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Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*
A aliança escravista-colonial-capitalista, para impulsionar sua pauta econômica, destruiu o que restava da democracia no Brasil
Jacob Gorender inicia sua célebre obra, Brasil em preto & branco, chamando a atenção do leitor para o tamanho da extensão territorial do Brasil, destacando, também, que da colonização espanhola no continente americano resultaram 18 países independentes, enquanto que da colonização portuguesa, no mesmo continente, restou apenas um único Estado, o Brasil. E, indaga: “Donde se origina esta característica de nosso país?”
A resposta que ele mesmo propõe é: “O que, no fundamental, permitiu ao poder central o triunfo sobre tendências fragmentadoras e a manutenção da unidade do território nacional foi a existência de uma classe dominante nacionalmente coordenada pelo interesse comum de defesa da instituição escravista”. Fato é que a possibilidade de exploração do trabalho escravo foi o ponto de equilíbrio entre as diversas frações da classe dominante nacional e destas com o Estado colonial e imperial.
Séculos se passaram e ao se deparar com as notícias das últimas semanas relativas às tensões entre o poder central e a classe dominante nacional, a remissão ao questionamento e à conclusão de Gorender são inevitáveis.
O atual cenário social, político e econômico do Brasil apresenta um conflito explícito entre as frações ideologicamente diversas da burguesia brasileira, mas este conflito não gera qualquer tipo de ruptura, pois o que acaba prevalecendo é o pacto delimitador das “agressões” que mantém as coisas, na sua essência, exatamente como são – e assim há muito tem sido, cabe frisar.
Cumpre, então, indagar: Donde se origina a estabilidade institucional em um país cuja classe dominante burguesa é integrada, de forma predominante, por liberais, autodenominados democráticos (alguns deles, inclusive, tidos como de “esquerda”, defensores dos Direitos Humanos), conservadores e fascistas, e estes se confrontam publicamente?
A resposta, que serve, inclusive, para demonstrar que o escravismo não foi efetivamente superado entre nós, já que esta aparentemente estranha unificação tem cor, vai na mesma linha daquela apresentada por Gorender, qual seja: o que, no fundamental, permite a estabilidade das conflitantes (na aparência) relações das frações burguesas nacionais é a possibilidade de manter a exploração do trabalho em níveis de espoliação cada vez mais intensos e, com isso, proporcionar à classe dominante como um todo (ainda que esta seja cada vez menos numerosa) riqueza acumulada, propriedade privada, poder político e conforto social.
Para todos os demais, integrantes da majoritária classe trabalhadora, o que se reserva é a escassez, a submissão, a opressão, o sofrimento e a esperança vazia em um futuro melhor que nunca chega, quando não, a completa exclusão regada a fome e miséria extrema. E os mais diretamente atingidos ainda são utilizados como mote para o argumento ideológico, de sustentação do sistema, de que aqueles que não estão totalmente excluídos e que se encontram em uma relação de exploração, mesmo sem qualquer parâmetro de cidadania e acesso a direitos fundamentais, são seres privilegiados. Estes, como adverte Ricardo Antunes, na visão da classe dominante nacional, são os que ostentam o “privilégio da servidão”.
Alguém para considerar exagerada esta proposição terá que ter vivido totalmente afastado da realidade brasileira, ser amplamente dominado pela alienação, estar integrado no rol dos que se beneficiam diretamente de tudo isso (aos quais se pode incluir aqueles que guardam a ilusão de que são ou um dia serão participantes deste grupo limitado), ou, ainda, pretender alguma recompensa econômica ou pessoal com a difusão intelectual das distorções e do revisionismo que servem à classe burguesa, em seu projeto de dominação, exploração e preservação de privilégios.
Lembremos o que se passou, recentemente, com a “reforma” trabalhista.
A “reforma”, que de reforma efetivamente nada teve, vez que significou unicamente a inserção a fórceps, na legislação trabalhista, de normas que refletiam unicamente os interesses imediatos e egoístas de grandes conglomerados econômicos, só foi possível pela promoção de uma quebra institucional, pela qual se retirou abruptamente do governo uma Presidenta democraticamente eleita porque esta não demonstrava possuir a força política para levar adiante os desmontes sociais requeridos pelo poder econômico, tidos, por este, como necessários para, no contexto de crise econômica, manter as suas margens de lucro (embora isto se pronunciasse na forma de uma demanda da “economia”).
O objetivo do golpe institucional foi substituir a chefia do poder político central, entregando-a a um governante que não trazia consigo qualquer compromisso eleitoral e com relação ao qual também não se concederia qualquer pretensão em termos de reeleição, dada a sua condição pessoal de subjugamento por conta das inúmeras denúncias de que era alvo no âmbito da Lava Jato. Este ator poderia (e deveria) fazer o “serviço sujo” de levar adiante, por meio da supressão das garantias constitucionais, as “reformas” requeridas pelos segmentos dominantes do poder econômico nacional e internacional e o fez sob a constante vigilância da grande imprensa e com o inestimável apoio de parlamentares (muitos deles também aturdidos pelas ameaças da Lava Jato) e até mesmo de integrantes do Judiciário. Vale lembrar que o personagem em questão se apresentou para o serviço ao publicar, ainda como integrante do governo, o projeto de seu partido, “Ponte para o Futuro”, no qual as “reformas” trabalhistas e previdenciárias apareciam como prioridades absolutas.
O que resultou do golpe – e que constituiu a sua motivação – foi, como todos sabem, a realização da “reforma” trabalhista, consagrada na publicação da Lei n. 13.467/17.
Mas é notório, igualmente, que o processo legislativo da Lei n. 13.467/17, desde a elaboração até a sua aprovação, foi completamente irregular, afinal, era preciso correr, já que mesmo o governo ilegítimo de Temer tinha prazo de validade (pouco mais de 2 anos) e não se tinha, naquele instante, qualquer segurança quanto ao que poderia advir nas eleições de 2018 (embora, a outra parte do golpe, que era a prisão política de Lula, já vinha sendo devidamente encaminhada, de modo a impedir a sua participação nas eleições). Não que, historicamente, os governos de Lula não tivessem, a seu modo, integrado a aliança que manteve a exploração do trabalho em nível abaixo do pacto constitucional de 1988, mas a eleição do PT representaria certo risco para a continuidade do novo patamar de rebaixamento instaurado pela Lei n. 13.467/17, vez que com relação ao evento específico da “reforma” trabalhista o partido se manteve aberta e explicitamente em posição de contrariedade.
Fato é que os vários assaltos à regularidade formal democrática e os atropelamentos das garantias constitucionais, inclusive no âmbito do Direito Penal, que conduziram à “reforma” trabalhista e à sucessão do governo Temer foram praticados a céu aberto sob muitas cobranças ameaçadoras, o incentivo e os aplausos efusivos da grande imprensa, das representações empresariais e financeiras, do Parlamento, de economistas liberais, de conservadores, de fascistas e do próprio Supremo Tribunal Federal (conforme este mesmo acabou assumindo, recentemente, no julgamento do Habeas Corpus do ex-Presidente Lula).
Vale destacar que a ruptura com o processo ainda incipiente e embrionário da construção de uma ordem democrática no país – cumprindo lembrar que efetivamente nunca tivemos uma democracia que atendesse de fato os interesses da maioria da população brasileira – contou, também, com o silêncio de certos “progressistas” e a indiferença ou até mesmo o apoio de alguns poucos ditos “revolucionários”, isto porque a possibilidade de reduzir custos da exploração do trabalho, impor maior sofrimento a corpos determinados, sobretudo, negros e negras, inviabilizar o acesso à justiça por trabalhadores e trabalhadoras, desmantelar e desconfigurar a Justiça do Trabalho são fatores que, no Brasil, dado sua herança escravista, unificam ou correm ao largo das preocupações postas em primeiro plano.
Com a eleição de um governo comprometido com a pauta neoliberal, as alianças em torno do processo de destruição dos direitos sociais se mantêm vigentes. Neste sentido, é possível verificar que quando os efeitos pretendidos (embora não publicamente admitidos) da “reforma” trabalhista se produziram, quais sejam, aumento do desemprego, redução de salários, falência de sindicatos, perda de direitos conquistados em negociações coletivas, negação do acesso à justiça para os trabalhadores e trabalhadoras, aumento das formas precárias de contratação (terceirização, trabalho intermitente), progressão da informalidade, disseminação do sofrimento e da miséria, as alianças se voltaram à atividade de manter a vigência e a incidência concreta dos termos notoriamente inconstitucionais da “reforma”, notadamente com relação à vedação do direito ao acesso à justiça, assumindo protagonismo relevante neste aspecto o próprio Poder Judiciário trabalhista, em todas as suas instâncias, e, sobretudo, o Supremo Tribunal Federal.
A conivência em torno do retrocesso e do descarte das garantias constitucionais, fincada sobre a base do pacto em torno da maior extração de valor da força de trabalho, no entanto, alargou as possibilidades do domínio político, com exclusão, é claro, de qualquer alternativa de centro-esquerda, para evitar riscos de retrocesso na “conquista” auferida, como também para manter aberta a janela de oportunidades em torno de novos ataques aos direitos sociais, afinal, ainda estava sem conclusão a pauta da “reforma” previdenciária.
Foi assim, de dentro dessa aliança, que se promoveu a ascensão do radicalismo de direita, que acaba saindo vencedor nas eleições de 2018. O governo que aí está, portanto, foi alçado ao poder pela classe dominante e não por culpa do PT, como afirmaram, à época, alguns veículos da grande imprensa, para sombrear o processo em curso (vide, a propósito, matéria da Revista Isto É, de 31/10/18, com o título: “E o PT criou Bolsonaro”).
E o que estava em curso era a concretização de uma aliança do poder econômico com um governo assumidamente de extrema direita, que firmou o compromisso de manter e até levar adiante a pauta econômica, tanto que um de seus principais integrantes, no Ministério da Economia, é um autêntico representante dos interesses do grande capital, com “status”, inclusive, de “imexível”.
Ocorre que este governo, dada a sua configuração ideológica, mostra-se muito pouco disposto a não invadir todas as demais esferas das garantias constitucionais para promover a sua pauta conservadora, aproveitando-se para tanto exatamente da situação de terra arrasada, em termos de regularidade democrática e estabilidade das instituições, que recebeu como legado do próprio processo histórico que possibilitou sua vitória eleitoral.
Dito de outro modo, mais resumido, a aliança escravista-colonial-capitalista, para impulsionar sua pauta econômica, destruiu o que restava da democracia e da normatividade constitucional e institucional no Brasil e, para manter e até ampliar esta mesma pauta, concebeu a possibilidade do poder político ser entregue ao radicalismo de direita.
O que se tem como resultado é uma aliança que corre no fio da navalha, pois aqueles a quem se conferiu tal poder têm a consciência plena do processo histórico que foi aberto e, com isto, vão tocando a passos largos a pauta conservadora, com abalo crescente das bases democráticas e das garantias constitucionais, tanto que se antes flertavam com o golpismo, hoje anunciam publicamente o golpe.
Do outro lado, parcela do setor econômico e algumas frações da classe dominante, notadamente, os ditos liberais, incomodam-se com isto, mas não cabe isentá-los de culpa, até porque já sabiam, desde o início, o problema que estavam criando, como revela a matéria publicada pela revista Veja, de 31/10/18, logo após a eleição de Bolsonaro, com o título “Em caso de emergência, quebre o vidro”, cujo conteúdo expressava a advertência de que competiria às instituições e, notadamente, ao STF, valerem-se da Constituição para combater as ameaças à democracia que poderiam vir do novo governo.
A questão é que o governo tem plena consciência da situação e, com isto, ditando as regras do jogo, tem conseguido, inclusive, manter a estabilidade da aliança por meio de sucessivas concessões (sempre acompanhadas de novas promessas) ao poder econômico, ao mesmo tempo em que aprofunda os abalos democráticos, aumenta a fragilização das instituições e massacra a Constituição. Lembre-se que a aliança em questão já começou dando o fruto da “reforma” previdenciária e logo se anunciou o que viria pela frente: reforma administrativa; reforma tributária; eliminação das limitações ambientais; privatizações etc. Concretamente, em paralelo da pauta econômica neoliberal e antinacionalista tem-se intensificado o percurso autoritário.
Vista a situação por outro ângulo, o que se pode dizer é que o autoritarismo tem sido embalado pelo pacto de aumento da exploração do trabalho, o qual se tem concretizado por meio da destruição das garantias constitucionais conquistadas historicamente pela classe trabalhadora. Assim, o avanço do autoritarismo se dá com a conivência comprometedora dos mesmos que, publicamente, se colocam como adversários do governo e em defesa da democracia e da Constituição.
Fato é que as frações da classe dominante, que são gratas ao governo pelas medidas de redução de direitos sociais, não se importam nem um pouco com o fato de que para se atingir este objetivo sejam agredidas ainda mais a democracia e a Constituição, porque, para elas, os membros da classe trabalhadora, alvos da retirada de direitos, existem apenas para lhes servir, não estando, pois, abarcados pelo conceito de cidadania; são, meramente, seus “instrumentos” para extração de lucros.
Aliás, a suspeita maior é a de que a pressão que fazem publicamente sobre o governo, em dita defesa da democracia e da ordem constitucional, se destina exclusivamente a extrair do governo ainda mais compromissos quanto à retração de direitos sociais, tanto que as iniciativas concretas de enfrentamento político ao governo nunca vão adiante e até retrocedem a cada aceno.
Foi assim, por exemplo, que mesmo diante da postura negacionista do governo federal, que gerou o agravamento da pandemia no Brasil, a governabilidade não se viu abalada e isto, sobretudo, em função da destinação de mais de 5 bilhões de reais do fundo público ao setor produtivo privado, por meio do pagamento de seguro-desemprego a trabalhadores cujos contratos de trabalho foram suspensos ou tiveram salários reduzidos em até 70% durante a pandemia (conforme previsto na MP 936). Tudo isto sem se exigir das empresas beneficiadas qualquer contrapartida em termos de preservação de empregos ou comprovação de necessidade econômica. Cumpre destacar que para as pequenas e médias empresas, que são as que mais empregam e que tiveram que interromper totalmente suas atividades na pandemia, as possibilidades de suspenderem o contrato de trabalho e, principalmente, de reduzirem salários mediante redução de jornada, muito pouco ou nada representaram, em termos de salvaguarda efetiva de seus negócios e preservação de sua estabilidade financeira.
O necessário era o governo ter mantido os empregos, independentemente de trabalho, subsidiando, mediante emissão de moeda, as pequenas empresas (grandes empregadoras), e proibir as grandes empresas de efetuarem dispensas de trabalhadores, com manutenção do pagamento integral de salários, mesmo sem trabalho, como dever de função social decorrente dos lucros e incentivos fiscais historicamente obtidos, nos moldes do que realizaram outros países no mesmo período.
Na prática, a política adotada pelo governo brasileiro representou um investimento público bilionário para potencializar o lucro de poucas grandes empresas (como abertamente reconhecido pelo Ministro Paulo Guedes, aliás, na famigerada reunião ministerial de 22 de abril de 2020), e tudo isto no período em que a maioria da população (e das empresas em geral) teve redução de ganhos e aumento do sofrimento, não resultando de tal inciativa, inclusive, qualquer efeito econômico socialmente relevante, aliás, bem ao contrário, visto que o Brasil, depois do período iniciado em 2017, voltou ao mapa da fome.
Fato é que as MPs 927 e 936, editadas pelo governo durante a pandemia e que trouxeram fórmulas ainda mais aprofundadas de exploração do trabalho, ao nível mesmo da supressão da vida, constituíram o fator de unidade entre o governo e os que, inseridos na classe dominante, tem se apresentado, publicamente, como seus adversários.
Até mesmo entre o STF e o chefe do governo federal, que se apresentam como adversários ferrenhos, o ponto de unidade é o aumento da exploração da força de trabalho. Neste aspecto, aliás, o STF assume posição de extrema relevância, vez que não se chega a este resultado de retração de direitos trabalhistas sem que se abalem as bases jurídicas constitucionais.
Lembre-se, a propósito, que o STF, seletivamente, ainda não se pronunciou sobre a constitucionalidade, posta em discussão por meio de ADIs, de diversos pontos da “reforma” trabalhista e, de forma acelerada, declarou (na ADI 6363) a constitucionalidade da regra contida na MP 936 que permitiu a redução de salários e direitos por acordo individual entre trabalhador e empregador, sob o fundamento de nos encontrarmos em estado de exceção.
Esta unidade de propósitos, mantida em momento pandêmico, adquire uma feição macabra, pois impossibilita uma reação institucional eficaz contra a política negacionista adotada pelo governo, o que explica, de forma mais ampla e real, o fato de se ter chegado, em 26/08/21, a 578 mil mortes por COVID-19 no Brasil.
Aliás, depois de tantas mortes sem qualquer enfrentamento sério em termos de responsabilização, o que já se consagrou como o nosso “novo normal” é a completa insensibilidade com relação à vida alheia. Continuam morrendo, vítimas do COVID-19 e do descaso institucional, de 800 a 1.000 pessoas por dia, mas este fato sequer entra em pauta nas nossas preocupações.
O resultado é que, sem uma reação séria e consistente das demais parcelas da classe dominante, as mortes por COVID-19 se alastraram no país, atingindo, sobretudo, a classe trabalhadora, a qual, também com o aval da classe dominante, foi submetida a condições ainda mais precárias de vida e de trabalho e, como efeito integrado a tudo isso, também sem qualquer objeção institucional relevante, o governo vem aprofundando suas práticas autoritárias, expressas em prisões arbitrárias de líderes de movimentos sociais, em atos de violência pessoal contra pessoas negras, mulheres e transexuais, em abertura de processos administrativos contra professores(as) e servidores(as) públicos, em repressões a greves (sob este último aspecto vide a Instrução Normativa n. 54, de 1o de julho de 2021, do Ministério da Economia, com objetivo de identificar o planejamento de greves na administração pública federal, monitorar as paralisações, promover o corte automático do ponto do servidor que aderir à greve).
E, assim, com esta macabra aliança, retroalimentada por medidas que possibilitaram a maior exploração da força de trabalho, como as MPs 927 e 936, e, ainda, reforçada pelas promessas em torno da adoção de outras intervenções normativas voltadas à abertura de espaços para as iniciativas do setor privado, como as privatizações, a reforma administrativa (PEC 32), a reforma tributária, as aberturas ambientais (já concretizadas pela negação da fiscalização) e o marco temporal (já em curso com o genocídio dos povos originários e por meio da total ausência de políticas públicas sobre o tema das reservas indígenas), a trágica situação brasileira vai só se aprofundando.
No campo das relações de trabalho, restou notória, como já dito, a ineficácia social e econômica da MP 936, tendo esta favorecido, principalmente, às grandes empresas no seu intuito de manutenção das margens de lucro mesmo durante a pandemia, aumentando a extração de valor da força de trabalho daqueles que continuaram trabalhando, por meio da redução de direitos e salários e da majoração da jornada de trabalho, além de suspender a fiscalização estatal acerca do cumprimento das medidas de saúde e segurança no trabalho.
Apesar disso, em 28 de abril de 2021, quando a instauração da CPI da COVID-19 se tornava uma realidade e o número de mortes chegava a 400 mil, a providência tomada pelo governo, com o nítido propósito de manter sob controle as tensões com a parcela da classe dominante, foi a de renovar o agrado ao setor econômico, promovendo, então, a edição da MP 1045. A MP 1045, no ato de sua publicação, praticamente apenas ampliava para mais 120 dias os efeitos da MP 936 (da suspensão dos contratos e redução dos salários).
No entanto, de modo a evidenciar como as forças dominantes se unem e se articulam para majorar a exploração da força de trabalho no Brasil, quando a MP foi submetida à votação na Câmara dos Deputados, a ela foram adicionados vários outros temas, todos na mesma direção da satisfação do interesse econômico. Foram acrescidas ao texto da Medida Provisória mais três formas precarizantes de exploração da força de trabalho, além de novas modificações na CLT, sobretudo, para obstar ainda mais o acesso à Justiça do Trabalho por parte dos trabalhadores e trabalhadoras.
Este autêntico golpe legislativo se fez sem alarde midiático, vez que o noticiário estava propositalmente tomado pelas reiteradas falas do Presidente acerca do voto impresso e a iminência de votação do projeto de lei sobre o assunto no Congresso Nacional. Foi assim que, silenciosamente, na mesma sessão em que se rejeitou o projeto do voto impresso, no dia 10 de agosto de 2021, foi aprovado na Câmara dos Deputados, apenas após dois dias de tramitação, o texto-base da MP 1045, tendo sido mantidos todos os ditos “jabutis” que foram incluídos no texto original.
É notória, no entanto, a inconstitucionalidade deste procedimento de inserção de novos temas em votação de conversão de MP, conforme, inclusive, já definido pelo STF, no julgamento da ADI 5127. É notória, igualmente, a inconstitucionalidade do conteúdo da MP, primeiro por reiterar tema que já foi alvo de decisão do STF, em decisão proferida no dia 16 de junho de 2020 (ADI 6363), quando se declarou que a possibilidade de redução de salários e suspensão dos contratos por meio de acordo individual – ou seja, sem a participação sindical – seria possível apenas em caráter excepcional, pelo período de 90 (noventa) dias. Segundo, porque não se constatou, como justificado no acórdão proferido pelo STF, que a medida foi eficaz para a preservação de empregos. Terceiro, por criar novas formas precárias de exploração do trabalho e promover alterações na CLT com o intuito de obstar o acesso à justiça e ferir o preceito constitucional pertinente à gratuidade.
Resumidamente, a MP 1045, já convertida no Projeto de Lei de Conversão nº 17/2021 (“PLC 17”), diante da aprovação já promovida na Câmara dos Deputados, além de reproduzir os termos da MP 936, o que se refere ao “Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”; a redução proporcional da jornada de trabalho e de salários e a suspensão temporária do contrato de trabalho, também cria: (1) “Programa Primeira Oportunidade de Reinserção no Emprego” (PRIORE); (2) “Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva” (REQUIP); (3) “Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário”.
As novas possibilidades de “contratação” são nitidamente inconstitucionais, pois, a pretexto de visarem, como dito nos considerandos do Projeto, contribuir para o acesso ao trabalho de pessoas em situação de vulnerabilidade, em vez de criarem um mecanismo de inclusão como o das “cotas” sociais, a identificação de um grupo social específico é feita, unicamente, para aproveitar da condição de vulnerabilidade de modo a permitir que a força de trabalho das pessoas integradas ao grupo seja comprada a menor custo, o que se visualiza por meio do expresso afastamento da relação de emprego e da consequente eliminação de direitos constitucionalmente garantidos aos trabalhadores e trabalhadoras em geral.
A vulnerabilidade é adotada, portanto, como fator de redução da cidadania. Concretamente, às pessoas que se consideram em situação de vulnerabilidade, em vez de se conferirem as garantias da Seguridade Social e se promover a implementação de políticas públicas de efetiva inclusão, o que se faz é negar a elas a ordem constitucional, notadamente no que se refere aos direitos trabalhistas, fixados na Constituição como direitos mínimos, conferindo às empresas privadas e ao próprio Estado a oportunidade de se aproveitarem economicamente dessas pessoas. Assim, as instituições brasileiras oferecem às empresas (e ao próprio Estado) os miseráveis, que foram criados exatamente pelas formas precárias já em vigor, para que sejam explorados.
Trata-se, pois, de um autêntico escândalo legislativo, um escárnio, um escracho, bem ao estilo daqueles que reiteradamente pronunciam o chefe da nação, mas que, desta feita, vem proferido pela Câmara dos Deputados, com o apoio explícito da classe dominante, nela incluída a grande imprensa e os seus intelectuais orgânicos. E vale destacar que, diante de tantas reduções de direitos já promovidas, mesmo a dita contratação típica da CLT já não atende o patamar fixado na Constituição. Tanto é assim que o próprio governo Federal, na sua ânsia de afronta aos servidores públicos, já reivindica a possibilidade de efetuar contratações via CLT.
A respeito, ademais, cabe registrar, para novamente demonstrar como, no Brasil, as forças aparentemente adversas se unem quando se trata de aumentar a exploração da força de trabalho, para preservação de interesses diversos, que, em 17 de agosto, quando aumentava a “crise” entre o STF e o Presidente da República, veio a público a notícia – STF tende a permitir contratos CLT na União – no sentido de que o STF, em sinal de trégua e buscando a paz entre os Poderes, no julgamento a ser realizado no dia seguinte, 18 de agosto, referente a uma ação proposta há 21 anos, estaria disposto a autorizar a formalização desse tipo de contratação, facilitando, inclusive, a tarefa do governo no que se refere à aprovação da mesma temática inserida na PEC 32 (reforma administrativa). O julgamento foi suspenso, em razão do pedido de vista do Ministro Nunes Marques.
O PLC 17 (MP 1045) foi encaminhado ao Senado Federal, mas, agora, todas essas questões foram tornadas públicas. Com isto, as organizações dos trabalhadores e trabalhadoras estão tendo a oportunidade de se mobilizar e expor sua contrariedade ao projeto. Por outro lado, as alianças da classe dominante se movem no sentido de pressionar o Senado para que o projeto seja aprovado, não se manifestando sobre as inconstitucionalidades que carrega (https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2021/08/26/importante-fazer-apelo-ao-senado-para-que-a-mp-1045-seja-aprovada-diz-onyx.ghtml; https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/08/26/nao-trabalho-com-a-possibilidade-de-queda-da-mp-1045-diz-dalcolmo.ghtml).
De sua parte, o Presidente da República segue cumprindo o papel que lhe cumpre neste latifúndio, que é o de expressar falas cada vez mais ameaçadoras a respeito de um golpe, para desviar a atenção do noticiário para o campo de suas bravatas e de suas ofensas cotidianas de todo tipo a tudo e a todos, sendo que, para deixar expressa a mensagem de que o pacto de aliança com a classe econômica dominante continua vigente, direciona sua verborragia de fuzil à formulação de críticas à CLT.
Não é por mero acaso, portanto, que em meio ao anúncio de uma mobilização militar golpista para o 7 de setembro, o Presidente vem a público e indaga, sarcasticamente: como é possível criar empregos “com uma CLT tão rígida assim?” (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/08/como-e-que-pode-gerar-emprego-com-uma-clt-tao-rigida-dessa-forma-diz-bolsonaro.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa)
E a classe dominante aplaude e se tranquiliza, afinal, parafraseando Gorender, “o que, no fundamental, tem permitido ao governo federal o triunfo sobre tendências fragmentadoras e a instabilidade institucional é manter sob gerenciamento eficaz os interesses de uma classe dominante nacionalmente coordenada pelo interesse comum de defesa da espoliação da classe trabalhadora”.
Só não se sabe até que ponto o Presidente e seus apoiadores radicais mais diretos não passarão a considerar que a espetacularização possa deixar de ser apenas desvio retórico e se torne algo efetivamente plausível e realizável, até porque carregarem consigo o crédito da reiterada cumplicidade das instituições, das diversas forças políticas e das frações mais influentes da classe dominante, com relação ao desprezo dos preceitos garantidores da ordem democrática e dos direitos individuais e sociais constitucionalmente assegurados.
Neste percurso, ademais, já estão profundamente comprometidos, o Poder Judiciário trabalhista (que vem aplicando, sem qualquer senso crítico, a “reforma” trabalhista), o Supremo Tribunal Federal (que não se pronuncia sobre as inconstitucionalidades de “reforma” e legitima tantas outras inconstitucionalidades, notadamente quando se trata dos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras), as representações das entidades produtivas e financeiras, a grande mídia e a Câmara dos Deputados.
Pode parecer um alarde exagerado, mas a situação chegou a um ponto em que só nos resta como esperança, agora, o Senado Federal, porque se o Poder Legislativo aprovar esta aberração legislativa, integrada a tudo que já se tem por concretizado, não se poderá mais falar concreta e seriamente em regularidade formal democrática e Estado de Direito no país.
Vejamos, então, o que o Senado Federal vai dizer sobre as inconstitucionalidades flagrantes que expressam o PLC 17 (MP 1045), na sessão marcada para o dia 1o de setembro.
Dependendo do que for dito, a manifestação golpista marcada para o dia 07 de setembro pode representar tão somente um evento de comemoração do governo e seus aliados mais diretos da ala conservadora radical no que tange à consolidação do afastamento completo dos freios constitucionais e da consequente dominação plena sobre todas as demais forças políticas e econômicas ligadas à classe dominante, com graves reflexos, por certo, nas vidas de todas as pessoas e, sobretudo, dos trabalhadores e trabalhadoras.
De um jeito ou de outro, o que já se tem como concreto é que as revelações escancaradas por este processo histórico conferem à classe trabalhadora a possibilidade real de extrair o reconhecimento de que está envolvida em um jogo no qual participa apenas como uma peça do tabuleiro e não como quem joga, resultando desta compreensão a esperança de que as forças populares, enfim, acordem e retomem o poder que lhes pertence e o lugar devido no protagonismo da história, o que já poderia ter início, inclusive, no mesmo dia 07.
*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores).
fonte: https://aterraeredonda.com.br/as-reformas-trabalhistas-e-previdenciarias-prioridades-absolutas/
A escravidão que nos habita
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Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*
Reclamações trabalhistas estão sendo criminalizada por decisões judiciais como forma de amedrontar ainda mais o(a) trabalhador(a) que ouse pensar em processar o seu ex-patrão
Há tempos muitos têm destacado que, no Brasil, diante de seu legado escravista, ainda não devidamente superado, a exploração da classe trabalhadora não se dá apenas na lógica econômica da extração de mais-valor do trabalho assalariado, cuja formação, em termos de relações sociais, está fincada não apenas na submissão pela necessidade, como também no processo violento de uma “disciplinação” imposta pelas estruturas jurídicas criminais da vigilância e da punição.
No Brasil a exploração de classe não satisfaz às elites (classe dominante), é preciso também subjugar e humilhar os trabalhadores e, sobretudo, as trabalhadoras, por meio de diversas outras formas de opressão, como as de gênero e de raça, de modo a demonstrar, a cada instante, que as pequenas concessões concebidas no âmbito da racionalidade econômica pela qual se reconhece a necessidade de estimular, preservar e reproduzir a mercadoria força de trabalho não é capaz de alterar o “status” antropológico subalterno em que se circunscreve a classe trabalhadora.
É só a partir dessa chave de pensamento que se consegue explicar o fato de que, no Brasil, direitos historicamente concebidos para preservação e viabilização do modelo de sociedade capitalista, como limitação da jornada de trabalho, idade mínima para o trabalho, salário digno, proteção contra acidentes do trabalho, dentre outros relacionados à organização do modo de produção e melhoria da condição social dos trabalhadores e trabalhadoras são, ainda que em sua forma limitada, vistos como empecilhos ao desenvolvimento econômico ou como privilégios injustificados de alguns poucos trabalhadores(as) que conseguem se inserir no mercado de trabalho, isto quando não são objeto da retórica pervertida pela qual empregadores se apresentam como vítimas oprimidas pelos custos impostos pelos direitos trabalhistas.
É por isso também que os intelectuais orgânicos da classe empresarial brasileira, em diversos campos de atuação, estão sempre de plantão para promover o esvaziamento do conteúdo dos direitos trabalhistas que, após um processo de luta, possibilitado como efeito colateral (não pretendido) do regime democrático, são normatizados. E quando o esvaziamento não é suficiente e um pouco de melhora efetiva das condições de trabalho e de vida é experimentado pela classe trabalhadora, a classe dominante reage para impor retrocessos explícitos na forma jurídica trabalhista, passando por cima, inclusive, se preciso for, dos preceitos garantidores da democracia e das liberdades civis que tanto defende para o desenvolvimento de suas atividades empreendedoras, de modo a deixar claro que nenhuma ascensão generalizada na estrutura estamental que caracteriza a sociedade brasileira será admitida.
E o momento que vivemos é exatamente esse: o da imposição de retrocessos, que não se disfarça e que, bem ao contrário, se pretende claro e até se expressa com escárnio e sarcasmo. É com esse conteúdo e propósito que não apenas se diz, como sempre se fez, que os direitos trabalhistas são responsáveis pela debilidade econômica do país, também se difunde que os(as) trabalhadores(as) que possuem direitos e os defendem são os culpados pelo desemprego e pelo sofrimento de quem não consegue trabalho, ou, ainda, se chega a expressar que as políticas de inserção e de minimização dos efeitos da exclusão e do preconceito historicamente concebidos representam fórmulas de discriminação contra os homens, os brancos e os ricos.
O interessante é que quanto mais à vontade para se manifestar as forças conservadoras se sentem, mais se revela a sua visão de mundo, carregada das marcas da sociedade escravista, caracterizada pela consideração do trabalhador como coisa, do negro como sub-raça humana e da mulher como elemento subalterno e submisso, a quem se reserva unicamente o papel de cumpridora das tarefas invisibilizadas e não remuneradas destinadas à reprodução.
Foi assim que, de agressão em agressão, se chegou ao dia em que a escravidão por dívida foi reativada e tornada alvo de uma homologação judicial, e apresentada como se fosse uma solução inovadora e, ao mesmo tempo, um ato de benemerência para com o devedor (um trabalhador, é claro).
O trabalhador propôs uma reclamação trabalhista pleiteando o reconhecimento do vínculo de emprego e o recebimento dos valores dos direitos daí decorrentes, mas sua pretensão foi julgada improcedente e, por aplicação (ou má aplicação) dos termos da Lei n. 13.467/17, da “reforma” trabalhista, foi condenado ao pagamento de honorários advocatícios do patrono da parte contrária, no importe de R$9.738,62 (em 17/04/19), mesmo sendo beneficiário da justiça gratuita.
A sentença, no entanto, estabeleceu que os honorários em questão ficariam “sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão da gratuidade”. Em sede recursal, o Tribunal manteve a decisão. Iniciada a execução e sem indicação de bens do executado/trabalhador foi determinada a suspensão do processo por dois anos, mas os credores requereram a realização de uma audiência de conciliação e assim se fez.
O que veio na sequência melhor se expressa pela reprodução dos exatos termos constantes da ata de audiência produzida nos autos do processo 0001007-68.2018.5.17.0011, da 11ª Vara do Trabalho de Vitória/ES, em 25 de junho de 2020, até porque a sua publicidade foi autorizada e incentivada pelos protagonistas do ato: “Às 15 horas, aberta a audiência, foram, de ordem do Exmo(a). Juiz do Trabalho, apregoadas as partes. Ausente o executado (….) Informa a Drª. (….) que seu cliente está tentando ingressar na sala de audiência mas enfrenta problemas com o link fornecido neste momento. As partes se conciliaram através da prestação de serviços comunitários pelo autor, em instituições assistenciais que serão indicadas pelo escritório exequente. No prazo de 5 dias o escritório e o autor apresentarão petição indicando a instituição beneficiária e os dias e horários para o cumprimento da obrigação. As partes informam seus e-mails para contato recíprocos: (….) Vindo aos autos a petição, venham os autos conclusos para homologação. As partes autorizam a divulgação desta forma de cumprimento da sentença pela assessoria de comunicação deste Regional, como forma de estimular as partes de buscar meios alternativos de se conciliarem. Audiência encerrada às 15h21”.
Dias depois, em 06 de julho, o acordo foi homologado por despacho: “Vistos, etc. Sendo as partes capazes e devidamente assistidas, o objeto lícito e determinado e não vislumbrando a existência de nenhum vício no negócio jurídico, homologo a transação instrumentalizada na petição de ID 0a8d0c0, para que surta seus jurídicos efeitos. Considerando-se a natureza jurídica das parcelas objeto da transação não há incidência de tributos. Intimem-se as partes. Ultimadas as diligências, arquive-se o feito, com baixa”.
O reclamante, que, inclusive, conforme decisão transitada em julgado tinha o direito de não ser executado, a não ser que fosse provado pelo credor que havia deixado de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão da gratuidade, foi submetido a uma audiência de conciliação. Na audiência, sem a presença do reclamante, a dívida não exigível foi transformada em prestação de serviços, não à comunidade, mas a uma instituição assistencial à escolha do credor, o qual, assim, se apresenta no ato e com a posse jurídica dos serviços futuros do reclamante, que poderá oferecer a quem bem entender (desde que seja uma instituição beneficente), como um bom samaritano, situação que nos remete, igualmente, à modalidade do “escravo de ganho”.
Preceitos jurídicos rudimentares não foram atendidos no ato, pois a dívida civil não se transfere para a pessoa e não há poderes “ad judicia” implícitos para que se imponha ao representado obrigações que ferem direitos fundamentais. Além disso, se o “objeto” do acordo foi prestação de serviços em prol de uma entidade assistencial, e não havendo nada na lei trabalhista que diferencie essas entidades na qualidade de entes empregadores, os tais serviços implicariam, por incidência dos dispositivos legais e constitucionais, a formação de uma relação de emprego, com as obrigações jurídicas consequentes. No entanto, sobre isso nada se falou, porque a hipótese vislumbrada foi a da realização de serviços como pena.
De tanto se admitirem renúncias à direitos nas conciliações trabalhistas, sob o falso argumento de que perante o juiz não haveria vício de consentimento, se chegou, então, ao ponto em que a “conciliação” foi utilizada para impor ao trabalhador/executado um autêntico trabalho forçado, como se sua dívida de natureza civil fosse equiparável à condenação penal onde incide, como forma substitutiva da privação da liberdade, a pena de prestação de serviços à comunidade, que é, ainda assim, de discutível constitucionalidade, dada a sua evidente natureza de trabalho forçado e tendo à vista a previsão do art. 5º, inciso XLVII, alínea “a”, da Constituição Federal.
E cumpre destacar que essa obrigação foi fixada pela própria Justiça do Trabalho por meio da aplicação de preceito inconstitucional (§ 4º do art. 791-A da CLT, introduzido pela “reforma” trabalhista de 2017), que prevê a condenação dos trabalhadores mesmo reconhecidamente pobres e beneficiários da justiça gratuita e que, por enquanto, se mantém vigente (e por muitos aplicada) graças à inconcebível omissão do Supremo Tribunal Federal, que não pauta a ADI 5766).
Mesmo que se diga que não houve obrigatoriedade na “solução alternativa” fixada, o fato de sequer cogitar sobre o respeito aos direitos trabalhistas na execução dos serviços já configura, por si, trabalho forçado, ainda que “espontaneamente” realizado. E, concretamente, diante da espada coercitiva e do vício determinado pela necessidade não há espaço para manifestação livre de vontade. A coação, sobretudo quando institucionalizada, é evidente.
De todo modo, não havendo legalidade no ato de se submeter a trabalhar gratuitamente para pagar uma dívida, a vontade expressa neste sentido, ainda que efetivamente livre fosse (e jamais será), não tem valor jurídico, não podendo, pois, ser corroborada.
Fato é que, traduzindo em outras palavras, a propositura de reclamações trabalhistas restou criminalizada, servindo o exemplo como forma de amedrontar ainda mais o(a) trabalhador(a) que ouse pensar em processar o seu ex-patrão, até porque, como essa “inovação” incentiva, nem mesmo a miséria será fundamento para se eximir de qualquer responsabilidade perante a dívida para com o advogado da reclamada, caso perca a ação, pois, afinal, terá sempre como pagar trabalhando, mediante serviços forçados, retoricamente vislumbrados como “consensuais”.
O curioso, mas nem tanto assim, dada a realidade histórica cultural brasileira, é que nos 79 anos de história da Justiça do Trabalho, onde milhões de reclamações trabalhistas com créditos trabalhistas devidos aos reclamantes, em razão da insolvência ou falência do reclamado, foram arquivados sem o efetivo recebimento dos valores correspondente e ninguém nunca teve essa percepção inovadora de propor que os empresários inadimplentes fossem varrer as ruas da cidade.
O interessante, se é que algo se possa nominar de interessante nesta história, é que em todo acordo se traz uma cláusula penal, vislumbrando a hipótese do não cumprimento por parte do devedor, e, no caso, tal cláusula não foi fixada, restando estabelecida, meramente, na petição de acordo posteriormente protocolada (sem assinatura do reclamante/executado), que “Em caso de descumprimento do presente Acordo, a execução voltará a correr no valor atualizado”.
Não se pode, no entanto, ver nesta situação algum tipo de fato positivo, pois do jeito que a onda vai, com algumas (embora ainda bem poucas, é verdade) pessoas considerando razoável e ponderada a solução dada, daqui a pouco alguém haverá de aprimorar a fórmula e fixar a única “cláusula penal” compatível com a obrigação fixada: “100 chibatadas no pelourinho da praça” (que será reinaugurado pelo governante de plantão, com financiamento privado).
Extrapolando os limites negociais, alguns mais auspiciosos, aderentes da ideia e atentos à história nacional, podem até ter a “luz” de se socorrerem de precedentes legislativos vigentes no Brasil no século XIX, que previam a prisão do trabalhador “livre” (empreiteiro) que abandonasse a fazenda sem prestar o serviço que havia se comprometido “por contrato”.
A Lei de 13 de setembro de 1830, por exemplo, tratando, indistintamente, do trabalho por empreita ou por tempo determinado, previa que: “Art. 5º. O prestador de serviços, que evadindo-se ao cumprimento do contracto, se ausentar do lugar, será a elle reconduzido preso por deprecada do Juiz de Paz, provando-se na presença deste o contracto, e a infracção. Art. 6º. As deprecadas do Juiz de Paz, tanto neste caso, como em qualquer outro, serão simples cartas, que contenham a rogativa, e os motivos da prisão, sem outra formalidade mais, que a assignatura do Juiz de Paz, e seu Escrivão”.
E a Lei n. 108, de 11 de outubro, de 1837, que regulava os contratos de locação de serviços firmados pelos colonos, estabelecia que: “Art. 9º O locador, que, sem justa causa, se despedir, ou ausentar antes de completar o tempo do contracto, será preso onde quer que fôr achado, e não será solto, em quanto não pagar em dobro tudo quanto dever ao locatario, com abatimento das soldadas vencidas: se não tiver com que pagar, servirá ao locatario de graça todo o tempo que faltar para o complemento do contracto. Se tornar a ausentar-se será preso e condemnado na conformidade do artigo antecedente.”
O mais triste e deprimente de tudo isso não é ouvir alguém aplaudindo a iniciativa, considerando-a uma saída eficiente para melhorar os dados estatísticos das Varas, abarrotadas que estão de processos com condenações de reclamantes, parados à espera de que pobre fique rico; o pior é não poder dizer que de tanto retroceder chegamos ao ponto de retomar a época da escravidão, pois esse episódio, somado a tantos outros, só evidencia que da escravidão, de fato, nunca nos desgarramos.
*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (estúdio editores).