A Renda Básica Universal na América Latina e no Caribe, uma medida de vida ou morte após a pandemia

pandemia está instalando, com maior ênfase, o debate sobre a possibilidade de garantir uma renda universal para toda a população. Até recentemente, era um slogan de grupos políticos e acadêmicos críticos e hoje faz parte da agenda da governança global.

A reportagem é de Alfredo Zaiat, publicada por Sputinik, 15-07-2020. A tradução é do Cepat.

Presidente do Fórum Econômico Mundial (Davos), Klaus Martin Schwab, em encontro no qual participa o establishment financeiro e líderes das principais potências, incorporou esta iniciativa à agenda. É claro que essa ação não significa uma revisão ideológica do poder mundial, mas uma reação defensiva na busca de evitar o colapso do sistema, em razão de uma das crises mais graves da história.

Até o FMI está estudando. O diretor do Departamento de Assuntos Fiscais, o português Vítor Gaspar, explicou na última edição do relatório ‘Monitor fiscal‘ que a renda básica universal “é uma das várias ideias que podem ser examinadas em resposta a essa crescente incerteza”.

Igreja Católica liderada pelo Papa Francisco também vem se pronunciado a favor da implementação de um salário universal que compense os efeitos excludentes de uma economia financeirizada.

Vacina

Como a experiência indica, as crises econômicas costumam ser melhor aproveitadas por setores do poder econômico para assentar bases de crescimento organizadas sobre pautas de maior desigualdade. Hoje, esse terreno está em disputa e a bateria de políticas, decisões públicas e comunitárias que estão sendo resolvidas determinará qual será a orientação a emergir dessa crise inédita.

Enquanto não for encontrada uma vacina eficaz para conter o coronavírus e a economia possa retornar a uma certa normalidade, é essencial implementar medidas que atenuem os efeitos da crise nos grupos sociais afetados. Nesse cenário, irrompeu com intensidade a ideia de uma renda básica universal. Seria uma medida paliativa em primeira instância e, em seguida, pode se tornar uma base para ampliação de direitos. É um debate global que não está resolvido.

Transferências

Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) propõe que os governos garantam transferências monetárias temporárias imediatas para satisfazer necessidades básicas e sustentar o consumo das famílias.

A médio e longo prazo, o organismo reitera que o alcance dessas transferências deve ser permanente, ultrapassar as pessoas em situação de pobreza e chegar a amplos estratos da população que são muito vulneráveis a cair nela, o que permitiria avançar em direção a uma renda básica universal, para assegurar o direito básico à sobrevivência.

O relatório O desafio social em tempos de Covid19 detalha o impacto social e os desafios relacionados que a atual crise teria para os países da América Latina e do Caribe. Este documento propõe uma renda básica de emergência para ser implementada imediatamente, com a perspectiva de permanecer ao longo do tempo de acordo com a situação em cada país.

Isso é relevante, uma vez que se estima que a superação da pandemia levará tempo e as sociedades devem coexistir com o coronavírus, o que dificultará a reativação econômica e produtiva.

“A pandemia tornou visíveis problemas estruturais do modelo econômico e as deficiências dos sistemas de proteção social. Por esse motivo, devemos avançar para a criação de um Estado de bem-estar social com base em um novo pacto social que considere o fiscal, o social e o produtivo”, disse Alicia Bárcena, secretária executiva da CEPAL.

Pobreza

A proposta de uma renda básica de emergência seria equivalente ao custo per capita de adquirir uma cesta básica de alimentos e outras necessidades básicas (uma quantia que determina a linha de pobreza de cada país), durante seis meses, para toda a população vulnerável.

CEPAL calcula que deveria alcançar 215 milhões de pessoas, 34,7% da população regional. Isso implicaria um gasto adicional de 2,1% do PIB latino-americano para cobrir todas as pessoas que se encontram em situação de pobreza este ano.

“A pandemia exacerbou as dificuldades da população em satisfazer suas necessidades básicas. Portanto, é necessário garantir rendasegurança alimentar e serviços básicos a um grande grupo de pessoas cuja situação se tornou extremamente vulnerável e que não necessariamente estavam incluídos nos programas sociais existentes antes da pandemia“, afirmou Bárcena.

O que é renda básica universal?

É uma renda periódica paga pelo Estado a cada pessoa, sendo um direito sem quaisquer condições. Essa renda corresponde a uma política social redistributiva. Os governos buscariam, assim, garantir um nível mínimo de renda para todas as pessoas e reduzir as desigualdades sociais.

Diferentemente de outras políticas de assistência social, na renda básica, o direito a essa renda não é determinado pela situação pessoal do beneficiário. Isso porque é considerado um direito pelo simples fato de ser um membro da sociedade.

Dessa maneira, a situação financeira, familiar e pessoal não impediria ninguém de acessar essa renda. No entanto, o valor recebido pode variar dependendo de certos fatores, dependendo das características específicas do programa de renda básica.

A ideia de renda básica universal não está desligada de uma reformulação geral dos critérios operacionais do Estado, da economia e das relações internacionais.

O exemplo da Espanha

O caso mais recente de implementação é a Espanha. O governo aprovou a renda mínima vital no último Conselho de Ministros. É um benefício com o objetivo de cobrir 80% das pessoas em extrema pobreza no país.

É uma medida que pode chegar a beneficiar mais de 850.000 famílias e será um benefício gerenciado através da Seguridade Social. Ao contrário de outros auxílios, é uma medida estrutural e indefinida.

Será uma rede de seguridade permanente para os mais vulneráveis e o dinheiro investido nessa medida é estimado em cerca de 3 bilhões de euros por ano.

A proposta na Argentina

A Argentina é um dos países da região onde se está definido um esquema de renda básica universal. O ministro do Desenvolvimento Social, Daniel Arroyo, informou que esse benefício estará vinculado ao mundo do trabalho.

Afirmou que não está pensando nisso como uma renda básica no “modelo europeu”, que não é mais que um problema de renda, mas considera necessário acrescentar a complexidade que a situação argentina demanda: associá-la ao trabalho de quem recebe o dinheiro.

Arroyo sustenta que o problema social argentino não pode ser entendido sem o relacionar ao trabalho, renda e acesso a serviços, e que separar um do outro é um erro.

A base para implementar a renda básica na Argentina está dada nas 9 milhões de pessoas que recebem a Renda Familiar de Emergência, uma medida preparada no início da pandemia para atender setores vulneráveis.

Redistribuição

Um documento de pesquisa do Instituto de Pensamento e Políticas Públicas afirma que o poder da renda universal ou da renda cidadã ou de qualquer outro instrumento que permita democratizar a renda ao conjunto da população pode atrapalhar as relações de poder capitalistas.

O economista italiano Andrea Fumagalli explica que a renda como amortecedor e proteção social intervém na redistribuição da renda, uma vez que a riqueza produzida se distribui entre os fatores de produção que contribuíram para sua criação.

A diferença é fundamental para deixar claro que a reivindicação de renda básica incondicional é uma reivindicação social e sindical que afeta diretamente o processo de organização da produção e do trabalho.

Proteção

Para articular a proteção social a curto, médio e longo prazo, a CEPAL ressalta que, além de implementar medidas imediatas para responder à emergência, é necessário superar desafios operacionais, como a bancarização da população, o preenchimento de registros sociais, atualizá-los e interconectá-los.

A médio e longo prazo, deve ser garantido o exercício dos direitos através do fortalecimento do Estado de bemestar e da provisão universal de proteção social, da introdução de um sistema de assistência, da implementação gradual e da busca e mecanismos inovadores de financiamento sustentável.

“Em vista das grandes lacunas históricas que a pandemia agravou, a CEPAL reitera que é hora de implementar políticas universais, redistributivas e de solidariedade com uma abordagem baseada em direitos”, afirmou Alicia Bárcena.

“Gerar respostas emergenciais, a partir da proteção social, para evitar uma grave deterioração das condições de vida é inevitável na perspectiva de direitos e bem-estar”, acrescentou, concluindo que “construir o Estado de bemestar e sistemas de proteção social universais é chave para evitar mais uma década perdida” na América Latina e no Caribe.

 

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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/601055-a-renda-basica-universal-na-america-latina-e-no-caribe-uma-medida-de-vida-ou-morte-apos-a-pandemia


A cidadania é simplesmente uma renda? Artigo de Branko Milanović

“O declínio da participação política e o aumento do desenraizamento significa que os dois pilares modernos da cidadania se erodiram quase por completo. O único significado de cidadania que permanece é o fluxo de renda e vantagens que se recebe, caso se tem a sorte de ter nascido ou de ter se tornado cidadão de um país rico. A cidadania se tornou uma categoria ‘ideal’, um direito desprovido da necessidade de estar fisicamente presente no país ou de se interessar por ele”, escreve Branko Milanović, economista sérvio-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York, em artigo publicado por Letras Libres, 15-07-2020. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

A concepção moderna de cidadania, que surgiu após a Revolução Francesa, tem dois pilares: um é a participação voluntária ou obrigatória na vida política da comunidade, o outro é um “enraizamento” físico na comunidade política. A participação significa, em termos democráticos, que um cidadão tem voz, o direito de expressar suas opiniões, votar naqueles que o representarão ou liderarão, e a ser ele próprio eleito.

Em contextos não democráticos ou não completamente democráticos, a participação política não é algo apenas desejável, mas obrigatório: os cidadãos da União Soviética, da Alemanha nazista, da Espanha de Franco compareciam, motivados e às vezes obrigados, nas celebrações massivas do Estado. O “enraizamento” significa que os cidadãos que vivem em seus próprios países (como sugere sua participação política nas questões do país) recebem a maior parte de sua renda em seu próprio país e a gastam nele também.

O desenvolvimento do Estado de bem-estar, na segunda parte do século XX, no Ocidente e nos países comunistas da Europa Oriental, acrescentou outra faceta à cidadania: o direito a um determinado número de benefícios, de pensões ao seguro-desemprego, que somente estão disponíveis para os contribuintes (ou seja, os cidadãos que trabalham em seus países) e para cidadãos que não contribuem per se, mas recebem benefícios como, por exemplo, subsídios familiares e assistência social.

A existência do Estado de bem-estar social em um mundo com enormes diferenças de renda entre países criou uma lacuna entre os cidadãos dos países ricos que desfrutam desses benefícios e os cidadãos dos países pobres que não. Criou uma “renda de cidadania” para aqueles afortunados de serem cidadãos de países ricos e uma “penalização de cidadania” para os outros.

Dois cidadãos completamente idênticos da França e do Mali terão uma capacidade completamente diferente de gerar renda simplesmente a partir de sua cidadania. Além disso, a renda de cidadania, como demonstro em Capitalismo sem rivais, conduz você para outras rendas: nossos cidadãos franceses e malianos podem receber a mesma educação, ter a mesma experiência e ser trabalhadores iguais, mas seus salários terão uma diferença de 5 a 1, ou inclusive mais, simplesmente porque um deles trabalha em um país rico e o outro em um país pobre. De fato, cerca de 60% da renda de nossa vida está determinada por nossa cidadania.

Em um mundo globalizado formado por países com desigualdades de renda tão vastas, a cidadania adquiriu um valor econômico enorme. Isso fica evidente não apenas nos exemplos que citei antes, mas também porque a cidadania permite a liberdade de viajar sem visto ou outras permissões (um luxo dos países ricos, como disse Zygmunt Bauman), e seu país apoia você com suas agências no exterior.

Mas enquanto a renda de cidadania foi reforçada no capitalismo globalizado moderno, os outros dois pilares da cidadania (a participação cidadã e o enraizamento) foram debilitados radicalmente. A cidadania foi reduzida a simplesmente uma renda financeira.

O enraizamento continua sendo algo comum para muitos cidadãos. Mas sua importância se enfraquece na medida em que as pessoas se mudam permanentemente ou por longos períodos para outros países. Em alguns casos, migram para países mais ricos para ganhar mais dinheiro lá (como fazem os migrantes da África para a Europa e do México para os Estados Unidos) e, em outros casos, os migrantes de países ricos se mudam para outros países ricos, como quando os estadunidenses se mudam para a França (esta última categoria geralmente se adorna com o título de “expatriados”).

Quando se mudam para outros países, trabalham neles, ganham renda lá, gastam esse dinheiro localmente e seu sustento financeiro se “desvincula” de seu país de origem. Todas as fontes de renda se desenraizam: tanto as do trabalho como as do capital. Para ver até que ponto se produz um “desenraizamento” em um mundo completamente globalizado, suponhamos que um cidadão americano idoso se mude para a França. Uma parte de sua renda vem do trabalho que faz na França, a outra parte, na forma de benefícios da seguridade social, dos Estados Unidos.

Mas a renda por trás desse cheque da seguridade social talvez foi obtida pelos investimentos estadunidenses na China. Portanto, tanto fisicamente como com relação à fonte de sua renda, esse cidadão estadunidense estará “desenraizado”. Ou tomemos como exemplo um cidadão filipino que trabalha nos Estados Unidos. Da mesma forma, sua renda é obtida em um país estrangeiro. Se tem direito a algum tipo de subsídio por sua cidadania nas Filipinas, o dinheiro para pagar esses benefícios poderia de fato ter sido obtido por outros filipinos que trabalham no exterior, que enviam remessas para suas famílias nas Filipinas e o governo as tributa.

Um país completamente globalizado seria aquele em que sua renda de capital provém de investimentos no exterior, sua renda de trabalho provém de remessas enviadas por trabalhadores de outros países, e a maioria de seus cidadãos vive no exterior e ainda recebe benefícios sociais por sua cidadania.

A participação política no capitalismo moderno também se enfraquece. Em uma sociedade muito mais competitiva, em que o sucesso individual se mede em termos de poder econômico (riqueza), as pessoas não têm tempo livre suficiente ou interesse em se tornarem cidadãos ideais, preocupados com a vida política de sua cidade ou país. Todo seu tempo é gasto trabalhando duro para ganhar dinheiro. O resto do tempo é gasto nas redes sociais, entretenimento, tarefas domésticas e sair com os amigos.

Em circunstâncias normais, o tempo que dedicam a questões políticas é mínimo. A participação eleitoral na maioria dos países avançados, que é em si mesma o mínimo requerido, confirma isso. É muito baixa, especialmente entre os jovens. As eleições presidenciais nos Estados Unidos, nas quais se elege uma pessoa com poderes quase monárquicos, não atraíram às urnas nem 60% da população na segunda metade do século passado. As eleições para o Parlamento Europeu não conseguem motivar nem a metade dos eleitores. Este não é apenas um produto da apatia, também é porque estamos muito ocupados.

O declínio da participação política e o aumento do desenraizamento significa que os dois pilares modernos da cidadania se erodiram quase por completo. O único significado de cidadania que permanece é o fluxo de renda e vantagens que se recebe, caso se tem a sorte de ter nascido ou de ter se tornado cidadão de um país rico. A cidadania se tornou uma categoria “ideal”, um direito desprovido da necessidade de estar fisicamente presente no país ou de se interessar por ele: está incorporado fisicamente em uma escritura, um passaporte ou cartão, é simplesmente uma prova física de que se pode almejar suas múltiplas vantagens.

Os países que vendem cidadania, de países europeus a pequenas ilhas caribenhas, não estão cometendo um erro. Tampouco quem compra seus passaportes. Ninguém espera que esses novos cidadãos vivam ou passem muito tempo em seus novos países (os chineses e russos que compram passaportes portugueses são obrigados a passar uma semana por ano no país), nem a participar de sua vida social. Não precisam conhecer o idioma e muito menos a história. Os países estão trocando uma categoria ideal (a cidadania) que proporciona uma série de direitos, durante um tempo, por uma quantidade de dinheiro, agora, que equivale ao valor líquido no presente dessa série de direitos e vantagens no futuro.

O fato de a cidadania ter se tornado uma “matéria-prima fictícia” polanyiana tem várias implicações que discuto com profundidade em Capitalismo sem rivais.

Em primeiro lugar, precisamos deixar de lado a versão binária de cidadão-não-cidadão e introduzir categorias intermediárias que se distinguem pela quantidade de direitos e deveres que proporcionam (como está acontecendo com os residentes permanentes que não são cidadãos de pleno direito).

Em segundo lugar, a migração pode ser considerada uma posição intermediária que não conduz automaticamente à cidadania plena.

Em terceiro lugar, precisamos reconsiderar a ideia de conceder direitos eleitorais a pessoas que não vivem no país e que, portanto, não se beneficiam e nem sofrem com as decisões que tomam. Mas isto são questões para outro artigo.

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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/601054-a-cidadania-e-simplesmente-uma-renda-artigo-de-branko-milanovic

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