“Quem tem dinheiro vai encontrá-la antes dos demais, sem se importar com um acesso justo e global. Hoje, no mundo, 15 multinacionais controlam mais da metade do mercado de medicamentos. Oito são dos EUA. Seus donos são fundos de investimento, principalmente pensões. A regra é aumentar os dividendos, não fazer caridade, a ponto de eles próprios comprarem as ações, operação antes proibida e agora não mais, para fazer o lucro disparar. Finanças por finanças, economia que mata, nas palavras do Papa Francisco“, escreve Alberto Bobbio, editor-chefe da revista Famiglia Cristiana, em artigo publicado por Eco di Bergamo, 10-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Ele decidiu subir o tom. Nunca Francisco havia usado frases tão retumbantes. Sobre a vacina Covid-19, ele sempre foi cauteloso, quase comedido, mesmo denunciando o risco das desigualdades. Ontem ele mudou de estratégia, enquanto a Big-Pharma vai à guerra na escaldante temporada das vacinas. Bergoglio usou a linguagem do Evangelho evocando os “devotos de Pôncio Pilatos“, que “se lavam as mãos”. Os interesses são muitos, os números cheios de zeros. Virá, mas quando, de quem e, sobretudo, para quem é uma questão onde o mercado é mais importante do que os aspectos científicos e de saúde como bem público.
De que informação dispõe a Santa Sé sobre uma batalha em que as regras do comércio e da propriedade intelectual e industrial parecem descaradamente em primeiro plano no que diz respeito à cláusula, prevista pelos Acordos de Doha, de exceções aos negócios “por razões de saúde pública”? Nenhuma a mais daqueles que observam a situação com consciência, pois a vacina é uma oportunidade única para as grandes multinacionais farmacêuticas.
A cooperação internacional para a pesquisa e a produção basicamente falhou. Poder-se-ia ter tentado com uma governança mundial independente. Mas todos os países deveriam ter concordado, e isso não aconteceu. Hoje prevalece a competição sobre a cooperação. Em suma, lavamos as mãos sobre o bem público da saúde global. O presidente francês Macron já havia dito isso quando uma das maiores multinacionais francesas de medicamentos nos últimos meses havia caído na bajulação de Donald Trump, pronto a comprar em nome do “American First“. A pressa de Trump está esmagando toda cautela e aumentando a preocupação com a desigualdade. Ele precisa muito da vacina antes das eleições e não foi à toa que chamou a campanha de pesquisa e produção de “Operation Warp Speed” uma operação à velocidade da luz. A mesma sorte para Putin com a vacina “Sputnik” a ser solta na órbita mundial dos lucros da pandemia.
A vacina é o sonho de todos, uma vacina nacional é o sonho proibido. Quem tem dinheiro vai encontrá-la antes dos demais, sem se importar com um acesso justo e global. Hoje, no mundo, 15 multinacionais controlam mais da metade do mercado de medicamentos. Oito são dos EUA. Seus donos são fundos de investimento, principalmente pensões. A regra é aumentar os dividendos, não fazer caridade, a ponto de eles próprios comprarem as ações, operação antes proibida e agora não mais, para fazer o lucro disparar. Finanças por finanças, economia que mata, nas palavras do Papa Francisco.
A vacina é a ocasião do século. A Oxfam, uma das maiores ONGs do mundo, propôs tributar os lucros extras da Covid-19, como aconteceu na década de 1940 para os lucros da guerra. Mas o apelo terminou no vazio. Todos estão procedendo cada um por si, incluindo a UE, que decidiu favorecer uma multinacional britânica com a pré-compra de 300 milhões de doses. Os países pobres estão fora do jogo, e a supremacia geopolítica ditará as regras das encomendas. É muito complexo encontrar, produzir e principalmente distribuir uma vacina. Somente sistemas sanitários eficientes podem fazer isso e as duas doses complicam ainda mais a situação. Aqueles que mais precisarão, da África à Índia e à América Latina, não têm recursos para obtê-la e a organização para distribuí-la. É por isso que será um produto de luxo. Hoje, no mundo, cerca de 250 milhões de kits de vacinas são produzidos todos os anos para todas as doenças. Para a Covid-19, serão necessários pelo menos 10 bilhões. A saúde junto com as armas é o verdadeiro ativo estratégico, do qual ninguém quer perder nem um centavo. Mas apenas Francisco fala isso.
Covid-19: Como evitar que a vacina seja negócio?
A maior parte do dinheiro investido na pesquisa é pública. No entanto, no Ocidente, corporações privadas detêm as patentes e decidem como produzir, para quem vender e a que preço. Cresce a luta contra o poder deste oligopólio
Publicado 10/09/2020 às 15:43

Por Justin Delépine, no Alternatives Économiques, traduzido pelo IHU Online
A corrida pela criação da vacina contra a Covid-19 também é uma corrida por financiamento, especialmente público. No entanto, são os laboratórios, que detêm as patentes, que tomam as decisões relativas à produção, para quem vendê-la e a que preço.
Diante de uma pandemia duradoura, o mundo ainda está procurando uma saída. Uma verdadeira corrida contra o tempo foi lançada para desenvolver a vacina contra a Covid-19 o mais rápido possível. Uma corrida que põe em concorrência pequenos e grandes laboratórios farmacêuticos de todo o mundo, às vezes associados a organismos públicos de pesquisa. Mas, à medida que se multiplicam os anúncios de investimentos e acordos entre governos e laboratórios, uma questão torna-se central: quem pagará por essa futura vacina e quem terá acesso a ela?
Em maio passado, uma declaração de Paul Hudson, diretor-geral da Sanofi, provocou alarido: se o seu laboratório encontrar uma vacina, os Estados Unidos serão os primeiros a se beneficiar dela, declarou. O motivo? As autoridades americanas foram os primeiros a investir e a investir pesadamente nesta pesquisa. Suas palavras provocaram uma indignação generalizada – inclusive na cúpula do executivo – na França, sede do laboratório globalizado. Sua declaração lançou alguma luz sobre a relação de poder entre as empresas farmacêuticas e os Estados, as primeiras buscando maximizar a cooperação financeira dos segundos.
A corrida para encontrar a vacina é, portanto, também uma corrida por financiamento. Financiamentos ainda mais importantes, porque, desta vez, o tempo para levar uma vacina ao mercado é particularmente curto.
Desenvolvimento acelerado
Normalmente, encontrar e colocar uma vacina no mercado leva de sete a dez anos. Diante da atual epidemia, as indústrias pretendem reduzir este tempo para menos de dois anos. Para acelerar o ritmo, os laboratórios são obrigados a antecipar cada etapa do seu desenvolvimento antes de validar totalmente a etapa anterior, de forma a poder poupar meses preciosos.
“Toda a fase de desenvolvimento é feita paralelamente à pesquisa, para que as fábricas sejam montadas e a produção comece antes que os resultados finais da vacina candidata sejam obtidos. Se os resultados forem positivos, a fabricação em massa já terá começado e as capacidades de produção já estarão disponíveis”, explica Claire Roger, presidente do comitê de “vacinas” da Leem [Associação Francesa de Empresas Farmacêuticas], organização que reúne empresas farmacêuticas.
É claro que essa aceleração do ritmo aumenta o montante da fatura. Principalmente porque, se a vacina candidata não cumprir as promessas, as doses produzidas vão para o lixo. No entanto, os laboratórios estão longe de serem os únicos a tirar o talão de cheques. “A maior parte do dinheiro investido na pesquisa da vacina Covid-19 é público”, lembrou Gaëlle Krikorian, ex-diretora da campanha de acesso a medicamentos da organização Médicos Sem Fronteira (MSF).
De acordo com o think tank Policy Cures Research, pelo menos 5,4 bilhões de dólares em dinheiro público foram fornecidos para apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de uma vacina em nível global, 2,6 bilhões dos quais foram investidos pelo governo estadunidense. Uma quantia significativa, já que o mercado global de vacinas gira em torno de 60 bilhões de dólares no total. E, novamente, esses 5,4 bilhões representam apenas uma parte do financiamento público consagrado à vacina contra a Covid, e sem contar, por exemplo, todas as pré-encomendas que os governos fazem para garantir o seu fornecimento.
Detalhes de dezenas de acordos concluídos entre governos e laboratórios não são públicos. Portanto, é difícil quantificar com precisão os valores recebidos por eles, nem o que recobrem. Mas a exemplo da pré-encomenda americana ao laboratório Johnson & Johnson por um bilhão de dólares ou da dupla franco-inglesa Sanofi-GSK por 1,2 bilhão, ou da União Europeia para a AstraZeneca por 750 milhões de euros, as somas investidas pelos poderes públicos nesta vacina são de bilhões. Os Estados Unidos sozinhos teriam liberado 9 bilhões de dólares para a vacina contando todas as suas pré-encomendas.
Devemos agregar a isso também os recursos fora do contexto de uma crise de saúde: de órgãos públicos, como o Instituto Pasteur, mas também de mecanismos de auxílio à pesquisa, como o caríssimo crédito fiscal para pesquisa (CIR) na França.
Um revelador das desigualdades
Acima de tudo, esse apoio ilustra as desigualdades entre os países. Com essas pré-encomendas, os Estados ricos garantem o acesso à futura vacina reservando, de certa forma, linhas de produção. Aqui, novamente, os Estados Unidos são o maior provedor de fundos. Eles fizeram uma pré-encomenda de cerca de 800 milhões de doses de seis candidatos a vacinas, o Reino Unido 340 milhões e a Europa e o Japão várias centenas de milhões cada um.
Já os países mais pobres, que representam a maioria da população mundial, podem recorrer a outro grande financiador: o programa Covax, administrado especialmente pela Coalizão de Inovações e Preparação para Epidemias (Cepi). Esta fundação executa a política de vacinas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e recebe ajuda de vários Estados e filantropos privados, incluindo a Fundação Bill e Melinda Gates.
A Cepi, portanto, financiou 9 candidatos a vacinas no valor de 900 milhões de dólares. No entanto, estima a necessidade em 2,1 bilhões de dólares para garantir 2 bilhões de doses, o que permitiria abastecer os países menos afortunados a um custo zero ou a um custo menor. E embora a Cepi tenha pedido várias centenas de milhões de doses de alguns laboratórios, a maior parte das encomendas vem de países ricos.
Uma patente onipotente?
“Visto que o financiamento público é importante e, sobretudo, muito visível em um período de pandemia, as expectativas em relação às contrapartidas são elevadas, e, especialmente, em relação à propriedade intelectual do que será produzido”, observa Gaëlle Krikorian.
Depois da polêmica criada pelas declarações do diretor-geral da Sanofi, Emmanuel Macron defendeu que a futura vacina “fosse um bem comum global, fora das leis do mercado”. A intenção é louvável, mas o presidente não pode ignorar os regulamentos internacionais sobre produtos de saúde. O laboratório que descobre a vacina é protegido pelos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre propriedade intelectual (Adpic) e possui a patente mundial para a fabricação desse produto por pelo menos vinte anos, que lhe fornece uma renda financeira para compensar os custos de pesquisa. Em suma, detém o monopólio da produção da vacina, decidindo quantas vacinas produzir, para quem vender e negociando com os Estados o seu preço.
“A pesquisa de uma vacina contra a Covid é amplamente subsidiada pelo público, mas sua patente será privada”, lamenta Nathalie Coutinet, economista da Universidade Paris-13 especializada na indústria farmacêutica. O monopólio conferido por uma patente justifica-se, de fato, pela assunção de riscos financeiros na pesquisa. No entanto, isso não existe no presente caso. “As patentes são mecanismos de incentivo ao financiamento privado que podem ser úteis, mas não são os únicos, e devemos parar de abusar delas, especialmente quando o financiamento público é significativo”, conclui Gaëlle Krikorian.
O poder conferido por essas patentes também corre o risco de repercutir nas políticas de preços dos diferentes laboratórios farmacêuticos. Os preços certamente serão diferentes dependendo do país. Os mais ricos, e em primeiro lugar os Estados Unidos, geralmente concordam em pagar mais para serem atendidos primeiro. O que acentua a desigualdade de acesso à saúde entre países ricos e pobres.
O preço também varia de acordo com os laboratórios, que possuem estratégias diferentes nessa área. A britânica AstraZeneca, que tem um dos projetos mais avançados, anunciou, por exemplo, que comercializará seu produto a preço de custo. “Isso é puramente declarativo, pondera Jérôme Martin, do Observatório da Transparência nas Políticas de Medicamentos. Como não divulgam os custos da pesquisa nem a margem dos intermediários, é impossível verificar se esse preço de custo será real”.
O laboratório mencionou ainda um preço em torno de 2,50 euros por dose. Outras empresas, como as americanas Pfizer, Merck ou Moderna, assumiram claramente que desejam lucrar com essas futuras vacinas. A Moderna sugere um preço de comercialização entre 50 e 60 dólares. Uma diferença que terá graves consequências sobre as finanças dos organismos de reembolso. E que poderá, portanto, retardar a difusão de uma vacina.
Modelo start-up
Essa diferença de preço também se explica por diferenças nos modelos econômicos das empresas farmacêuticas. A Moderna, por exemplo, tem um dos projetos mais avançados, competindo com os maiores laboratórios farmacêuticos do mundo, mas é uma start-up com menos de mil funcionários e apenas uma década de existência. “As empresas farmacêuticas tendem a terceirizar a pesquisa, porque é muito cara, e assim cofinanciar start-ups de biotecnologia e comprá-las ou se juntar a elas se seu produto for eficiente”, resume Nathalie Coutinet.
No entanto, estas start-ups, das quais a Moderna é um exemplo perfeito, baseiam o seu desenvolvimento na inovação e só podem sobreviver financeiramente graças aos investidores que concordam em financiá-las com prejuízo até que os seus produtos cheguem à fase da comercialização. “Esses novos modelos participam de uma hiperfinanceirização do setor, explica o economista, pois assim que a inovação da start-up dá certo, os investidores que se arriscaram procuram recuperar seus custos, empurrar a estrutura para os mercados financeiros e exigem alta lucratividade”.
Se essas deficiências do mercado farmacêutico já existiam antes da pesquisa da vacina contra a Covid-19, a atual pandemia torna-as visíveis, revelando um setor opaco e amplamente financeirizado cujo poder de mercado garantido por patentes não reflete mais os esforços feitos na pesquisa.
Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROSQUINHENTOS