América Latina 2021: retrospectiva

“Enquanto a mera reprodução social produzir medo, ódio e indiferença em escala massiva, os bolsonarismos deste mundo, prosperarão. O futuro deste presente, não pertence aos médicos da contenção, mas aos monstros da aceleração”, escreve Fabio Luis Barbosa dos Santos, professor da Unifesp e autor, com Daniel Feldmann, de O médico e o monstro. Uma leitura do progressismo e dos seus opostos (Elefante: 2021).

Eis o texto. 

1. Os governos responderam de forma distinta às tensões acirradas pela pandemia. E também as populações. Na América do Sul, rebeliões eclodiram no Paraguai e na Colômbia, enquanto no Peru, as ruas reagiram a mais um impeachment ilegítimo, derrubando um presidente. No Chile, a peste foi insuficiente para desmobilizar a população, e os desdobramentos eleitorais da rebelião destampada em outubro de 2019, ganharam inicialmente os contornos de um protesto, sob outra forma.

2. Os fluxos da rebeldia durante a pandemia evidenciam uma relação antitética entre progressismo e rebelião: onde o progressismo está mais vivo como forma política, mais velas ainda são acesas no altar eleitoral, e menos chances há de as ruas destamparem. Mais do que uma esperança política, o progressismo se converteu em uma política da espera.

3. Do ponto de vista da ordem, ChilePeru e Colômbia vivem, em um momento tardio, o desgaste das formas políticas associadas ao neoliberalismo. Formas que em outros casos, foram reconstituídas pelo progressismo – como no México. Nesses países que ficaram fora da onda, as rebeliões produzem uma crise de legitimidade comparável à que desembocou no progressismo, e as formas de encaminhamento desta crise tendem a mimetizá-las: entre eleições e Constituições, é possível que o alcance da mudança se limite a um reordenamento político e institucional.

4. Está claro que a demanda constitucional é justa e legítima nos três países. Mas quando recordamos que VenezuelaBolívia e Equador também reescreveram constituições no começo do século, é inevitável o sabor amargo da reprise. Nesses países, o quadro institucional foi reordenado para estabelecer as balizas de um novo padrão de dominação ― uma hegemonia progressista, poderíamos dizer.

5. Ou nem isso. No Chile, os “novembristas” que acordaram com Piñera, apostaram que o protesto das ruas ganharia forma eleitoral. Foi uma aposta arriscada, que em um primeiro momento, pareceu exitosa. O povo endossou a constituinte, então dominada por candidatos independentes e de esquerda. A direita ficou sem poder de veto e uma mulher mapuche, assumiu a presidência. O berço do neoliberalismo, prometia a tumba do neoliberalismo.

Nesse contexto, o ex-líder estudantil Gabriel Boric, emergiu como uma versão renovada e radical do progressismo. Mas ao mesmo tempo, ganhou força um desejo de ordem, e o pinochetista Jose Antonio Kast venceu o primeiro turno presidencial.

6. O drama chileno merece reflexões profundas, que não cabem aqui: de onde vem a força de uma retórica anticomunista, em um mundo em que o comunismo não existe? Parece que sua eficácia está na produção do conformismo.

Mas que mundo é esse, em que as pessoas preferem o sofrimento conhecido, a investir no novo? De onde vem a força do medo e o desejo de ordem? A despeito do seu desenlace, a eleição presidencial chilena nos lembra que as pessoas podem odiar o existente, em nome de algo pior.

7Boric dificilmente abrirá as alamedas por onde passará o homem livre, como desejou Allende. Mas tampouco se carimbou o fim da história: o futuro chileno, não está mais sequestrado pelo passado.

Se o golpe de 73 congelou a revolução na América do Sul, a vitória de Kast congelaria a rebelião.

8. A mudança no continente, se mudança virá, vem de ruas que não foram pavimentadas pelo progressismo, e não mais dos países sob sua gestão ou na expectativa dela, como era o caso há vinte anos. A rebeldia no Chile, na Colômbia e no Peru, não cabe em urnas progressistas.

No entanto, esta potência rebelde está em busca de novas linguagens políticas para instituir um mundo diferente. Premida entre o descrédito do socialismo do século XX e a colonização da subjetividade pelo mundo da mercadoria, a potência criadora das ruas arrisca a se tornar cativa da gramática da ordem, que produz essa rebeldia.

9. As disputas eleitorais no Equador e no Peru em 2021 indicam que o tempo do progressismo está passando, enquanto forma da expectativa de mudança. No Equador, a fissura no progressismo abriu espaço para uma candidatura em defesa da natureza, enquanto no Peru, os sentires populares foram cativados por um outsider, deslocando o lugar da esquerda convencional. Esses sinais dos tempos não significam nenhum determinismo, pois há países em que a forma progressista ainda condensa esperanças ― seja porque nunca chegou, como na Colômbia, seja porque nunca termina de partir, como no Brasil.

10. A candidatura indígena foi denunciada pelo progressismo como um cavalo de Troia da direita e dos Estados Unidos. Nada surpreendente, já que Rafael Correa denunciou o “esquerdismo”, o “ecologismo” e o “indigenismo” como seus piores inimigos. E não foi retórica: Yaku Pérez foi preso seis vezes e na última delas, foi chicoteado por um látego com pregos nas pontas. Não é preciso maquinações do imperialismo para entender porque Yaku pregou o voto em branco no segundo turno, quando o correísmo foi derrotado.

11. A violência correísta é sintoma de um fenômeno mais amplo: tendências repressivas na região não se restringem aos países comandados pela direita, mas emergem também no seio do progressismo. O regime mais próximo a uma ditadura dos tempos da Guerra Fria, não é a Colômbia de Ivan Duque nem o Brasil de Bolsonaro, mas a Nicarágua de Ortega.

12. Na Venezuela, passados mais de vinte anos de bolivarianismo, constata-se um tecido social esgarçado, em que a corrosão das instituições e a informalização da economia produzem um cotidiano atravessado por corrupção e violência. A militarização do Estado se intensificou, enquanto proliferam poderes paraestatais à moda colombiana, costurando uma economia política da delinquência.

Bolsonaro se elegeu, denunciando o risco de que o país virasse uma Venezuela. Parece que acertou o diagnóstico, mas não o caminho.

13. Enquanto isso, Cuba descobre que tem mais em comum com os países da região, do que se gostaria. Desde o colapso soviético, a revolução está na defensiva. O «socialismo primitivo» enfrenta uma equação econômica insolúvel, em um mundo nada socialista e muito primitivo. Como em toda a região, os impasses se agravam e as insatisfações também. Premido entre o instinto do contrôle e o anseio da mudança, o Estado se revela desconectado da população, para quem o passado é revolucionário, mas é passado.

14Emilia Viotti dizia que a América Central é a caricatura da América Latina. Ou seja: onde os traços característicos do continente, aparecem mais exagerados. Se a dessocialização neoliberal intensifica a violência econômica e política em toda parte, nesta região descobrimos diferentes vias do autoritarismo.

Na Nicarágua, encontramos o progressismo como tirania, apoiando-se cada vez mais na força bruta e na fraude. Podemos dizer que é um autoritarismo à moda antiga.

Em El Salvador, o «millennial» Nayib Bukele invadiu o congresso escoltado por militares e destituiu a Corte Suprema, enquanto reina nas redes sociais. O «ditador mais cool do mundo mundial» como se autodescreveu, comanda o congresso, instituiu o bitcoin como moeda nacional, goza de altos níveis de aprovação e é emulado na região. O futuro do autoritarismo, lhe pertence.

15. Mas talvez a situação mais eloquente para os brasileiros, seja Honduras. Este país testemunhou o primeiro golpe jurídico-parlamentar-midiático da região em 2009, contra o liberal Manuel Zelaya.

Desde então, o país foi comandado pelo Partido Nacional, e mais especificamente, por Juan Orlando Hernández (JOH). Vínculos crescentes entre narcotráfico, parmilitarismo e diferentes braços do poder estatal, deram contornos a um narcoestado. Em 2017, JOH impôs de modo fraudulento a reeleição – que ironicamente, tinha servido o pretexto para depor Zelaya. O país que foi o protótipo da «república bananeira» no século XX, derivou para uma narcoditadura.

16. Neste quadro, a pergunta é: como foi possível a eleição de Xiomara Castro, esposa de Zelaya? Para o campo opositor, só um triunfo incontestável à maneira de AMLO no México, impediria uma nova fraude.

Foi a degradação hondurenha que viabilizou alianças com a direita. E o beneplácito dos Estados Unidos, que se vincula ao país pela questão migratória e pelas drogas. Enquanto as caravanas migratórias crescem, o irmão de JOH foi condenado pelos tribunais e numerosos fios soltos vinculam o presidente ao narcotráfico. Estes apoios à direita criaram uma situação na qual o candidato de JOH só poderia se impor pela força, o que as forças armadas não toparam.



17. À primeira vista, o triunfo da esposa de Zelaya, parece uma vingança da história. De fato, a derrota de um regime narcoditatorial, merece celebração. No entanto, o país que Castro encontrará, é diferente daquele que Zelaya encarou. O narcotráfico, as maras, os militares e os paramilitares já existiam, assim como a corrupção e a violência. Entretanto, estas e outras dimensões da degradação nacional foram aceleradas nestes treze anos, conformando uma simbiose visível no narcoestado.

Em um momento de desprestígio de um regime repressor, que acelerou a produção de migrantes e delinquentes em escala massiva, Xiomara Castro emerge como o oposto da aceleração encarnada por JOH: é a alternativa da contenção, que já estava colocada no governo Zelaya. Mas neste meio tempo, a crise se agudizou no país e ao redor: o alcance e os limites da contenção, são outros.

18. Traduzida para o brasileiro: os treze anos de contenção petista não impediu a dessocialização neoliberal, que é o caldo de cultura do bolsonarismo. Por outro lado, a aceleração bolsonarista pode se tornar desfuncional do ponto de vista dos de cima. A aceleração, pode demandar contenção.

19. No entanto, não se trata de um movimento pendular. Assim como em Honduras, a degradação é cumulativa: a tendência é formar frentes cada vez mais amplas, para defender cada vez menos direitos.

Enquanto a mera reprodução social produzir medo, ódio e indiferença em escala massiva, os bolsonarismos deste mundo, prosperarão. O futuro deste presente, não pertence aos médicos da contenção, mas aos monstros da aceleração.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/615532-america-latina-2021-retrospectiva

Em meio ao caos de 2021, movimentos populares lembram vitórias que ajudaram o povo brasileiro

Suspensão de despejo, campanha contra a fome, luz para todos e vacina estão entre as conquistas

Igor Carvalho – Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 23 de Dezembro de 2021 às 08:22

A solidariedade dos movimentos populares levou alimento para milhares de famílias pobres do país – Valmir Neves Fernandes/MST-PR e Giorgia Prates

O ano de 2021 foi profícuo em notícias ruins para os brasileiros. Os efeitos da pandemia, potencializada pela omissão do governo federal, alcançaram diversos setores da vida do país; registramos a triste marca de 600 mil mortos por coronavírus; as florestas e áreas verdes do país, se tornaram um alvo fácil, diante da sanha bolsonarista por riquezas do nosso solo e os povos originários foram vítimas da violenta ofensiva do agronegócio.

Apesar desse cenário, houve vitórias? O Brasil de Fato fez essa pergunta para quatro movimentos populares: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Central dos Movimentos Populares (CMP), Coalizão Negra Por Direitos e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Para todos, há motivos para celebrar.

Na última segunda-feira (13), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu uma medida cautelar incidental, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, prorrogando a suspensão de despejos e desocupações, em áreas urbanas e rurais, até 31 de março de 2022, por conta da pandemia do coronavírus.

Para o MST, essa vitória foi importante e pode garantir a manutenção da ocupação Marielle Vive, em Valinhos, no interior de São Paulo. A área se tornou uma bandeira da resistência. No dia 23 de novembro, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) determinou o despejo das 450 famílias que vivem, desde 2018, na terreno.

Apesar da decisão do TJ-SP não ter sido revogada, ela não pode sobrepor uma determinação do STF. Dessa forma, as famílias, desassistidas pelos malefícios da pandemia e a omissão do governo federal, conseguem manter suas moradias por mais alguns meses, enquanto recorrem da sentença.


Em Valinhos, MST realiza ato em apoio à ocupação Marielle Vive! / João Pompeu/MST

Solidariedade

Em um ano de abandono de políticas públicas e com o avanço da fome, coube à sociedade civil se organizar para salvar a vida de brasileiros atingidos pela extrema pobreza. Por isso, o MST inaugurou, em 11 de novembro deste ano, uma cozinha comunitária nas palafitas do Pina, na zona sul do Recife.

No espaço, o movimento distribui cerca de 500 refeições por dia, para famílias pobres e em situação de rua. A cozinha comunitária recifense é consequência da campanha “Mãos solidárias”, que já entregou 600 mil marmitas e 890 mil toneladas de alimentos da reforma agrária, produzidos pelo MST, em todo o país.

A solidariedade com os brasileiros mais pobres também foi uma dos pontos destacados pela Coalizão Negra por Direitos em 2021. A organização organizou a campanha “Tem Gente com Fome”, que arrecadou R$ 21,5 milhões e distribuiu alimentos para 222 mil famílias cadastradas pela entidade, em todas as regiões do país.


MST já distribuiu, desde o início da pandemia, 5 mil toneladas de alimentos saudáveis / Wellington Lenon

Pressão nas ruas e nos parlamentares

O Senado dos Estados Unidos vetou, no dia 20 de outubro deste ano, o repasse de U$ 17 milhões ao governo brasileiro, que seria utilizado na remoção de famílias de quilombolas em Alcântara (MA).

A retirada das comunidades, que vivem próximas da base para lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB), faz parte do acordo firmado entre os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro, em março de 2019, para exploração da área.

No documento final sobre o veto, os senadores manifestaram apreensão com o governo brasileiro. “A Comissão está preocupada com os relatos de que o governo do Brasil planeja forçar a realocação de centenas de famílias quilombolas para expandir o Centro de Lançamento de Alcântara. Nenhum dos recursos providos por esta lei, ou por leis anteriores, podem estar disponíveis para forças de segurança do Brasil que se envolvam em reassentamentos forçados de comunidades indígenas ou quilombolas.”

No dia 17 de setembro de 2020, uma delegação da Coalizão Negra por Direitos esteve nos EUA, onde se reuniu com congressistas americanos, para atualizá-los sobre a situação dos quilombolas em Alcântara (MA).


Torre móvel de lançamento de satélites na Base de Alcântara / Wikipedia/ Reprodução


A Central dos Movimentos Populares (CMP) lembrou das manifestações de rua, que contribuíram para pressionar o governo federal pela compra das vacinas. Durante o ano, foram diversos atos criticando a omissão do governo.

Enquanto a maioria dos países já avançava com a vacinação, o Brasil começou a vacinar apenas em 18 de janeiro deste ano. Somente após pressão popular, o governo avançou na negociação com os fabricantes de imunizantes. O acordo com a Fiocruz (AstraZeneca), foi anunciado em 12 de março deste ano; a Pfizer, em 9 de fevereiro; e a Johnson & Johnson (Janssen), somente em 31 de março.

Energia

O projeto de lei 1106/2020, aprovado na Câmara dos Deputados no dia 20 de agosto deste ano, simplifica a inscrição da população no programa de Tarifa Social da Conta de Energia (TSEE), que prevê descontos de até 65% nas contas de luz.

O projeto é importante, de acordo com o MAB, pois permite que uma parcela da população, que teria direito ao desconto, possa ser inserido, sem burocracia, na relação de beneficiários do programa.

A implementação da lei é uma demanda histórica do movimento. A tarifa social de energia oferece descontos na tarifa de energia residencial para famílias que fazem parte do Cadastro Único do governo federal e que têm renda de até meio salário-mínimo por pessoa. Os descontos podem ser de 10%, 30% e 65% a depender da faixa de consumo.

Edição: Anelize Moreira

fonte: https://www.brasildefato.com.br/2021/12/23/em-meio-ao-caos-de-2021-movimentos-populares-lembram-vitorias-que-ajudaram-o-povo-brasileiro

Na América Latina, 2021 indica início da derrota do conservadorismo no poder

Analistas avaliam que próximos processos eleitorais serão decisivos para pensar integração regional

Michele de MelloBrasil de Fato | São Paulo (SP) | 23 de Dezembro de 2021 às 08:36

Revolta popular no Chile abriu caminho para convenção constitucional e eleição de Gabriel Boric – Ivan Alvarado / Reuters

O ano de 2021 se encerra com uma nova configuração de forças políticas na América Latina e Caribe. A terceira década do milênio inicia com uma maioria de governos progressistas na região, rememorando o início dos anos 2000, considerado por alguns como a “década ganha”.

Se em janeiro a balança pesava para o conservadorismo, com governos que defendiam uma agenda liberal na economia e uma política contrária às demandas populares, agora em dezembro somam-se ao menos 14 governos afins ao campo da esquerda latino-americana e caribenha.

Alguns eventos decisivos foram: no Chile, a conformação da Convenção Constitucional, com base na paridade de gênero, e presidida pela líder mapuche Elisa Loncon, e a eleição de Gabriel Boric, derrotando a extrema direita; no Peru, a eleição de Pedro Castillo; e, em Honduras, a vitória de Xiomara Castro, derrotando os partidos de direita após 12 anos do golpe de Estado.

Também vale destacar a permanência no poder de Daniel Ortega, na Nicarágua, e a vitória do chavismo nas regionais da Venezuela.


No Chile, movimento que levou à reforma da Constituição também impulsionou eleição do presidente mais jovem da história do país  / Telesur

“Acredito que a ideia de uma nova década ganha é mais uma expressão de vontade que uma realidade. Mas 2022 deve ser um ano divisor de águas. Tivemos um 2021 que ofereceu alguns resultados imprevistos e outros nem tanto. Isso demonstra que não há uma hegemonia de direita na região, ao contrário, há memória dos povos inclusive contra projetos retrógrados”, comenta o jornalista e pesquisador do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag), Yair Cybel.

Para o dirigente do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, entre 2000 e 2014, houve uma disputa permanente de três projetos: um projeto neoliberal, coordenado pelos Estados Unidos; o projeto neodesenvolvimentista, antineoliberal mas que não confrontava os EUA e representava uma aliança de governos populares com a burguesia local; e, por fim, o projeto da Alba-TCP, anti-imperialista e que representava a unidade de governos e movimentos populares.

:: “O capitalismo é a principal ameaça contra a humanidade”, diz secretário da Alba-TCP ::

“A crise do modo de produção capitalista provocou uma crise nesses três projetos e, por isso, nenhum consegue ser hegemônico no continente e o espaço de disputa continua sendo o eleitoral”, defende Stedile.


Jovens colombianos organizam a contenção da violência usando escudos improvisados na linha de frente dos atos da greve geral / Colombia Informa

A economista mexicana e membra da Rede de Intelectuais em Defesa da Humanidade, Ana Esther Ceceña também estabelece outras diferenças nos dois períodos do progressismo latino-americano.

“Sem tirar importância aos processos atuais, mas eles não têm o mesmo tom, propósito tão claro ou possibilidade de articulação tão explícita. O que foi interessante naquele momento é que havia uma liderança e um projeto compartilhado por todos aqueles que se incorporavam a essa onda progressista latino-americana. A presença de Chávez fez a diferença. Era um homem que não simulava, realmente apostava; não pretendia, construía. E isso permitiu que o chamado progressismo tivesse um sentido”, analisa.

“Ele nos deu esperança”: em data de aniversário, venezuelanos refletem sobre Chávez e revolução 

Ceceña defende que essa confluência entre governos progressistas e movimentos populares teve seu momento de máxima expressão com a derrota da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) – proposta de 2005 dos Estados Unidos para a região – que abriu o caminho para a criação da Alba-TCP e da Alba Movimentos.


Contra as manifestações opositoras, movimentos populares bolivianos ocuparam as ruas das principais cidades do país no dia 12 de outubro para celebrar o dia da Resistência Indígena / Presidência Bolívia

Socialismo ou barbárie?

No Chile, Peru e Bolívia os processos eleitorais foram definidos entre polos totalmente opostos. Para os analistas essa polarização entre esquerda e extrema-direita é um reflexo da situação de crise do sistema capitalista.

A expectativa da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) é de crescimento de 5,9% na região, mas ainda em um cenário de riqueza concentrada. O subcontinente latino-americano é a terceira região mais desigual do planeta; somente no Brasil, os 10% mais ricos ganham 29 vezes mais que os 50% mais pobres.

Saiba mais: Pesquisa revela que 10% da população possui 75% da riqueza mundial

“A concentração de capital não oferece alternativa. Aquela ideia de mercados internos que permitiam absorver as crises já não existe. Devemos voltar a pensar a relação humana com a Terra. E isso não é algo romântico ou algo do passado. É a única maneira de ver um futuro possível, já que a outra opção é a ruína. Estamos numa espiral destrutiva: pelas pandemias, pelas armas, o tráfico de pessoas, todos os negócios atuais do capitalismo são absolutamente corrosivos para a sociedade”, defende Ana Esther Ceceña.

João Pedro Stedile defende que as respostas às contradições geradas pela luta de classes no continente virão a partir da elaboração de um projeto popular, autônomo e que vise a superação do capitalismo.

“Temos que acumular forças em torno de programas de mudanças estruturais. O capitalismo já provou que não é a solução dos problemas das massas. O programa não é apenas uma questão teórica, ele é necessariamente um exercício de pedagogia de massas, no qual as massas devem assimilar quais propostas são necessárias para mudar o país”, afirma o membro do MST.


Guillermo Lasso trabalhou com a Bolsa de Valores desde jovem e chegou a ser presidente da Associação de Bancos Privados antes de assumir a presidência do Equador / Reprodução / Twitter

As conquistas da direita

Por outro lado, ainda podemos ver manifestações da presença de centros de poder conectados a um projeto conservador e neoliberal. 

No Equador, a eleição do banqueiro Guillermo Lasso como presidente; na Argentina, o empate nas eleições legislativas, que significou a perda da maioria do Senado pelo peronismo para o macrismo e o crescimento de figuras de extrema-direita. 

Além disso, ganharam corpo plataformas internacionais, como o Fórum de Madri, estimulado pelo partido espanhol de ultra-direitista Vox; o Projeto Veritas, idealizado pelo ex-estrategista da campanha de Donald Trump, Steve Bannon; ou eventos como a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC – siglas em inglês), que teve sua edição brasileira realizada em setembro, organizada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL). 

Isso demonstra que a extrema direita continua a se articular e ainda é um relevante adversário político em vários países.

Leia também: Atacar sistema eleitoral é tática comum para minar confiança nas democracias e gerar caos

“Hoje há uma estratégia continental de projeto de poder dos Estados Unidos, que necessita da região para disputar a hegemonia de poder com a China, por exemplo. É uma estratégia muito clara e muito agressiva contra a América Latina”, comenta a professora da Universidade Autônoma do México (UNAM).


Pedro Castillo foi eleito com a proposta de iniciar um processo de reforma constitucional no Peru para reconhecer o país como um Estado plurinacional / Fotos Públicas

Perspectivas para 2022

Diante desse cenário, as próximas eleições gerais na Colômbia, em maio de 2022, e no Brasil, em outubro, são consideradas chave para determinar a capacidade dos governos e povos da América Latina e Caribe voltarem a atuar em bloco nos organismos multilaterais e no desenvolvimento de políticas sócioeconômicas integradas.

Nos dois países, os candidatos do campo progressista têm ampla vantagem sobre seus adversários. O senador Gustavo Petro, do movimento Colômbia Humana, possui cerca de 42% da preferência, segundo pesquisas divulgadas em dezembro pela empresa Invamer.

Os dois meses de greve geral na Colômbia, na primeira metade do ano, contribuíram para a aumentar o rechaço da sociedade colombiana aos partidos tradicionais de direita e ao uribismo – corrente política que governou o país nos últimos 20 anos.

:: Relembre cobertura completa: Greve Geral na Colômbia ::

No Brasil, Lula da Silva também lidera todas as pesquisas de intenção de voto, com 15 a 20 pontos de vantagem sobre o atual presidente Jair Bolsonaro.


Secretário Execuivo da Alba-TCP, Sacha Llorenti e os chefes de Estado e de governo, reunidos em Havana, para celebrar 17 anos do bloco / ALBA-TCP

A proposta de fortalecer a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), como alternativa à Organização dos Estados Americanos (OEA), e o fortalecimento do Mercosul poderiam ser dois reflexos institucionais da política exterior desses possíveis novos governos.

“O ano de 2022 pode augurar uma mudança de ciclo com o alinhamento das quatro maiores economias da região: Brasil, Colômbia, México e Argentina e, ao mesmo tempo, pode mostrar que nem todas as propostas de mobilização de rua tem uma resposta com avanços de direitos no aspecto partidário-institucional”, comenta Cybel.

Leia também: Na Comuna El Maizal, 4,5 mil famílias constroem projeto socialista para Venezuela

Para o dirigente do MST, as forças populares possuem desafios permanentes de formação, militância política e batalha ideológica.

“A esquerda precisa ter mais clareza de como deve fazer a disputa política na sociedade, que não é apenas ganhar governos, mas disputar o Estado ampliado, como dizia Gramsci – que é a organização da produção, e estruturas como a mídia, o judiciário. É só isso que irá garantir que além das vitórias eleitorais acumulemos forças”, afirma João Pedro Stédile.

Se os movimentos populares conseguirem articular-se em plataformas continentais, há maior possibilidade de ampliação de direitos, analisa Yair Cybel.

“O que será interessante de observar em 2022 será ver o que acontece com os processos de levante popular que não terminam numa institucionalização da oposição”, comenta o jornalista argentino.

Edição: Arturo Hartmann

fonte:

Na América Latina, 2021 indica início da derrota do conservadorismo no poder

Analistas avaliam que próximos processos eleitorais serão decisivos para pensar integração regional

Michele de Mello – Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 23 de Dezembro de 2021 às 08:36

Revolta popular no Chile abriu caminho para convenção constitucional e eleição de Gabriel Boric – Ivan Alvarado / Reuters

O ano de 2021 se encerra com uma nova configuração de forças políticas na América Latina e Caribe. A terceira década do milênio inicia com uma maioria de governos progressistas na região, rememorando o início dos anos 2000, considerado por alguns como a “década ganha”.

Se em janeiro a balança pesava para o conservadorismo, com governos que defendiam uma agenda liberal na economia e uma política contrária às demandas populares, agora em dezembro somam-se ao menos 14 governos afins ao campo da esquerda latino-americana e caribenha.

Alguns eventos decisivos foram: no Chile, a conformação da Convenção Constitucional, com base na paridade de gênero, e presidida pela líder mapuche Elisa Loncon, e a eleição de Gabriel Boric, derrotando a extrema direita; no Peru, a eleição de Pedro Castillo; e, em Honduras, a vitória de Xiomara Castro, derrotando os partidos de direita após 12 anos do golpe de Estado.

Também vale destacar a permanência no poder de Daniel Ortega, na Nicarágua, e a vitória do chavismo nas regionais da Venezuela.


No Chile, movimento que levou à reforma da Constituição também impulsionou eleição do presidente mais jovem da história do país  / Telesur

“Acredito que a ideia de uma nova década ganha é mais uma expressão de vontade que uma realidade. Mas 2022 deve ser um ano divisor de águas. Tivemos um 2021 que ofereceu alguns resultados imprevistos e outros nem tanto. Isso demonstra que não há uma hegemonia de direita na região, ao contrário, há memória dos povos inclusive contra projetos retrógrados”, comenta o jornalista e pesquisador do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag), Yair Cybel.

Para o dirigente do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, entre 2000 e 2014, houve uma disputa permanente de três projetos: um projeto neoliberal, coordenado pelos Estados Unidos; o projeto neodesenvolvimentista, antineoliberal mas que não confrontava os EUA e representava uma aliança de governos populares com a burguesia local; e, por fim, o projeto da Alba-TCP, anti-imperialista e que representava a unidade de governos e movimentos populares.

:: “O capitalismo é a principal ameaça contra a humanidade”, diz secretário da Alba-TCP ::

“A crise do modo de produção capitalista provocou uma crise nesses três projetos e, por isso, nenhum consegue ser hegemônico no continente e o espaço de disputa continua sendo o eleitoral”, defende Stedile.


Jovens colombianos organizam a contenção da violência usando escudos improvisados na linha de frente dos atos da greve geral / Colombia Informa

A economista mexicana e membra da Rede de Intelectuais em Defesa da Humanidade, Ana Esther Ceceña também estabelece outras diferenças nos dois períodos do progressismo latino-americano.

“Sem tirar importância aos processos atuais, mas eles não têm o mesmo tom, propósito tão claro ou possibilidade de articulação tão explícita. O que foi interessante naquele momento é que havia uma liderança e um projeto compartilhado por todos aqueles que se incorporavam a essa onda progressista latino-americana. A presença de Chávez fez a diferença. Era um homem que não simulava, realmente apostava; não pretendia, construía. E isso permitiu que o chamado progressismo tivesse um sentido”, analisa.

“Ele nos deu esperança”: em data de aniversário, venezuelanos refletem sobre Chávez e revolução 

Ceceña defende que essa confluência entre governos progressistas e movimentos populares teve seu momento de máxima expressão com a derrota da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) – proposta de 2005 dos Estados Unidos para a região – que abriu o caminho para a criação da Alba-TCP e da Alba Movimentos.


Contra as manifestações opositoras, movimentos populares bolivianos ocuparam as ruas das principais cidades do país no dia 12 de outubro para celebrar o dia da Resistência Indígena / Presidência Bolívia

Socialismo ou barbárie?

No Chile, Peru e Bolívia os processos eleitorais foram definidos entre polos totalmente opostos. Para os analistas essa polarização entre esquerda e extrema-direita é um reflexo da situação de crise do sistema capitalista.

A expectativa da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) é de crescimento de 5,9% na região, mas ainda em um cenário de riqueza concentrada. O subcontinente latino-americano é a terceira região mais desigual do planeta; somente no Brasil, os 10% mais ricos ganham 29 vezes mais que os 50% mais pobres.

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“A concentração de capital não oferece alternativa. Aquela ideia de mercados internos que permitiam absorver as crises já não existe. Devemos voltar a pensar a relação humana com a Terra. E isso não é algo romântico ou algo do passado. É a única maneira de ver um futuro possível, já que a outra opção é a ruína. Estamos numa espiral destrutiva: pelas pandemias, pelas armas, o tráfico de pessoas, todos os negócios atuais do capitalismo são absolutamente corrosivos para a sociedade”, defende Ana Esther Ceceña.

João Pedro Stedile defende que as respostas às contradições geradas pela luta de classes no continente virão a partir da elaboração de um projeto popular, autônomo e que vise a superação do capitalismo.

“Temos que acumular forças em torno de programas de mudanças estruturais. O capitalismo já provou que não é a solução dos problemas das massas. O programa não é apenas uma questão teórica, ele é necessariamente um exercício de pedagogia de massas, no qual as massas devem assimilar quais propostas são necessárias para mudar o país”, afirma o membro do MST.


Guillermo Lasso trabalhou com a Bolsa de Valores desde jovem e chegou a ser presidente da Associação de Bancos Privados antes de assumir a presidência do Equador / Reprodução / Twitter

As conquistas da direita

Por outro lado, ainda podemos ver manifestações da presença de centros de poder conectados a um projeto conservador e neoliberal. 

No Equador, a eleição do banqueiro Guillermo Lasso como presidente; na Argentina, o empate nas eleições legislativas, que significou a perda da maioria do Senado pelo peronismo para o macrismo e o crescimento de figuras de extrema-direita. 

Além disso, ganharam corpo plataformas internacionais, como o Fórum de Madri, estimulado pelo partido espanhol de ultra-direitista Vox; o Projeto Veritas, idealizado pelo ex-estrategista da campanha de Donald Trump, Steve Bannon; ou eventos como a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC – siglas em inglês), que teve sua edição brasileira realizada em setembro, organizada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL). 

Isso demonstra que a extrema direita continua a se articular e ainda é um relevante adversário político em vários países.

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“Hoje há uma estratégia continental de projeto de poder dos Estados Unidos, que necessita da região para disputar a hegemonia de poder com a China, por exemplo. É uma estratégia muito clara e muito agressiva contra a América Latina”, comenta a professora da Universidade Autônoma do México (UNAM).


Pedro Castillo foi eleito com a proposta de iniciar um processo de reforma constitucional no Peru para reconhecer o país como um Estado plurinacional / Fotos Públicas

Perspectivas para 2022

Diante desse cenário, as próximas eleições gerais na Colômbia, em maio de 2022, e no Brasil, em outubro, são consideradas chave para determinar a capacidade dos governos e povos da América Latina e Caribe voltarem a atuar em bloco nos organismos multilaterais e no desenvolvimento de políticas sócioeconômicas integradas.

Nos dois países, os candidatos do campo progressista têm ampla vantagem sobre seus adversários. O senador Gustavo Petro, do movimento Colômbia Humana, possui cerca de 42% da preferência, segundo pesquisas divulgadas em dezembro pela empresa Invamer.

Os dois meses de greve geral na Colômbia, na primeira metade do ano, contribuíram para a aumentar o rechaço da sociedade colombiana aos partidos tradicionais de direita e ao uribismo – corrente política que governou o país nos últimos 20 anos.

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No Brasil, Lula da Silva também lidera todas as pesquisas de intenção de voto, com 15 a 20 pontos de vantagem sobre o atual presidente Jair Bolsonaro.


Secretário Execuivo da Alba-TCP, Sacha Llorenti e os chefes de Estado e de governo, reunidos em Havana, para celebrar 17 anos do bloco / ALBA-TCP

A proposta de fortalecer a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), como alternativa à Organização dos Estados Americanos (OEA), e o fortalecimento do Mercosul poderiam ser dois reflexos institucionais da política exterior desses possíveis novos governos.

“O ano de 2022 pode augurar uma mudança de ciclo com o alinhamento das quatro maiores economias da região: Brasil, Colômbia, México e Argentina e, ao mesmo tempo, pode mostrar que nem todas as propostas de mobilização de rua tem uma resposta com avanços de direitos no aspecto partidário-institucional”, comenta Cybel.

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Para o dirigente do MST, as forças populares possuem desafios permanentes de formação, militância política e batalha ideológica.

“A esquerda precisa ter mais clareza de como deve fazer a disputa política na sociedade, que não é apenas ganhar governos, mas disputar o Estado ampliado, como dizia Gramsci – que é a organização da produção, e estruturas como a mídia, o judiciário. É só isso que irá garantir que além das vitórias eleitorais acumulemos forças”, afirma João Pedro Stédile.

Se os movimentos populares conseguirem articular-se em plataformas continentais, há maior possibilidade de ampliação de direitos, analisa Yair Cybel.

“O que será interessante de observar em 2022 será ver o que acontece com os processos de levante popular que não terminam numa institucionalização da oposição”, comenta o jornalista argentino.

Edição: Arturo Hartmann

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