O PL 2.633/2020, que diz tratar da regularização fundiária, não beneficia a agricultura familiar, pode sim trazer graves prejuízos a este público, tais como o aumento dos conflitos agrários, sobreposição de área dos agricultores e agricultoras e a possível regularização de grileiros e desmatadores. A legislação atual (Lei nº 11.952/2009) já é suficiente para amparar políticas para a agricultura familiar, com prioridade aos ocupantes de imóveis com até 4 (quatro) módulos fiscais, basta que seja efetivamente aplicada, priorizando a estruturação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e destinando orçamento para tal regularização.
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Não é ético dizer que a lei vem em benefício da agricultura familiar quando na verdade ela tem outro sentido. Estudiosos do tema advertem que a proposta é uma ameaça, principalmente, ao Cerrado e à Amazônia.
Os defensores da nova legislação querem anistiar ocupações irregulares de terra e tornar a legislação fluida, beneficiando ocupações de terras indígenas e áreas desmatadas ilegalmente (como prevê o PL 510, que tramita no Senado em conjunto).
O discurso daqueles que ajudam a desmatar e ocupar ilegalmente a Amazônia tem se focado em temas que aparentemente são simpáticos como desenvolvimento, regularização das terras de agricultores familiares e preservação do meio ambiente. Na verdade o que vai acontecer com essa porteira aberta é o contrário. Vai facilitar a concentração de terras (regulariza algumas de pequenos produtores e facilita a venda para os grandes latifundiários), aumenta o descontrole sobre terras invadidas e terras indígenas, aumentará e incentivará o desmatamento. Nada disso tem a ver com desenvolvimento. Estamos vendo já os impactos desse tipo de ocupação sobre o clima do país. A desertificação e a savanização da Amazônia não trará desenvolvimento algum, ao contrário. Vai enriquecer rapidamente uns poucos e empobrecer as próximas gerações que terão que pagar pelo prejuízo que esses poucos vão gerar.
Cheque em branco’ para a grilagem, PL 2633 segue ao Senado
Por Carolina Fasolo
Primeiro item da pauta após o retorno do recesso legislativo, a Câmara dos Deputados aprovou, nesta terça-feira (03/08), o Projeto de Lei (PL) 2.633/2020, o “PL da Grilagem”. Com 296 votos a favor, 196 contra e uma abstenção, o projeto segue agora para o Senado e corre o risco de se tornar ainda mais nefasto para o meio ambiente e para as populações tradicionais.
De autoria do deputado Zé Silva (Solidariedade-MG), o PL 2.633 estimula a grilagem e o desmatamento ao ampliar a possibilidade de regularização fundiária das terras da União por autodeclaração, além de anistiar grileiros e criminosos ambientais. O texto do deputado Bosco Saraiva (SDD/AM), relator do projeto, foi aprovado com duas emendas e teve todos os destaques rejeitados no Plenário.
“A aprovação do PL demonstra a disposição de uma maioria parlamentar em legislar a favor de grileiros e do crime organizado na Amazônia”, afirma Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental. “O texto aprovado permite a entrega de títulos de propriedade aos desmatadores e invasores sem checar se os danos ambientais que causaram foram recuperados. É um cheque em branco e um incentivo à criminalidade”, considera.
Queimadas na floresta amazônica em agosto de 2019, Candeias do Jamari, Rondônia
Entre outros pontos escandalosos, o projeto permite que as terras públicas sejam utilizadas, pelo posseiro que pleiteia a regularização fundiária, como garantia para empréstimos relacionados à atividade a que se destina o imóvel, o que significa que, em caso de inadimplência, o banco tomará as terras da União.
Além disso, amplia em cinco anos o prazo para renegociação de contratos de regularização fundiária no caso de descumprimento de acordo firmado com órgãos fundiários federais até 10 de dezembro de 2019.
Confira, ponto a ponto, as mudanças e consequências da aprovação do PL 2.633:
Dispensa de Vistoria
O PL da Grilagem dispensa a vistoria presencial do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para a titulação das médias propriedades rurais – aquelas com no máximo 660 hectares ou seis módulos fiscais, exigindo do ocupante apenas documentos como o CAR (Cadastro Ambiental Rural) e declarações dos proprietários de que estão de acordo com a legislação ambiental, não têm outro imóvel rural no país e nem foram beneficiários de programa de reforma agrária ou de regularização fundiária rural.
A lei atual (11.952/2009) prevê o processo simplificado de regularização fundiária para áreas de até quatro módulos fiscais, o que já beneficia os ocupantes e os agricultores familiares. “Não tem nada que justifique a ampliação feita”, explica Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima. “A maior parte do que precisa ser regularizado já é atendida pela legislação atual, o restante pode ter um processo mais rigoroso, com a obrigatoriedade de vistoria pelo Incra e um maior controle do que está acontecendo”.
Com a dispensa da vistoria in loco, as áreas que estão em conflito possessório ou aquelas reivindicadas por comunidades tradicionais poderão ser automaticamente legalizadas.
Marco temporal e anistia eterna
Apesar de manter o marco temporal das ocupações passíveis de regularização em 22 de julho de 2008, o artigo 38 do PL permite uma anistia eterna à grilagem. Ele prevê que as áreas não passíveis de regularização pela lei 11952/2009 poderão ser colocadas à venda por licitação, com regras definidas por decreto do Presidente da República. Assim, áreas invadidas e desmatadas a qualquer tempo poderão ser legalizadas, mesmo depois do marco temporal previsto na lei.
Povos indígenas e quilombolas penalizados
Áreas ocupadas por povos indígenas, quilombolas e por Unidades de Conservação (UCs) poderão ser tituladas por invasores. Um dos dispositivos do projeto exige um “estudo técnico conclusivo” ou processo administrativo aberto nos órgãos responsáveis pela titulação dos territórios tradicionais ou das UCs para então impedir a titulação dessas áreas a terceiros.
Assim, áreas em fases iniciais de reconhecimento seriam destinadas à grilagem. “Esse trecho do PL é absolutamente inconstitucional e se não for limado no Senado deverá ser questionado no STF”, explica a advogada do ISA.
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Mesmo antes de aprovado, PL da Grilagem está destruindo a Amazônia
A Constituição Federal estabelece que os direitos dos povos indígenas são originários, anteriores a qualquer outro direito. Os indígenas não podem ser punidos devido à inação do Estado na demarcação de suas terras. Com o PL, as comunidades que não têm suas terras demarcadas ficam ainda mais suscetíveis à violência e conflitos armados, justamente porque não têm segurança territorial.
A proposta também contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4269, em que decidiu que não é possível a regularização fundiária das terras públicas ocupadas por quilombolas e outras comunidades tradicionais da Amazônia Legal em nome de terceiros ou de modo a descaracterizar o modo de apropriação da terra por esses grupos.
Aumento no desmatamento e queimadas
O PL pode provocar, até 2027, um desmatamento adicional de até 16 mil quilômetros quadrados, de acordo com um levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) aponta que em 2019, cerca de 30% dos desmatamentos e queimadas na Amazônia ocorreram em áreas públicas “não destinadas” – principais alvos da grilagem; e que um território do tamanho de Sergipe já teria sido desflorestado nesse tipo de área até 2018.
O projeto fragiliza ainda o cumprimento da lei ambiental após a titulação, pois abre brecha para a manutenção da posse ainda que o ocupante promova desmatamento ilegal em até dez anos após receber o título.
Análise política
O texto aprovado pela Câmara poderia ser ainda pior em termos de retrocessos: dois destaques apresentados pelo PSL ampliavam para 15 módulos fiscais a dispensa de vistoria presencial e um deles alterava o marco temporal para 2014, com possibilidade de regularizar áreas invadidas até 2016; outro destaque, do PSD, fragilizava o Código Florestal ao autorizar os municípios a legislarem sobre os limites das áreas de preservação permanente e as faixas marginais de cursos d’água.
A pressão da sociedade civil durante o primeiro semestre de 2021 e a atuação de deputados ambientalistas foram fundamentais para barrar dispositivos ainda piores do PL da Grilagem. Nesta terça-feira (3), enquanto estava em votação, a mobilização contra o projeto ficou boa parte do dia entre os assuntos mais falados do Twitter.
Mas não há o que comemorar: ao chegar ao Senado, o PL 2.633 deve ser apensado (anexado) ao PL 510/2021, do senador Irajá Abreu (PSD-TO), que permite a regularização de áreas griladas até 2019 e acaba com a vistoria presencial para todos os imóveis em processo de regularização fundiária. Com isso, áreas com até 2.500 hectares poderão ser destinadas por meio de mera autodeclaração do interessado e checagem documental por parte do Incra. Os dois projetos serão então votados em plenário como matéria única, exigindo ainda mais mobilização da sociedade civil.
Para Suely Araújo, todo o processo é perigoso. “A lei é desnecessária porque estimula novas ocupações e desmatamentos, e põe em risco as populações tradicionais. Agora o governo é apoiado plenamente pelo presidente da Câmara e pela bancada ruralista no Congresso e isso cria um movimento sem limites legais em termos do que se pode ocupar e devastar”, afirmou.
fonte: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/cheque-em-branco-para-a-grilagem-pl-2633-segue-ao-senado
Câmara aprova ‘PL da Grilagem’ e texto vai ao Senado
Atualizado em 04 de Agosto de 2021 às 14h14https://audio.audima.co/iframe-thin-local.html?skin=thin&statistic=false
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A Câmara dos Deputados aprovou, na noite de terça-feira (3), o Projeto de Lei (PL) 2633/20. A proposta é chamada de “PL da Grilagem” por regularizar a ocupação indevida de terras públicas, favorecer a impunidade de crimes ambientais e facilitar o desmatamento ambiental. Agora, matéria será enviada para votação no Senado.
O PL, aprovado com 296 votos favoráveis a 136 contrários, atende aos interesses da bancada ruralista, um dos braços de apoio do governo de Jair Bolsonaro no Congresso Nacional. O presidente já havia editado uma medida provisória (MP 910) sobre o mesmo tema em dezembro de 2019. Mas a matéria não foi validada em 120 dias e perdeu vigência. O projeto enfrenta ampla rejeição de ambientalistas, movimentos populares, sociais e sindicais e das deputadas e dos deputados de oposição, que tentaram obstruir a votação, mas foram vencidos pela maioria.
Novas regras
A proposta passa de 4 para 6 módulos fiscais o tamanho da propriedade ocupada, a qual poderá ser regularizada sem vistoria presencial feita pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Módulo fiscal é uma unidade de medida agrária expressa em hectares, variável de 5 a 110 hectares, sendo fixada pelo Incra para cada município, e que varia em cada região do país.
O texto estabelece novas regras para a Lei 11.952/09, que valerão para imóveis da União e do Incra em todo o país em vez de apenas os localizados na Amazônia Legal, como ocorre hoje. A data de referência da ocupação continua a ser 22 de julho de 2008, atualmente prevista na lei. A data de 2008 coincide com a anistia ambiental concedida pelo Código Florestal de 2012.
O texto aprovado é o substitutivo do relator, deputado Bosco Saraiva (Solidariedade-AM), que abre brechas para beneficiar inclusive posseiros multados por infração ao meio ambiente, se for atendida qualquer uma destas condições: imóvel registrado no Cadastro Ambiental Rural (CAR), adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) ou o interessado assinar termo de compromisso ou de ajustamento de conduta para recuperar vegetação extraída de reserva legal ou de Área de Preservação Permanente (APP).
Em nota, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) rechaçou o PL 2633 e reforçou a importância do governo priorizar a regularização fundiária por meio da atual legislação (Lei nº 11.952/09), que é a única forma de garantir segurança jurídica e fazer justiça social aos agricultores e agricultoras. “Esse projeto representa um grande retrocesso e vem sendo denunciado pela Contag há tempos, pois não tem o objetivo de beneficiar a agricultura familiar, como vem propagando a base aliada do governo federal. Na verdade, alertamos que pode trazer graves prejuízos a este público, tais como o aumento dos conflitos agrários, sobreposição de área dos agricultores e agricultoras e a possível regularização da grilagem e do desmatamento nas terras da União”, afirmou a entidade.
A Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas (FPMDDPI) alerta para o momento crítico em que o PL da Grilagem foi aprovado pela Câmara dos Deputados, quando o desmatamento no Brasil bate recorde. “O PL da Grilagem beneficia a grilagem de terras públicas, além de trazer prejuízos para as regiões florestais, como por exemplo, a Amazônia, Cerrado e biomas onde o agronegócio avança cada dia mais”, criticou.
Em julho, quando foi aprovado o regime urgência de votação do projeto, Kelli Mafort, da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), afirmou que o projeto de regularização fundiária era, na verdade, a regularização do crime de grilagem. “Pelo menos, 65 milhões de hectares de terras públicas podem ser retirados do povo brasileiro e da União e repassados a grandes proprietários de terras, empresas do agronegócio e da mineração. Esses proprietários de terra não estão enquadrados em nenhuma regra socioeconômica para que possam ter acesso a este benefício. Eles não são aptos a nenhum programa social de Reforma Agrária”, declarou.
Senado
No Senado também tramita o PL 510/21, de autoria do senador Irajá Abreu (PSD-TO), com o mesmo teor do PL 2633, que facilita que terras públicas desmatadas de modo ilegal se tornem propriedades de quem as utiliza. O projeto tem como proposta a alteração de leis que versam sobre a regularização fundiária no Brasil, flexibilizando e favorecendo a expansão dos latifúndios em terras públicas, possivelmente adquiridos a partir da grilagem.
* Com informações de Agência Câmara de Notícias e FPMDDPI. Foto: Alex Ribeiro/Agência Pará. Fonte: https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/camara-aprova-pL-da-grilagem-e-texto-vai-ao-senado1
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‘PL da Grilagem’: tudo o que você precisa saber
Reportagem: Isadora Costa, Ester Cezar, Carolina Fasolo e Oswaldo Braga de Souza
Edição: Oswaldo Braga de Souza e Isadora Costa
Texto atualizado em 16/7/2021, às 14:01
Deputado Bosco SaraivaO tema do roubo de terras públicas voltou a esquentar nas redes sociais e no Congresso, nesta semana. O Projeto de Lei (PL) 2.633/2020, conhecido como “PL da Grilagem”, pode ser votado a qualquer momento na Câmara.
Ele foi incluído na pauta da sessão do plenário desta quarta (14) à tarde, pelo presidente Arthur Lira (PP-AL), menos de um dia depois de o requerimento de urgência da proposta ter sido aprovado e do próprio relatório ter sido divulgado oficialmente. A medida descumpre acordo fechado pelo próprio Lira de só votar matérias com parecer publicado, no mínimo, 24 horas antes.
Se aprovado, o PL segue para o Senado. De autoria do deputado Zé Silva (Solidariedade-MG), ele é criticado por pesquisadores e ambientalistas porque enfraquece os controles sobre a ocupação de terras públicas, abrindo caminho para anistiar grileiros e criminosos ambientais associados, em especial na Amazônia.
“À medida que a votação se aproxima, o texto [do PL 2633] vai incorporando mais e mais artigos para favorecer a grilagem, a impunidade de crimes ambientais e mais desmatamento”, alerta Brenda Brito, pesquisadora do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
“Na última versão, já houve um enfraquecimento das regras de regularização ambiental, para imóveis que têm desmatamento ilegal e vão receber título. Isso reflete o problema que é colocar um texto com um tema complexo como esse para votação, durante uma pandemia, sem a devida discussão, e com artigos que vão surgindo do dia para noite”, ressalta.
O que é grilagem?
Embora o tema venha sendo alvo da imprensa e das redes sociais, é técnico, nem sempre fácil de entender e ainda provoca dúvidas.
Uma primeira questão básica é: o que é exatamente “grilagem”? A grilagem consiste na invasão, ocupação e comércio ilegais de áreas públicas. Ganhou essa denominação graças à prática antiga de colocar um título ou outro documento de propriedade falsificado em uma gaveta com grilos, para que a ação dos insetos desse aos papéis aspecto envelhecido e legítimo. Hoje, a apropriação ilegal de terras ficou mais sofisticada, envolvendo quadrilhas com muitos recursos e ramificações complexas.
Outro tópico que precisa ficar claro é a relação da apropriação ilegal de terras com o desmatamento. O problema preocupa não apenas pelo risco ao patrimônio público fundiário, mas também pelo potencial de provocar a destruição das florestas.
A derrubada da vegetação nativa, principalmente para a criação de gado, tornou-se tradicionalmente a forma pela qual se tenta comprovar a posse regular de uma área, em especial a partir dos anos 1970, quando o governo militar promoveu a ida de milhares de produtores rurais para a Amazônia. A partir daí, a prática tornou-se um dos principais motores do desmatamento.
“Os invasores entram na área e desmatam justamente para dizer: ‘essa área é minha’. Cercam a terra para tentar legitimar uma propriedade. Mas na verdade é uma invasão. Depois, vão ao órgão fundiário e dizem: ‘eu já ocupo essa área há muito tempo’. Mas se trata de uma ocupação recente”, explica a advogada do ISA Juliana de Paula Batista.
Cerca de 30% dos desmatamentos e das queimadas na Amazônia, em 2019, ocorreram em áreas públicas “não destinadas”, ou seja, muito provavelmente alvo de grilagem, conforme o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Um território do tamanho de Sergipe já teria sido desflorestado nesse tipo de área até 2018, segundo a mesma organização.
De acordo com o Imazon, a aprovação do PL 2.633 pode provocar, até 2027, um desmatamento adicional de até 16 mil quilômetros quadrados, o equivalente a quase três vezes o território do Distrito Federal.
Arthur Lira, ao lado de Jair Bolsonaro
Círculo vicioso
Daí também a preocupação de pesquisadores e ambientalistas com as constantes mudanças na legislação sobre o assunto. Elas acabam criando um círculo vicioso: produtores rurais e políticos locais pressionam o Congresso e o governo para mudar a lei e facilitar a legalização das ocupações; a reforma legislativa promove novas invasões, que, por sua vez, estimulam mais pressões por novas alterações nas normas sobre o tema.
Em 2009 e 2017, já haviam sido feitas modificações importantes nas regras fundiárias no Congresso. Inicialmente, o marco temporal para a legalização das ocupações era 2004. Depois, mudou para 2008.
Em seu relatório sobre o PL 2.633, o deputado Bosco Saraiva (Solidariedade-AM) resolveu não alterar esse ponto, mas há pressão nos bastidores para que faça isso de última hora, prevendo um novo marco que poderia ir até 2019. A modificação também pode ser feita em plenário pela aprovação de emendas.
Difícil prever qual será a proposta final aprovada porque a polêmica sobre o assunto cresceu entre diferentes facções ruralistas e governistas nas últimas semanas. O próprio Arthur Lira vinha tentando justificar a interlocutores que a manutenção da data-limite seria uma garantia de que o relatório não abre brecha para anistiar a grilagem, o que é contestado pela oposição e ambientalistas.
“Por que eles querem continuamente mudar a lei? Porque eles estão sempre tentando jogar esse marco temporal mais pra frente. Por exemplo, no PLS 510, que está no Senado, querem jogar esse marco temporal para dezembro de 2019. Aí, todo mundo que entrou, invadiu e barbarizou até 2019, vai poder ser regularizado”, conta Juliana de Paula Batista.
“Não há necessidade de mudança. Querem mudar a lei para facilitar a vida de quem invadiu e degradou áreas recentemente. Se a pessoa ocupou a área há 50 anos e não consegue regularizar, é por uma inoperância do governo. A lei atual já permite que essas pessoas sejam regularizadas se elas já estão na terra há 25, 50 anos”, finaliza.
“[O PL 2633] garante segurança jurídica aos proprietários de terra e auxilia na fiscalização e identificação de infratores, na garantia da aplicação da Lei. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) entende que a medida é uma forma de combate à grilagem, às queimadas e desmatamento ilegais, fatores que geram prejuízos ambientais, sociais e econômicos para o Brasil”, afirmou a bancada ruralista em nota, após a aprovação do requerimento de urgência.
Desmatamento associado à grilagem, na Terra Indígena Cachoeira Seca, no Pará
Terras Indígenas e quilombos
O que algumas pessoas não sabem é que, do jeito que está, o parecer de Saraiva também dificulta a oficialização e facilita as invasões das Terras Indígenas (TIs), quilombos e Unidades de Conservação (UCs).
Como um todo, o PL 2.633 já é um grave obstáculo à formalização e proteção dessas áreas protegidas, porque grande parte da grilagem já acontece nelas. Sobretudo em regiões da Amazônia, os invasores tentam criar um “fato consumado”, ao promover mobilizações para ocupar grandes porções desses territórios, e, assim, pressionar por sua anulação.
Mas uma das novidades do relatório divulgado ontem agrava o problema. Um novo dispositivo permite que os órgãos fundiários regularizem terras para particulares sobre TIs, UCs e quilombos ainda em processo de oficialização. Pelas regras vigentes, quando uma gleba de terra é disponibilizada para regularização e há nela populações indígenas e tradicionais ou demanda por conservação, os órgãos competentes têm de manifestar interesse.
De acordo com o parecer de Bosco Saraiva, agora, além disso, precisariam apresentar um “estudo técnico conclusivo” para justificá-lo. Se instituições como a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) ou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não conseguirem apresentar o levantamento sobre a área em até 180 dias, ela poderia ser titulada para terceiros.
Por causa da precariedade de recursos humanos e financeiros desses órgãos, é certo que essas comunidades e UCs em fase de estudos serão prejudicadas, na avaliação de Juliana de Paula Batista.
Territórios quilombolas ainda sem o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), por exemplo, poderiam ser destinados à regularização privada. Dos cerca de 1,8 mil processos de titulação de quilombos abertos no Incra, 84% não tinham o RTID, até o início de 2020.
A proposta vai contra entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). “O STF já decidiu, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4269, que não é possível a regularização fundiária das terras públicas ocupadas por quilombolas e outras comunidades tradicionais da Amazônia Legal em nome de terceiros ou de modo a descaracterizar o modo de apropriação da terra por esses grupos”, conta Batista.
“O prejuízo é grande para todos nós. Porque, assim que esse projeto for passado na Câmara dos Deputados, virão com mais força ainda os grileiros, aqueles que estão dentro das Terras Indígenas para tentar legalizar essas áreas”, disse Alberto Terena, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Vistoria
Outra polêmica do relatório de Bosco Saraiva diz respeito à ampliação do tamanho das áreas passíveis de regularização que ficariam isentas de vistoria em campo. Hoje, esse limite é de até quatro módulos fiscais ou 440 hectares, dependendo do município. De acordo com o texto de Saraiva, sobe para até seis módulos fiscais ou 660 hectares, também dependendo do local. Um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol.
“Cabe ressaltar que apenas áreas com seis módulos fiscais poderão ter a vistoria prévia dispensada. Veja que, uma vez aprovadas essas condições, o projeto irá permitir que o Incra possa utilizar o sensoriamento, o sistema de monitoramento para regularizar mais de 90% das áreas dos pequenos produtores que hoje ocupam as áreas que produzem no Brasil”, afirmou Saraiva ao podcast do ISA Copiô, Parente?.
Deputados ruralistas, no entanto, também continuam pressionando para que o tamanho das áreas dispensadas de checagem in loco suba para até 2,5 mil hectares – o que é considerado latifúndio, embora os defensores da alteração digam defender os interesses dos agricultores familiares. A mudança ainda pode ser aprovada em plenário por meio de emenda porque consta do PL 1.730/2021, de autoria do deputado Lúcio Mosquini (MDB-RO) e anexado ao PL 2.633.
Representantes de movimentos sociais receiam que as pressões ruralistas acabem prevalecendo ao final da votação. “Agora, você imagina, agricultor familiar com 2,5 mil hectares! Onde? Na maioria dos municípios em Goiás, um módulo fiscal tem trinta hectares. Eles querem favorecer os grileiros, as pessoas que chegaram na Amazônia ou em alguma outra região que tenha terras da União”, critica Alair dos Santos, secretário de Política Agrária da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
O fim da vistoria de campo é um problema porque, em muitos casos, só ela pode aferir se há vários posseiros ou disputa numa terra. Por vezes, um único invasor toma uma área de grande extensão e a distribui em nome de familiares ou prepostos, num sistema de “laranjas”. Sem a vistoria presencial, é quase impossível verificar esse tipo de situação.
“Imóvel em regularização”
O novo relatório de Saraiva cria ainda o conceito de “imóvel em regularização”. A proposta reforça que a mera inscrição da posse no Cadastro Ambiental Rural (CAR) fará com que seja considerada regular do ponto de vista ambiental, facilitando sua regularização fundiária. A medida joga por terra outros dispositivos do parecer de Saraiva que dificultariam a titulação de áreas desmatadas ilegalmente e o discurso dos defensores do PL 2.633 de que ele não irá incentivar crimes ambientais.
O CAR é um cadastro autodeclaratório criado pelo novo Código Florestal, de 2012, para reunir as informações ambientais das propriedades rurais, em especial as áreas desmatadas e as que devem ser reflorestadas, para auxiliar no monitoramento, prevenção, responsabilização e combate aos crimes ambientais.
O problema é que a imensa maioria dos cadastros ainda não foi checada e grande número deles é fraudado. Na prática, muitos produtores rurais declaram que seguem a legislação, mas continuam desmatando ilegalmente. Para a propriedade ser considerada regular do ponto de vista ambiental, no entanto, o CAR precisa ser validado pelo governo e o responsável pelo imóvel tem que se comprometer com a recuperação dos danos ao meio ambiente.
Juliana de Paula Batista aponta que essa mudança na lei pode generalizar as tentativas de fraude por meio do CAR e estimular ainda mais a destruição da floresta.
Uma análise realizada pelo ISA mostrou que, nas “florestas públicas não destinadas” da Amazônia, o aumento da área com sobreposição de registros do CAR (provavelmente alvo de grilagem) foi de 29%, entre 2018 e 2019. O desmatamento nessas áreas explodiu, e quase dobrou no período, passando de 185 mil hectares para 367 mil hectares, um aumento de 98%.
Em TIs e UCs, a situação se repete: um aumento de 56% dos registros de CAR e um crescimento de 63% no desmatamento. Não à toa, no mesmo intervalo de tempo o desmatamento total nas áreas protegidas da Amazônia cresceu 42% (saiba mais).
fonte: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/pl-da-grilagem-tudo-o-que-voce-precisa-saber