O último relatório da Rede Eclesial Pan–Amazônica (REPAM) indica que, em 25 de maio, o número de casos confirmados de Covid–19 na Amazônia brasileira já ultrapassava 100.000, com 5.531 mortes.
“Com a chegada da pandemia de Covid–19 ao Amazonas, podemos ver, de fato, a fragilidade e deterioração das instituições que atendem à saúde dos povos indígenas”, lamenta o padre salesiano Justino Sarmento Rezende, que se reconhece como Tuyuka e participou ativamente do processo do Sínodo Pan–Amazônico – antes, durante e depois – como assessor da REPAM e, dentro do sínodo, em outubro passado, como especialista em espiritualidade indígena e pastoral inculturada.
A entrevista é de Óscar Elizalde Prada, publicada por Vida Nueva, 27-05-2020. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
“Muitos indígenas já morreram”
Como a expansão do coronavírus está afetando a vida dos povos indígenas na Amazônia brasileira?
Os municípios do interior do Amazonas não possuem hospitais, nem profissionais suficientes para essa pandemia. Na maioria das comunidades indígenas, atendem à emergência enfermeiros e agentes de saúde. Em muitas outras comunidades, só está presente o agente de saúde indígena. Quando há um médico, deve atender uma grande região e não é suficiente. Muitos indígenas já faleceram. Em casos gravíssimos são levados para Manaus, a capital. Mas lá não têm Unidades de Terapia Intensiva e morrem sem receber a atenção necessária.
Aqui em nossa região do Rio Negro, onde vivemos em 23 aldeias, as famílias estão sendo infectadas pela Covid–19. Diante das limitações que estamos enfrentando, foi intensificado o uso de chá com várias plantas de nossa região, tanto para a prevenção, como para a cura da doença. Estamos alcançando resultados satisfatórios, mas alguns casos mais graves ainda estão sendo encaminhados para o hospital. Alguns superam, outros não.
Toda essa situação se agrava com as decisões do Presidente do Brasil. Não está comprometido com essa pandemia de Covid-19. Ele se preocupa com os interesses dos grandes empresários, com a abertura de comércios – Justino Sarmento Rezende
O governo vem sendo duramente criticado por suas incompreensíveis posições diante da crise do coronavírus…
Toda essa situação se agrava com as decisões do Presidente do Brasil. Não está comprometido com essa pandemia de Covid–19. Ele se preocupa com os interesses dos grandes empresários, com a abertura de comércios e a suspensão do isolamento social que os Estados e municípios estão adotando.
Os estados e municípios, por outro lado, estão mais comprometidos com o sofrimento dos povos. Também sentem como o sistema nacional de saúde é frágil diante do avanço avassalador da Covid–19.
“Os povos indígenas se caracterizam por sua capacidade de resistência”
Em algum momento, previram que a Covid-19 chegaria às comunidades indígenas?
Muitos de nós pensávamos que esse vírus não chegaria às comunidades indígenas distantes das cidades. Infelizmente, chegou, devido aos trânsitos constantes entre as pessoas que vão e vêm das cidades. Para desacelerar seu avanço, foram formados comitês para aumentar a conscientização, controlar e acompanhar o trabalho das pessoas. Isso tem ajudado nossa região. Os povos indígenas se caracterizam por sua capacidade de resistência.
Como estão respondendo as ameaças que, há muito tempo, as populações indígenas do país enfrentam?
A situação de tensão entre os povos indígenas do Brasil, desde que os exploradores atacaram nos litorais, não parou. Nossos antepassados sentiram na pele as enormes diferenças que existem. Sentiram-se ameaçados, caçados e assassinados. Desde então, a situação de perigo é constante e se expressa na perseguição, expulsão do território e assassinato de líderes. São práticas comuns no Brasil. Por isso, nós, povos indígenas, afirmamos que somos indígenas em resistência.
Alguns direitos consagrados na Constituição brasileira de 1988 foram resultado de lutas e persistências, também com o compromisso de pessoas aliadas a causas indígenas. Mas, mesmo com a garantia desses direitos, não faltam projetos de lei que busquem mudar sua implementação, contra o que a Constituição Federal diz sobre povos originários, suas terras, seus costumes, sua educação, suas línguas.
“Os discursos do presidente causam indignação”
As tensões dos povos indígenas em relação aos governantes do Brasil, e ainda mais devido ao coronavírus, fazem parte do dia a dia. Diariamente, os discursos do Presidente e de seus ministros causam indignação – Justino Sarmento Rezende
Como são as relações com o governo no momento atual que vive o país?
As tensões dos povos indígenas em relação aos governantes do Brasil, e ainda mais devido ao coronavírus, fazem parte do dia a dia. Diariamente, os discursos do Presidente e de seus ministros causam indignação não apenas em nós, povos indígenas, mas em muitas pessoas que não concordam com essa maneira de ver as pessoas. Diante disso, os povos originários reassumem suas lutas e resistências, que já fazem parte de nossas histórias. A luta continuará.
A destruição da Amazônia também não parou…
Embora o projeto governamental tenha permitido a entrada de empresas de mineração, o desmatamento das florestas, a invasão de terras demarcadas, etc., de nossa parte, os povos indígenas e as instituições que nos apoiam, estamos aqui para mostrar que enquanto estivermos vivos, a resistência será nosso instrumento de defesa da vida. Vivemos assim por mais de cinco séculos. Resistiremos e viveremos por muitos mais séculos.
Perseguição da Igreja profética
Qual tem sido o papel da Igreja diante dessas ameaças que os povos indígenas sofrem?
Sou sacerdote há 26 anos e estou bastante comprometido com nossas causas, principalmente no campo da reflexão, da conscientização e da participação no cotidiano das pessoas onde trabalho.
Aqui no Brasil, recentemente, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e os especialistas que foram ao Sínodo da Amazônia emitiram um documento com sérias exigências ao Presidente, para que sejam assumidas as urgências de atenção aos povos da Amazônia, principalmente aos povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e cidades isoladas, bem como aos povos indígenas que vivem nas grandes cidades. No entanto, repercutiu muito pouco, mas é a atitude profética da Igreja.
Sendo profética, a Igreja também é perseguida pelo governo atual. Mas é preciso dizer que, infelizmente, temos no Brasil uma grande parcela de católicos que defendem radicalmente as atitudes e projetos do governo atual – Justino Sarmento Rezende
Sendo profética, a Igreja também é perseguida pelo governo atual. Mas é preciso dizer que, infelizmente, temos no Brasil uma grande parcela de católicos que defendem radicalmente as atitudes e projetos do governo atual. Também, nesse sentido, vivemos uma sensação de compaginar com um projeto de morte.
As decisões dos Padres Sinodais e a exortação pós-sinodal ‘Querida Amazônia’ já tiveram alguma repercussão no Brasil?
Antes que fizéssemos as reuniões para colocar em prática os encaminhamentos do Documento Final do Sínodo da Amazônia, e antes que fosse lançada a exortação apostólica Querida Amazônia, a pandemia de Covid–19 já estava presente no Brasil.
Com o isolamento social que estamos vivendo, vários encontros foram cancelados. No entanto, a nota dos bispos da Amazônia brasileira sobre a situação dos povos e das florestas nos tempos da pandemia de Covid–19 é um documento muito contundente e profético.
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Grilagem, garimpo e subnotificação reforçam invisibilidade e iniquidades dos indígenas em meio à pandemia
Com o título Invisibilidades e iniquidades na Amazônia: povos indígenas e a Covid-19 a Ágora Abrasco recebeu em 21 de maio pesquisadores indígenas e não indígenas para refletir sobre as dificuldades que os povos originários, em particular os localizados na Amazônia, enfrentam durante a pandemia. Como consenso um triste retrato: o preconceito e iniquidades estruturais só agravaram com a disseminação do SARS-CoV-2.
A reportagem é de Bruno C. Dias e Maria Thereza Reis, publicado por Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, 28-05-2020.
Participaram do painel Valéria Paye Tiriyo-Kaxuyana, integrante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB); Inara do Nascimento Tavares, professora do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e integrante do Grupo Temático Saúde Indígena da Abrasco; Pedro Rapozo, professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade do Estado do Amazonas (PPGICH/UEA) e coordenador do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos Socioambientais da Amazônia (NESAM/UEA) e Alcida Rita Ramos, professora titular emérita da Universidade de Brasília. A coordenação foi de Luiza Garnelo, integrante do Conselho Deliberativo da Abrasco e pesquisadora do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia).
Luiza Garnelo deu início ao painel falando em números e em invisibilidade. “Temos, segundo o IBGE, 896.900 índios, em suas terras, e no território brasileiro. Na Amazônia, 342.800. São números estimados, pois há populações que não aparecem nas estatísticas oficiais”. Luiza também explicou que os povos, espalhados por todo o território nacional, são atendidos, na saúde, pelo Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, o SasiSUS, parte constitutiva do SUS, coordenada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Sesai. Luiza pontuou que os problemas enfrentados pela rede são agravados pela situação de extrema vulnerabilidade social, que se agudizam com a pandemia, em “pessoas completamente destituídas de oportunidades, que têm seu território ameaçado, têm suas vidas roubadas, desde que o primeiro colonizador pisou nas praias brasileiras”.
Valéria Paye Tiriyo-Kaxuyana ressaltou o momento atual e o preconceito estrutural às populações indígenas. “Vemos uma política de genocídio. Não há uma preocupação com as vidas, muito menos para os povos indígenas. Há um preconceito institucional e estrutural no Estado”. O painel aconteceu no dia 21 de maio, um dia antes da divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, quando Abrahan Weintraub, ministro da educação, proferiu seu ódio à diversidade: “Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. […] Acabar com esse negócio de povos e privilégios”, disse o ministro. O Ministério Público Federal pediu explicações a Weintraub.
A integrante da COIAB demonstrou ainda preocupação com a falta de estrutura e organização do subsistema de saúde indígena e com a subnotificação de casos de Covid-19. “A gente sabe que a subnotificação está acontecendo na sociedade como um todo e esse preconceito enraizado está levando aos registros da negação das nossas identidades, do nosso jeito de nos organizar. Há denúncias de pessoas que são identificados em postos [de saúde] como pardos”, afirmou.
Ao final, Valéria falou demonstrou preocupação com os rumos dados ao projeto de lei 2633/2020, que partiu de uma iniciativa popular para abrir possibilidade de legalizar a grilagem. “O isolamento dos povos continua deixando-os vulneráveis, porque apesar deles estarem nos seus territórios, nos seus espaços, os invasores de toda natureza não estão descansando e estão aproveitando este momento para ocupar, para invadir as terras indígenas”, e completou “Nós não podemos contar com o Executivo, pois desde o início fomos declarados como inimigos e o inimigo você tem que acabar, você tem que matar”.
Planos de ação para a proteção dos povos indígenas
Inara do Nascimento Tavares iniciou sua fala abordando desigualdades e iniquidades, fez reflexões para o momento de luto e destacou as ações de autonomia dos povos indígenas diante do risco de genocídio, não só durante a pandemia, e as ações das associações científicas que se posicionam politicamente frente a um Estado genocida. “O princípio da equidade do SUS deve abraçar povos indígenas e quilombolas, precisa atender as diversidades e deve combater as iniquidades estruturais” sentenciou Inara, ressaltando a autonomia dos povos originários para o exercício da equidade.
A integrante do GT Saúde Indígena da Abrasco comentou sobre nota da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), quando do cancelamento do Acampamento Terra Livre, uma grande assembleia de povos indígenas que acontece há 16 anos na capital federal: “Quando o movimento indígena decidiu pelo cancelamento do Acampamento Terra Livre, a nota da Apib deixa clara a necessidade de enfrentar essa pandemia e entendê-la como uma agressão à vida”, afirmou.
“Temos que votar o PL como foi pensado”, disse a pesquisadora sobre o Projeto de Lei 1142/20, que dispõe sobre a criação do Plano Emergencial de Enfrentamento à Covid-19 para povos indígenas. O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 21 e agora segue para votação no Senado. No fim, Inara pontuou ainda sobre a importância dos profissionais de saúde. “Se a situação não está mais perigosa é porque estão havendo ações no território, em especial por agentes de saúde”.
Pedro Rapozo iniciou sua fala saudando profissionais de saúde que trabalham nas comunidades rurais nos territórios indígenas, os pesquisadores e a universidade. “Em meio a esta crise, a nossa existência e a nossa resistência continuam, em todos os momentos e de todas as formas”. Ele afirmou que “a Amazônia brasileira e os povos originários nunca estiveram alheios aos processos de globalização da economia capitalista mundial e todo impacto causado por esse processo. E o percurso desse processo tem ignorado o conhecimento científico e os saberes tradicionais dos povos indígenas. É necessário compreender que essa desigualdade e essa invisibilidade são socialmente produzidas pelas políticas genocidas do Estado”.
O pesquisador também expôs a disparidade das notificações oficiais e das notificações comunitárias. “Essa subnotificação é uma violência institucionalizada por uma necropolítica que produz invisibilidade” ressaltou Rapozo.
Mais de 50% do estado do Amazonas é composto por territórios indígenas protegidos, que deveriam ser reconhecidos como históricos e milenares, mas acontece justamente o contrário. “A falta de reconhecimento jurídico mostra a fraqueza desse respeito e ameaça esses territórios”, disse Pedro Rapozo. “Existem outros fatores de vulnerabilidade que ampliam os riscos de transmissão da Covid-19 entre os indígenas, como o narcotráfico e a exploração de madeiras e do garimpo. Temos pensado o processo da doença também pela ineficiência das ações do poder público e do seu desmonte”, concluiu.
Alcida Ramos fez um posicionamento crítico ao Estado brasileiro. “Há uma continuidade mórbida na tentativa de eliminar os povos indígenas no Estado brasileiro, uma letalidade branca que, se não mata pelas armas, mata pela burocracia”. A professora afirmou que, depois de duas décadas, não esperava uma epidemia deste tamanho e com esta letalidade imensa depois das invasões dos garimpeiros e as epidemias de malária, que levaram muitas vidas dos Ianomâmis. “Essa epidemia desnuda o Estado brasileiro. Não é nada como farsa, mas sim como tragédia que vai se repetindo, a toda hora”, completou.