alimentação entre todos os moradores, incluindo as crianças. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio.

A pesquisa destaca que a insegurança alimentar no Brasil, que alcançou seu nível mínimo histórico na PNAD 2013 (22,6% dos domicílios em situação de insegurança alimentar, de qualquer nível de gravidade), já havia crescido para 36,7% dos domicílios brasileiros, conforme constatado pela POF 2017/2018, bem antes, portanto, do início da pandemia.

Outros estudos vêm demonstrando que a situação da fome no país já se agravava mesmo desde antes de 2016, agravamento esse que se acentuou com a ascensão de Michel Temer e sua Ponte para o Futuro ao poder. O fim da política de valorização real do salário mínimo; a precarização do emprego em função da reforma trabalhista; o crescimento do desemprego; os cortes nas políticas de mitigação da fragilidade social e, por último, mas nem de longe menos importante, os cortes orçamentários impostos pelas políticas de austeridade fiscal, que atingem mais fortemente a parcela mais desfavorecida da população; agravaram a depressão econômica que já se manifestava desde fins de 2014, e da qual o país ainda não logrou sair, o que vem provocando o aumento de desigualdade e trazendo de volta a milhões de lares brasileiros o espectro da fome.

O Brasil havia deixado o infame Mapa da Fome das Nações Unidas em 2013, quando logrou alcançar o percentual de apenas 3,6% dos brasileiros em situação de insegurança alimentar grave – ou simplesmente fome. Uma conquista espetacular, que desafortunadamente foi menos celebrada pela mídia e pela sociedade do que uma façanha deste quilate mereceria. O IBGE confirmou que, em 2018, voltamos a ter 5% da população em estado de fome, índice que nos reinclui no rol dos desafortunados do mundo.

Desde que a FAO-ONU publica o Indicador de Prevalência de Subalimentação, há pouco mais de 50 anos, somente durante o curto período de 2013 a 2017 o país – ironicamente, um dos maiores produtores de alimentos do mundo – esteve fora daquela vergonhosa relação dos países com 5% ou mais de sua população padecendo de fome.

O estudo do IELAFUB aponta que, em dezembro de 2020, a insegurança alimentar atingiu 59,4% dos domicílios brasileiros. 31,7% estão em situação de insegurança alimentar leve, 12,7% moderada e aterradores 15% em situação de insegurança alimentar grave – a fome propriamente dita. Analisada a porcentagem de domicílios em situação de insegurança alimentar por região do país, vê-se que algum tipo de carência alimentar alcança 51,6% dos lares da região Sul; 53,5% das famílias da região Sudeste; 54,6% dos moradores em domicílios da região Centro-Oeste; 67,7% dos domicílios da região Norte e impressionantes 73,1% dos domiciliados na região Nordeste. A insegurança alimentar grave, faceta mais perversa desse enredo, atinge em cheio 29,2% dos lares nortistas e 22,1% dos nordestinos.

O recorte em domicílios situados em áreas rurais, rurais e urbanas e áreas urbanas, que deve ser tomado com os cuidados devidos em razão de conhecidas distorções neste tipo de classificação em virtude dos interesses arrecadatórios dos municípios, conforme amplamente discutido pelos estudiosos da demografia brasileira, o estudo constata que a insegurança alimentar grave chega a 27,3% dos lares rurais, em comparação com 16,9% em áreas rurais e urbanas e 13,1% dos domicílios urbanos. A fome está presente em 16,1% dos lares em cidades com menos de 20 mil habitantes, e em 14,9% dos domicílios situados em municípios com mais de 20 mil habitantes.

Analisando a clivagem por sexo, nos casos em que apenas um morador do domicílio é responsável por prover a família, vimos que se o chefe da família é homem, a fome atinge 13,3% dos lares, enquanto os lares providos por mulheres chegam à cifra de 25,5% em situação de fome, quase o dobro do índice dos lares mantidos por homens. Se o recorte leva em consideração a raça ou cor do único responsável pelo domicílio, constata-se que 48,9% dos lares chefiados por brancos possuem algum nível de insegurança alimentar, índice que sobe para 66,8% se o provedor da família é preto e para 67,8% se o responsável é pardo.

No caso da fome, o estudo apurou que 23,4% dos domicílios sob o encargo de pretos e 18,9% dos domicílios chefiados por pardos estão na grave situação em que todos os membros da família, incluídas as crianças, estão desprovidos de alimentos na quantidade e qualidade necessárias.

Ao analisarmos os recortes por idade, constatamos que os lares onde vivem pessoas com 60 anos de idade ou mais são os menos atingidos pela insegurança alimentar: 58,4% – comprovando o impacto positivo da aposentadoria sobre a pobreza -, enquanto a pior situação é encontrada nos lares com crianças de até 4 anos: inacreditáveis 70,7%.

Com base na PNAD-COVID, o estudo constata que 63,3% dos entrevistados que receberam Auxílio Emergencial utilizaram os recursos para comprar comida, e 27,8% para pagar contas básicas e dívidas. A insegurança alimentar atingiu 43,4% dos lares onde nenhum morador recebeu Auxílio Emergencial, sendo apenas 7,4% deles em situação de fome. Essa situação é dramaticamente maior nos lares onde alguém recebeu o Auxílio Emergencial: 74,1% experimentam algum nível de carência, sendo que 21,9% desses domicílios vivem restrições alimentares de natureza grave.

Os domicílios com os maiores níveis de insegurança alimentar foram os de beneficiários do Bolsa Família: 88,2%. Entre os lares de beneficiários do Auxílio Emergencial, a insegurança alimentar alcançou 74,1%, sendo o índice de insegurança alimentar de 56,4% dos lares que contavam com aposentadorias.

Os índices de consumo de alimentos processados, ricos em gorduras e açucares, de menor custo, aumentaram, sendo reduzido o consumo de alimentos saudáveis, como frutas, legumes, laticínios e carne. Nesse caso, o duplo efeito da perda de renda e da alta inflação de alimentos conduziu a esse resultado: o ovo passou a ser a principal fonte de proteínas nos lares em situação de insegurança alimentar. Tal situação é mais grave entre os adultos, que em muitos casos empobrecem a qualidade de sua alimentação na tentativa de preservar a saúde e a qualidade nutricional de suas crianças.

Como conclusão, podemos estimar, com muita preocupação, que a situação seguramente se agravou no primeiro trimestre de 2021, visto que a pesquisa foi realizada na vigência do Auxílio Emergencial de 2020. Embora seu valor tenha sido reduzido à metade no quarto trimestre do ano, a pesquisa mostra que a sua concessão atenuou os impactos da perda de renda durante a pandemia, o que se torna mais claro se os domicílios com beneficiários do Auxílio Emergencial são comparados com a situação dos domicílios beneficiados pelo programa Bolsa Família.

O retorno do Auxílio Emergencial no segundo trimestre de 2021, conforme a autorização concedida pelo Legislativo, será limitado a 44 bilhões de Reais de custo total em 2021, enquanto pagou quase 388 bilhões de Reais em 2020. Isto já bastaria, sem maiores detalhamentos, para demonstrar cabalmente que o impacto do novo Auxílio Emergencial será consideravelmente menor no combate à insegurança alimentar, porque o valor, o prazo de concessão e o número de beneficiários foram reduzidos.

A tendência clara é de aprofundamento da fome entre os mais severamente atingidos pelo desastre econômico – os informais, os “empreendedores de si mesmos”, os desempregados, os desalentados -, ao menos durante o primeiro semestre de 2021. O retorno do Auxílio Emergencial foi tardio e insuficiente[2].

Ademais, por variadas causas, o preço dos alimentos tem subido consideravelmente acima da inflação oficial, que de alguma forma baliza os dissídios dos trabalhadores formais. Estes, especialmente os de menor remuneração, também estão sendo atingidos por algum nível de insegurança alimentar. Mesmo os lares sustentados por aposentados – menos atingidos hoje pela insegurança alimentar – sofrerão mais no futuro, em razão dos impactos da reforma da previdência, que dificulta a concessão e reduz o valor dos benefícios, chegando em alguns casos a repor apenas 50% do salário médio de contribuição sob a forma de benefício previdenciário.

Somem-se a isso os efeitos da política de austericídio, que insiste em cortar o orçamento fiscal para garantir folga para o pagamento de juros aos detentores da dívida pública. Diversos estudos, feitos por pesquisadores do Instituto de Economia da UNICAMP [3] e também de outros centros de estudos, vêm demonstrando os impactos perversos dessa política de busca do equilíbrio fiscal e da estabilidade de preços a qualquer custo sobre a parcela mais frágil da população, que o estudo do IELA-FUB aponta que vem crescendo e se empobrecendo ainda mais, de forma avassaladora.

Estamos contratando uma maior pressão sobre os gastos com saúde no futuro imediato, em razão do empobrecimento da dieta e do avanço da fome sobre uma parcela tão grande da população, com ênfase nas crianças na mais tenra infância: quase 60% dos domicílios brasileiros experimentavam alguma restrição no acesso a alimentos na quantidade e qualidade necessárias no fim de 2020, situação essa que seguramente se agravou nos meses seguintes. A desídia do governo federal no combate à pandemia e o atraso e a insuficiência do novo Auxílio Emergencial estão deixando mais de uma centena de milhões de brasileiros diante de uma Escolha de Sofia: enfrentar o risco de morrer de fome ou morrer sufocado nas filas dos prontos socorros públicos sucateados pelos cortes orçamentários e superlotados.

O estudo coordenado pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da Freie Universität Berlin não deixa dúvidas quanto à natureza devastadora e à verdadeira face da fome no Brasil: ela é mulher e criança ainda na primeira infância; preta e parda; nortista e nordestina.

Estarão questões como regras fiscais, estabilidade macroeconômica de curto prazo e os interesses do mercado financeiro acima do bem-estar e da vida de parcela tão esmagadoramente significativa dos cidadãos?

 

Notas

 

[1] GALINDO, E. et al. Efeitos da pandemia na alimentação e na situação de segurança alimentar no Brasil. Working Papers Series nº 4, IELA – Freie Universität Berlin: Berlin, 2021. Disponível em: https://www.lai.fu-berlin.de/en/forschung/food-for-justice/publications/Publikationsliste_Working-Paper-Series/Working-Paper-4/index.html, consulta em 13 ABR 2021.

[2] BASTOS, P., PETRINI, G. e DOURADO, L. Ação tardia, inação precoce, nova ação tardia. O PIB da pandemia e o cenário pessimista para 2021. Nota 17 do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Unicamp: Campinas, abr. 2021. Disponível em https://www.eco.unicamp.br/noticias/nota-17-do-centro-de-estudos-de-conjuntura-e-politica-economica-cecon .

[3] ROSSI, P., DWECK, E. e OLIVEIRA, A. (orgs.). Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Autonomia Literária: São Paulo, 2018.

 

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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/608383-de-volta-ao-infame-mapa-da-fome


O preço dos alimentos bate recordes e aumenta a fome. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

 

“No Brasil, depois de recuar significativamente até meados da década passada, a fome voltou a crescer”, escreve José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo e pesquisador em meio ambiente, em artigo publicado por EcoDebate, 14-04-2021.

 

Eis o artigo.

 

A água e a comida são dois bens essenciais para a vida de qualquer espécie viva da Terra. A história da humanidade é a história da luta pela sobrevivência e pela segurança alimentar. Desde os tempos bíblicos a fome assusta as diversas populações nacionais. Na Revolução Francesa o povo foi para as ruas dizer que não tinha pão para comer e a alienada rainha Maria Antonieta deu como alternativa comer brioche. Historicamente, a fome está sempre associada à revoltas e revoluções. Aumento da carestia é sempre um alerta.

Índice de Preços de Alimentos da FAO (FFPI) é uma medida da variação mensal dos preços internacionais de uma cesta de commodities alimentares. Consiste na média de cinco índices de preços de grupos de commodities ponderados pelas participações médias de exportação de cada um dos grupos no período 2014-2016. Ele é um importante indicador da segurança alimentar no mundo.

O FFPI da FAO, em valor real, teve um curto pico acima de 120 pontos em meados da década de 1970, em decorrência do primeiro choque do petróleo, mas atingiu os valores mais baixos da série entre 1985 e 2005. Contudo, a perspectiva é de alta no século XXI. O preço dos alimentos caiu no início da pandemia da covid-19, mas voltou a subir a partir de maio de 2020. O FFPI teve média de 107,5 pontos em dezembro de 2020, valor bem superior aos 91,0 pontos de maio. Para o conjunto do ano de 2020 o valor foi de 97,9 pontos, bem acima dos 91,9 pontos de 2016, embora abaixo do recorde de 120 pontos (em termos reais) de 2011. O preocupante é que os preços voltaram para o patamar de 120 pontos.

fome é uma constante na história humana e seria ilusão imaginar que o mundo estaria livre desta ameaça. O maior volume absoluto de óbitos provocados pela desnutrição aconteceu na década de 1870, quando 20,4 milhões de pessoas morreram por inanição no mundo. Foi nesta época que foi criado o hino “A Internacional” que foi composto em 1871, por Eugène Pottier (1816-1887), que havia sido um dos membros da Comuna de Paris. Os primeiros versos do hino diz: “De pé ó vítimas da fome; De pé famélicos da terra”. Estes versos refletiam a situação daquele momento. A carência de alimentos era uma realidade que ceifava milhões de vítimas.

Na década de 1880 o número de vítimas caiu para menos de 3 milhões, mas voltou a subir para quase 10 milhões na década de 1890. Surpreendentemente, o número de óbitos por fome diminuiu na década de 1910 – quando houve a Primeira Guerra Mundial – mesmo sendo o número de 2,6 milhões ainda muito elevado. Na década de 1920 a fome cresceu muito novamente, atingindo 16 milhões de vítimas fatais devido, principalmente, à situação da União Soviética e da China. Na década de 1940 – quando aconteceu a Segunda Guerra Mundial – a fome bateu todos os recordes do século XX, com 18,6 milhões de vítimas. Na década de 1960 a fome voltou a assustar, mas principalmente pela grande crise provocada pelos equívocos da política de “Um grande salto para frente” da China. Passado a grande tragédia na China na década de 1960, o número de vítimas da insegurança alimentar diminuiu muito no mundo nas décadas seguintes, sendo que o número de mortes atingiu o menor nível na década passada (2011-20).

Porém, as conquistas do último século podem não durar para sempre. O pandemônio econômico provocado pela covid-19 tem desarticulado a cadeia de produção de vários produtos e tem gerado aumento do preço global da comida, devido a 5 fatores: aumento dos custos de produção e transporte; desorganização da cadeia produtiva global (gerando gargalos na produção e distribuição); aumento do preço do petróleo; danos causados pela crise ambiental; e desvalorização cambial.

O fato é que está cada vez mais difícil produzir alimentos de forma sustentável. O relatório “Climate Change and Land”, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU (08/08/2019) – que trata da conexão entre o uso da terra e seus efeitos sobre a mudança climática – mostra que existe um efeito perverso de retroalimentação entre as duas coisas, pois a produção de alimentos aumenta o aquecimento global, enquanto as mudanças climáticas decorrentes ameaçam a produção de alimentos.

O relatório do IPCC mostra, de forma inquestionável, que o crescimento da população mundial e o aumento do consumo per capita de alimentos (ração, fibra, madeira e energia) têm causado taxas sem precedentes de uso de terra e água doce, com a agricultura atualmente respondendo por cerca de 70% do uso global de água doce. Adicionalmente, o aumento da produção e consumo de alimentos contribuíram para o aumento das emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE), perda de ecossistemas naturais e diminuição da biodiversidade. O sistema alimentar responde por cerca de 30% de todas as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e 80% do desmatamento global.

Trabalho acadêmico publicado na prestigiosa revista Nature Sustainability (Gerten et. al, 2020) mostra que o sistema alimentar mundial atual pode alimentar apenas 3,4 bilhões de pessoas sem transgredir os principais limites planetários, de acordo com uma análise do sistema agrícola global. Todavia, a reorganização da produção de alimentos – alterando a forma de cultivar e modificando a dieta cotidiana predominante – possibilitaria alimentar até 10 bilhões de pessoas de forma sustentável.

Os autores dizem categoricamente que “Não devemos continuar na direção de produzir mais alimentos às custas do meio ambiente”. Utilizando o arcabouço teórico das Fronteiras Planetárias, a equipe de Gerten analisou os quatro limites que são relevantes para a agricultura: não usar muito nitrogênio, o que causa zonas mortas em lagos e oceanos; não tirar muita água doce dos rios; não derrubar muita floresta; e manutenção da biodiversidade.

A conclusão da equipe é que metade da produção de alimentos hoje viola esses limites. No entanto, essa análise também é a primeira a fornecer informações sobre onde, geograficamente, esses limites estão sendo transgredidos.

No Brasil, depois de recuar significativamente até meados da década passada, a fome voltou a crescer. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan) mostra que houve um retrocesso acentuado nos dois últimos anos, pois, de 2013 a 2018, a insegurança alimentar teve aumento de 8% ao ano, mas de 2018 a 2020, esse crescimento acelerou, sobretudo na modalidade severa, e o total de pessoas com fome saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões, conforme mostra o gráfico abaixo.

O relatório FAO-WFP Hunger Hotspots faz uma análise antecipada e prospectiva de países e situações, chamados de hotspots, onde a insegurança alimentar aguda deve piorar nos próximos meses. Esses pontos são identificados por meio de uma análise baseada em consenso dos principais fatores de insegurança alimentar e sua provável combinação e evolução entre países e regiões. Olhando para o período de março a julho de 2021, há 20 países e situações onde há uma probabilidade de maior deterioração da insegurança alimentar aguda, devido a múltiplas causas da fome que estão interligados ou se reforçam mutuamente. Estes são principalmente conflitos dinâmicos, choques econômicos, impactos socioeconômicos da covid-19, extremos climáticos e a difusão de pragas vegetais e doenças em animais. Um grupo específico de pontos críticos – destacados na figura abaixo, são particularmente preocupantes devido à escala, gravidade e tendências das crises alimentares existentes. Em alguns áreas desses países, partes da população estão experimentando uma situação crítica de fome, com esgotamento extremo dos meios de subsistência, consumo insuficiente de alimentos e desnutrição aguda elevada.

No Brasil, em 2020, o preço do arroz e do feijão – produtos essenciais na mesa da maioria dos brasileiros subiu bem acima da inflação, assim como os hortifrutis e o preço das carnes e dos ovos. A situação é mais grave pois o auxílio emergencial tem valor baixo e não cobre todas as pessoas necessitadas. Existem 32 milhões de pessoas desempregadas ou desalentadas (subutilizadas). Existe um barril de pólvora no país.

Segundo Relatório do NECSI (New England Complex Systems Institute) publicado em 28/09/2012, há uma correlação importante entre o aumento do preço dos alimentos, calculados pela FAO e a ocorrência de protestos em todo o mundo, conforme mostra o gráfico abaixo. Sempre que o índice da FAO sobe, ocorrem manifestações. Pior é quando se conjuga crise econômica, crise ambiental e crise social em numa situação de enorme desigualdade de renda e bem-estar. Por exemplo, o gatilho que detonou a Primavera Árabe foi o aumento do preço da comida. Na Tunísia, o início das manifestações começou após a imolação do jovem Mohamed Bouazizi, de 26 anos, vendedor ambulante de frutas e verduras, em Sidi Bouzid. Entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011, a revolução na Tunísia provocou a saída do presidente da República, Zine el-Abidine Ben Ali, que controlava o poder desde 1987.

Como mostraram Martine e Alves (Rebep, 2015) o debate sobre população, fome e meio ambiente é antigo e, em 2013, houve um debate durante a XXVII Conferência da IUSSP – International Union for the Scientific Study of Population, onde foi organizada uma plenária para debater a seguinte afirmação: “Para os países em desenvolvimento, o desenvolvimento econômico precisa ser uma prioridade maior do que a proteção do ambiente e a conservação dos recursos naturais”. O demógrafo David Lam defendeu a ideia de que é possível conciliar o desenvolvimento com o meio ambiente e que o preço dos alimentos iria diminuir. Já o demógrafo Stan Becker defendeu as posições opostas. Eles fizeram uma aposta, com Lam defendendo que o preço dos alimentos iria diminuir e Becker defendendo a ideia de que o preço dos alimentos continuaria alto, assim como a insegurança alimentar. No dia 09/04/2021 a IUSSP e a PAA organizaram o “Webinar on Population, Food and the Environment” onde ficou claro que a perspectiva de Stan Becker venceu, pois o preço dos alimentos continua alto e subindo.

O mundo inteiro está passando por um repique da insegurança alimentar. Com o agravamento da 2ª onda da pandemia no Brasil nos primeiros meses de 2021 e com o rescaldo da maior recessão econômica em um século, os brasileiros vão viver uma situação amarga. A possibilidade de revoltas é enorme. O clima no país está conturbado. O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, determinou que o presidente do SenadoRodrigo Pacheco, tome uma atitude e instaure a CPI, proposta pelo senador Randolfe Rodrigues que investigará os crimes de Bolsonaro durante a pandemia. Na segunda-feira, o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO) divulgou um novo trecho do áudio de uma conversa com o presidente Jair Bolsonaro sobre a CPI da Pandemia, onde Bolsonaro xinga o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e ameaça agredi-lo.

Pressionado, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), oficializou nesta terça-feira (13/04) a criação da CPI da Covid. O Congresso brasileiro tem um histórico de abertura de CPIs. Duas delas levaram a impeachment de presidentes: a do PC, em 1992, e a da Petrobras, em 2015. Collor foi derrubado pelo esquema PC FariasDilma caiu por problemas no Orçamento. O governo Bolsonaro está entre a cruz e a caldeirinha.

CPI da Covid pode ser o início do julgamento de Nuremberg do Bolsonarismo. O povo brasileiro está com fome de comida e fome de justiça.

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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/608374-o-preco-dos-alimentos-bate-recordes-e-aumenta-a-fome-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves


Como vivem as famílias corroídas com fim dos R$600

Desempregada e sem perspectiva, mãe de quatro filhos se humilha pelo básico. O quilo da carne, trocado por 500 gramas de queijo. O leite, por suco de saquinho. Desnutrição já ameaça 116 milhões; “socorro” só chega a menos da metade

Por Diogo Magri, no El País Brasil

Maria das Graças, 41, sustenta seus quatro filhos com o dinheiro que tira de um salão de beleza que aluga como cabeleireira em Paraisópolis, zona sul de São Paulo. Desde o início da pandemia de covid-19, no entanto, viu sua única fonte de renda desaparecer —não só pelas restrições impostas pela fase emergencial em todo o Estado, mas pelo desemprego que impossibilitou seus clientes de continuarem indo ao salão. Ela sobreviveu em 2020 com as parcelas do auxílio emergencial repassados pelo Governo federal, mas neste segundo ano a ajuda de custo será insuficiente. Mesmo recebendo a parcela mais vantajosa do novo auxílio, Maria não consegue colocar mais do que arroz, feijão e ovo no prato das crianças de 5, 8, 14 e 17 anos. “É doído ver o mais novo acordar com fome e não ter nada em casa. Como ele ainda não entende, fica ainda mais difícil”, relata ela.

Como mãe solteira, a cabeleireira tem direito a quatro parcelas de 375 reais do auxílio, a serem depositadas entre 20 de abril e 8 de agosto. Se a ajuda permitiu o abastecimento da casa durante 2020, a inflação de alimentos básicos dificultou a vida da população mais vulnerável em 2021. O preço médio de uma cesta básica para quatro pessoas, em São Paulo, era de 862,87 reais em abril do ano passado —valor que saltou para 1.014,63 reais em 2021, segundo pesquisa da Fundação Procon-SP em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). “Carne, arroz e óleo são os que mais assustam”, pontua Maria das Graças. Ela conta que precisou abrir mão da carne para conseguir comprar o arroz, substituindo bovinos e frangos pelo ovo, além de trocar o leite de caixinha pelo suco mais barato. “Faz três meses que não compramos carne”, relata ela. “É preocupante porque já estou no limite. Se cortar mais, vamos morrer de fome. A alimentação fica desbalanceada e o auxílio só vai servir para comprar o básico, que não supre”, completa a cabeleireira.

Maria das Graças, moradora de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo

De fato, alimentos de origem animal, cereais (como arroz e feijão), açúcar e óleo estão entre os produtos que tiveram uma inflação ainda maior que a medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que está na casa dos 5,5%. Há um ano, 15 reais eram suficientes para comprar cinco quilos de arroz; agora, o mesmo dinheiro só paga três quilos. Com 23 reais, era possível comprar um quilo de carne de primeira em 2019. Agora, o mesmo valor paga pouco mais de 500 gramas de queijo muçarela. Com um aumento de 53% em seu preço durante 2020, a carne bovina precisou ser trocada na cesta básica pela de frango, cujo quilo do filé está em torno dos nove reais — em abril passado, era menos do que 7,50 reais. Os dados são do Procon-SP e do Dieese.

O professor de economia da Universidade de São Paulo (USP), Heron do Carmo, ressalta que o efeito mais significativo desse aumento é o fato dele recair sobre os produtos mais consumidos pela população mais vulnerável do país. “O problema é que o índice de preço teve um comportamento variado de acordo com o grupo de produtos, e aumentaram justamente os mais consumidos pelos mais pobres”, diz Carmo. Isso, por sua vez, tem um impacto forte na nova rodada do auxílio emergencial, uma vez que o dinheiro repassado aos mais pobres, além de ser menor, vale menos do que no ano passado por conta da inflação. Os 375 reais de Maria das Graças compram menos alimentos do que faziam em 2020. “Com esse aumento brutal de preços, o auxílio vai ter um efeito muito menor no padrão de vida dessas pessoas. Você pode ter problemas de desnutrição calórica nas famílias mais pobres”, constata o economista.

“O dinheiro é muito bem-vindo nessa situação emergencial, e é um avanço entregar o poder aquisitivo à pessoa ao invés da cesta básica”, ressalva Carmo, “mas é preciso melhorar o valor sem cortar o número de beneficiados”. Segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), 116,8 milhões de brasileiros se encontram em situação de insegurança alimentar, número que corresponde a mais da metade da população e não era alcançado há 17 anos. O auxílio de 2021 beneficiará apenas 45,6 milhões de cidadãos. “É a condição de vida afetada pela pandemia, pelo desemprego e pelos preços dos alimentos. Imagina o drama da pessoa passar fome num país que tem plenas condições de prover isso”, completa o economista.

Por que aumentou o preço?

“Duas coisas explicam: o aumento do preço dos alimentos fora do país, o que causa uma entrada maior de dólares no mercado brasileiro, que é um grande exportador; e a desvalorização da moeda nacional, que faz com que o dólar fique mais caro”, justifica o economista Heron do Carmo. “Normalmente, o aumento das exportações faria o dólar ficar mais barato. Porém, questões como as incertezas políticas do país levaram à junção desses dois fatores, que aumentam o preço dos produtos no mercado interno”, completa o especialista.

E, para ele, sair da crise não deverá ser uma missão fácil. A estabilização dos preços passa pela valorização cambial e pela melhora generalizada da economia, que por sua vez depende do fim da pandemia. O economista projeta dois cenários, tendo como base o processo eleitoral que culminará no pleito para presidente no segundo semestre de 2022: caso os presidenciáveis adotem uma postura mais comedida com programas que “acenem para o futuro”, ele prevê uma melhoria na situação econômica do país; caso o clima de polarização dos últimos anos permaneça ou cresça, ele projeta um contínuo aumento na inflação e no dólar. “No meio dessas incertezas, qualquer previsão tem prazo de validade. Mas não descarto, com a instabilidade piorando, que a inflação feche o ano em 8%. Vai depender do bom senso da classe política e, com o início das pesquisas para presidente, dos eleitores”, conclui o professor da USP.

O auxílio emergencial

Além do caso de Maria das Graças, que receberá do novo auxílio emergencial quatro parcelas de 375 reais como mãe solteira que mora com os filhos, famílias com pai e mãe receberão quatro mensalidades de 250 reais, enquanto pessoas que moram sozinhas terão a disposição 150 reais mensais pelo mesmo período. Os prazos são definidos de acordo com a data de nascimento: para nascidos em janeiro e inscritos no Cadastro Único ou via aplicativo e site do programa, os depósitos começaram a ser feitos na terça, dia 6, com saques permitidos a partir de 4 de maio, e terminam no dia 23 de julho. Já para nascidos em dezembro, os últimos da fila, o primeiro depósito cai em 30 de abril, e o último em 22 de agosto —com saque permitido a partir de 10 de setembro. Os depósitos são feitos através da conta poupança digital da Caixa. Por fim, beneficiários do Bolsa Família recebem as quatro parcelas de acordo com o calendário do programa, entre 16 de abril e 30 de julho.

Os valores são menores do que os repassados ao ano passado e ainda beneficiam uma quantidade menor de pessoas, apesar da pandemia estar no seu auge e acumular seguidos recordes diários de óbitos no país. Se o auxílio de 2020 ajudou quase 68 milhões de pessoas, a versão 2021 beneficiará mais de 20 milhões de pessoas a menos —todas aquelas com renda familiar de no máximo três salários mínimos (desde que a renda por pessoa seja inferior a meio salário mínimo) e que tenham sido aprovadas para receber o benefício ano passado, já que não haverá nova fase de inscrições. Maria recebeu mensalmente, entre maio e setembro do ano passado, 1.200 reais, o dobro da média por ser mãe solteira. Entre outubro e dezembro, foram mais três parcelas de 600 reais.

A moradora de Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo, diz que a comunidade tem conseguido mobilizar doações de alimentos para os moradores. “Mas nem todos os que necessitam são contemplados. Acho que os políticos deveriam cortar do salário deles para oferecer um valor digno, sem que a gente precisasse ficar se humilhando para ter comida”, sugere Maria. Na última semana, o governador paulista, João Doria, iniciou um programa que incentiva as pessoas a doarem um quilo de alimento não perecível no ato da vacinação. O alimento será direcionado, segundo o Governo, à parcela mais vulnerável da população no Estado.

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fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/como-vivem-as-familias-corroidas-com-fim-dos-r600/

 

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