“Estamos diante de um sistema que para estender sua agonia, precisa implementar figuras nascidas no século XX, que são os temas de Giorgio Agamben: o estado de exceção como forma de governo, a guerra civil legal contra os não integráveis e o campo de concentração a céu aberto, vigiado por paramilitares”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 26-03-2021. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A militarização crescente de nossas sociedades é um claro sinal outonal do sistema capitalista patriarcal. O sistema se abdicou de integrar as classes populares, já não almeja sequer dialogar com elas, mas se limita a vigiá-las e controlá-las. Antes deste período militarista, prendia-se os descarrilados para corrigi-los. Agora, trata-se de vigiar a céu aberto camadas inteiras e majoritárias da população.
Quando um sistema precisa militarizar a vida cotidiana para controlar as maiorias, é possível dizer que está com os dias contados – Raúl Zibechi
Quando um sistema precisa militarizar a vida cotidiana para controlar as maiorias, é possível dizer que está com os dias contados. Mesmo que, na realidade, esses dias precisem ser medidos em anos ou décadas.
Um bom exemplo é a herança do regime de Pinochet, no Chile, em relação ao papel central dos militares e da polícia militarizada, Carabineiros, no controle social. Uma dessas heranças é o controle das forças armadas dos excedentes da empresa estatal de cobre, principal exportação do Chile.
A Lei Reservada do Cobre foi aprovada nos anos 1950, quando se acentuavam as mobilizações de trabalhadores e pobres da cidade e do campo. Durante a ditadura militar, essa lei secreta, como seu nome indica, foi modificada em sete oportunidades. Só em 2016, graças a um vazamento do jornal digital El Mostrador, soube-se que 10% dos lucros da empresa estatal de cobre são repassados diretamente para as forças armadas.
Em 2019, a lei secreta foi revogada, quando as ruas do Chile começavam a arder com uma série de protestos e levantes que começaramem 2011, com as resistências estudantil e do povo mapuche, e depois pelas feministas.
A militarização viola o chamado estado de direito, as normas legais que a sociedade adotou, muitas vezes, sem ser devidamente consultada – Raúl Zibechi
O dano que o regime militar impôs à sociedade pode ser visto no fato de que mais da metade dos chilenos não votam, sendo que antes a grande maioria votava, em uma tremenda deslegitimação dos partidos políticos e das instituições estatais.
Não é o único caso, é claro. Os militares brasileiros tiveram um papel destacável na prisão de Lula, na destituição de Dilma Rousseff e na eleição de Bolsonaro.
Em todos os casos, a militarização viola o chamado estado de direito, as normas legais que a sociedade adotou, muitas vezes, sem ser devidamente consultada.
A militarização contribui para destruir nações e sociedades, porque supõe entregar porções significativas do poder e a gestão a uma instituição não democrática que, deste modo, fica fora de qualquer controle.
A militarização vem acompanhada da imposição de um modelo de sociedade que chamamos de extrativismo, um modo de acumulação de capital pelo 1% com base no roubo e a pilhagem dos povos – Raúl Zibechi
Também vem acompanhada da imposição de um modelo de sociedade que chamamos de extrativismo, um modo de acumulação de capital pelo 1% com base no roubo e a pilhagem dos povos, que implica uma verdadeira ditadura militar nas áreas e regiões onde opera.
O militarismo se subordina a esta lógica de acumulação mediante a violência, pela simples razão de que não é possível roubar os bens dos povos sem lhes apontar as armas.
Militarismo se conjuga com violência, desaparecimentos forçados, feminicídios e estupros. No mais, sempre propicia o nascimento de grupos paramilitares que acompanham as grandes obras extrativistas e que, embora sejam considerados ilegais, conforme demonstram Colômbia e México, são treinados e armados pelas forças armadas.
Agora, sabemos que a grande beneficiada com o Trem Maia serão as forças armadas, para quem o governo de López Obrador concedeu todos os trechos, acrescentando que se trata de um prêmio a essa instituição.
Existe mais de uma semelhança com o caso do cobre no Chile.
A primeira é a entrega direta dos lucros, com os quais qualquer governo consegue fidelidade dos uniformizados aos quais, na realidade, se subordina.
A militarização é tanto um projeto como um modo de governar. Acompanha-lhe os aeroportos, a ordem interna e os mais variados aspectos da vida – Raúl Zibechi
A segunda é o argumento da segurança nacional apresentado pelos governos. No Chile, era a luta contra o comunismo. No México, a fronteira sul, com a justificativa da migração e o tráfico.
A terceira é que a militarização é tanto um projeto como um modo de governar. Acompanha-lhe os aeroportos, a ordem interna e os mais variados aspectos da vida. Pela força, conseguem romper a legalidade a seu favor, como as normas orçamentárias.
Observamos processos de militarização dos Estados Unidos, Rússia e China ao conjunto dos países latino-americanos. Consiste no controle de geografias rurais e urbanas por homens armados a serviço do capital, para controlar os povos que resistem a pilhagem.
Não se trata da maldade de um presidente ou de um governo. Não duvido desse extremo, mas não é o central. Estamos diante de um sistema que para estender sua agonia, precisa implementar figuras nascidas no século XX, que são os temas de Giorgio Agamben: o estado de exceção como forma de governo, a guerra civil legal contra os não integráveis e o campo de concentração a céu aberto, vigiado por paramilitares.
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