A memória de dois 11 de setembro vividos

Perfil do Colunista 247

 

Passaram-se muitos anos e, em 1990, o corpo de Allende voltou a Santiago e cruzou a Alameda Bernardo O’Higgins, onde o povo chileno o saudou em comovido silêncio

O primeiro no Chile.

Acordamos, dia 11 de setembro de 1973, com os aviões voando baixo por nossa casa em direção ao palácio presidencial. Ligamos a Rádio Magallanes, que era a única que apoiava o governo, e ouvimos, às 9h10, as palavras de Allende: “Seguramente esta será la última oportunidad en que pueda dirigirme a ustedes. (…) La historia es nuestra y la hacen los pueblos (…) mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre”.Logo a rádio saiu do ar. Cerca de uma hora depois, Allende se sentaria na cadeira presidencial, com sua faixa de mandatário, e se suicidaria. Terminava assim uma das mais apaixonantes experiências políticas que vivi. Dias depois, fomos ver o Palácio de la Monedaincendiado e lembro as lágrimas de minha tia Maria Tereza, que nos acompanhava nesses dias no Chile.

Passaram-se muitos anos e, em 1990, o corpo de Allende voltou a Santiago e cruzou a Alameda Bernardo O’Higgins, onde o povo chileno o saudou em comovido silêncio. Depois da redemocratização, retornei ao Palácio de la Moneda restaurado, cruzei emocionado o pátio de los naranjos e lá almocei, convidado pelo secretário do novo presidente, Enrique Correa, que vivera alguns anos na clandestinidade.

Vieram-me à memória os versos do cantor cubano Pablo Milanés:

“Yo pisaré las calles nuevamente,

de lo que fue Santiago ensangrentada

 

y en uma hermosa plaza liberada

me detendré a llorar por los ausentes.” 

………….

O segundo 11 de setembro em Nova Iorque.

Nesta manhã, 11 de setembro de 2001, na esquina da Oitava Avenida com a rua 45, vendo rolos de fumaça subirem do sul de Manhattan, lembrei da mesma data, 28 anos atrás, também 3ª feira, quando aviões passavam baixinho em minha casa de Santiago, para irem bombardear o Palácio de la Moneda, logo em chamas. Faz pouco, dois vôos de carreira foram jogados nos enormes edifícios, símbolos do poder econômico e do prestígio desta sociedade opulenta. Dois momentos semelhantes e diferentes nas expectativas e, logo depois, nas frustrações e nos medos. Ainda há pouco tempo, em janeiro de 1969, aqui em Nova York, na Universidade de Colúmbia, jovem militante latino-americano, no clima do pós-68, eu iniciava minha palestra dizendo: “Os piores impérios são os que não se reconhecem como tais”. O império seria implacável no Chile de 1973, como fora no Brasil  em 1964. Mas agora, aparentemente sem alternativas à vista, ele se sentia só e poderoso, monitorando o mundo. E, de repente, era como um gigante com os pés de barro, desmoronando como as duas torres do World Trade Center.

Neste momento, o sistema dominante foi ferido profundamente em seus símbolos e em seu amor próprio. Os Estados Unidos, no endurecimento de sua política externa, expressavam uma atitude de auto-suficiência implacável. Veio uma resposta terrível, com uma preparação cuidadosa e um grau de eficiência inimagináveis para tantos norte-americanos, em culturas por eles consideradas atrasadas. E foi quando o estado mais poderoso, paradoxalmente, deixou a descoberto suas próprias ineficiências e suas fragilidades.

Caminhando sem rumo, por uma Nova York semivazia e atônita, sentia minhas convicções e apostas no futuro fraquejarem. Não corremos o sério risco de um curto prazo inseguro e violento, com a ameaça de uma “dark age”? Porém sabemos que, depois de um 1350 sombrio e enlutado pela peste [hoje vivemos outra terrível] veio, em 1440, o Renascimento. Praticamente um século depois. Teremos de esperar tanto, para uma era aquariana com que sonhavam os jovens em 1968? Dá a impressão de que entramos num túnel em que terrorismo e contra-terrorismo se confundem e se reforçam.

Nova York é uma cidade de luto, que ainda não começou a chorar seus mortos. Quantos são eles? Milhares estão ‘missing’. Lúcia e eu acabamos de passar uns minutos em oração, na porta cheia de velas de um corpo de bombeiros  do Times Square, tantos deles estão sepultados nas toneladas de pedra e de pó do que foi a torre obelisco do ‘establishment’. E não serve de escusa lembrar de outros mortos, crianças inocentes, em Bagdá. Tudo isso é intolerável. O poeta John Donne escreveu, faz vários séculos: “Nenhum homem é uma ilha… qualquer morte me empequenece”.

Volta na minha memória outro texto de John Donne: “Por quem dobram os sinos? Dobram por ti”. Por todos nós. Quero, entretanto, guardar a esperança de que um outro mundo mais humano, justo e solidário, é possível. E por ele devemos trabalhar, olhando mais além dos pesadelos de hoje. Pelo bem de nossos filhos e dos filhos de nossos filhos.

fonte: https://www.brasil247.com/blog/a-memoria-de-dois-11-de-setembro-vividos


 

“Não vou renunciar!” – o último discurso de Allende

“O golpe foi arquitetado, financiado e executado pelo governo dos EUA por meio do envolvimento direto da CIA e mercenários conspiradores”, escreve o colunista Jeferson Miola sobre o golpe contra o presidente do Chile em 11 de setembro de 1973

Salvador Allende
Salvador Allende (Foto: Reuters) 

 

 

Não vou renunciar!

Colocado nesta encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que foi plantada na consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser ceifada definitivamente. Eles têm a força, poderão nos avassalar, porém não se detêm os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos.

Seguramente a Rádio Magallanes será calada e o metal tranqüilo de minha voz não chegará mais a vocês. Não importa. Seguirão me ouvindo. (…) Sigam sabendo vocês que, muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor”.

Este são trechos do último discurso proferido pelo Presidente do Chile, Salvador Allende, por volta das 9:12 horas do dia 11 de setembro de 1973 na Rádio Magallanes, desde o Palácio de La Moneda. O áudio pode ser ouvido na íntegra aqui.

Ao fundo, se escuta ruído de aviões sobrevoando a cidade de Santiago e disparos de metralhadoras contra o La Moneda, que algumas horas depois seria pesadamente bombardeado, consumando o golpe fascista e civil-militar que derrubou o governo socialista de Salvador Allende, eleito democraticamente em setembro de 1970.

O golpe foi arquitetado, financiado e executado pelo governo dos EUA por meio do envolvimento direto da CIA e mercenários conspiradores.

O mesmo modelo de intervenção criminosa e interferência ilegal em assuntos internos dos países para implantar ditaduras sanguinárias em várias nações das Américas nas últimas 8 décadas , como ocorreu na Guatemala, República Dominicana, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Peru, El Salvador, Nicarágua, Panamá, Granada, Paraguai, Honduras e, uma vez mais, nos anos recentes, com reprises na Bolívia, Brasil, Equador …

fonte: https://www.brasil247.com/blog/nao-vou-renunciar-o-ultimo-discurso-de-allende


Chile: ascensão e derrota de uma revolução desarmada

 

“A coalizão golpista foi se dando conta que o allendismo somente conseguia se mover no terreno da legalidade e precipitou sua derrubada”, diz o jornalista Breno Altman sobre o regime de Salvador Allende, no Chile. “A revolução se auto-impusera limites, mas não a contrarrevolução: era visível o despreparo dos partidos de esquerda para o enfrentamento aberto”, alerta

Salvador Allende
Salvador Allende (Foto: Reuters)

Certa vez, perguntado sobre as similaridades entre os processos revolucionários da Venezuela e do Chile, Hugo Chávez não hesitou em sintetizar: “ambos são institucionais e pacíficos, mas a revolução bolivariana é armada.” O líder venezuelano não se referia à via de acesso ao poder, nos dois casos por meios eleitorais, mas à existência de uma estratégia de defesa, aplicada em seu país, que pressupunha a hegemonia sobre o conjunto das instituições do Estado, incluindo as forças militares, além do armamento organizado e generalizado da militância popular.

Essa reflexão encontra bom motivo de atualização no cinquentenário do triunfo de Salvador Allende, sufragado presidente chileno em 4 de setembro de 1970, encabeçando a Unidade Popular, uma frente de partidos progressistas, cujo programa apontava para a transição do capitalismo ao socialismo sem ruptura da ordem constitucional democrático-burguesa.

As agremiações de esquerda, lideradas por socialistas e comunistas, imaginavam ser possível o trânsito revolucionário por dentro das instituições, ampliando paulatinamente as fronteiras democráticas e isolando a burguesia dentro de seu próprio Estado, paralisando aventuras golpistas e dividindo suas bases, até que perdesse a condição de classe hegemônica.

Inspiravam-se, em certa medida, no conceito de “democracia progressiva”, cunhado por Palmiro Togliatti, líder comunista italiano, ao debater o caminho para o socialismo em seu país após a segunda guerra mundial. Essa ideia-força embutia a apreciação de que a derrota do fascismo teria neutralizado a função classista das forças armadas e policiais, vedando ou dificultando o recurso à violência estatal pelo bloco contrarrevolucionário. Allende e seus principais companheiros, em diapasão semelhante, depositavam enorme confiança na profissionalização e no legalismo dos oficiais chilenos.

Tanto as correntes ligadas ao movimento operário quanto os agrupamentos burgueses estariam, portanto, condenados a um pacto ao redor das normas constitucionais e eleitorais. Da mesma maneira que a revolução se comprometia a avançar por dentro da ordem, a burguesia limitaria sua resistência aos paradigmas dessa mesma institucionalidade. Tensões e embates seriam inevitáveis, mas sempre acabariam resolvidos por acordos que preservassem, de lado a lado, o arcabouço democrático.

Um primeiro grande teste, logo após as eleições diretas, parecia validar este pacto. Vitorioso com 36,6% dos votos, contra 34, 9% de Jorge Alessandri (Partido Nacional, de direita) e 27,8% de Radomiro Tomic (Partido Democrata Cristão, de centro), Allende precisava de aval parlamentar para ser empossado, conforme regra constitucional diante da inexistência de maioria absoluta. 

O segundo turno, por votação no Congresso, teria de ser decidido entre os dois primeiros colocados. O candidato socialista logrou obter 80% dos sufrágios indiretos, no dia 24 de outubro, apesar do clima de extraordinária pressão, na véspera alimentado pelo assassinato, por um comando de ultradireita, do comandante do Exército, general René Schneider, de sólidos compromissos legalistas.

Esse episódio, ao invés de alertar para as conspirações em curso, que envolviam a CIA e grupos locais desde o processo eleitoral, fez reforçar expectativas sobre a vitalidade democrática chilena, impulsionando ainda com mais vigor a estratégia allendista. A questão sempre seria, antes e doravante, impedir que houvesse qualquer transborde das instituições, e não se preparar para o momento em que a contrarrevolução se transformasse em golpe militar ou guerra civil, como ocorrera com a Espanha republicana entre 1936 e 1939.

Allende tomaria posse no dia 3 de novembro. Os primeiros meses de governo pareceram igualmente comprovar o potencial da orientação traçada pelos chefes da Unidade Popular. O presidente estatizou bancos e grandes empresas, incluindo as minas de cobre, além de aumentar salários, adotar programas sociais e acelerar a reforma agrária. A forte expansão do mercado interno levou o Chile a crescer 8,5% em 1971, o segundo melhor resultado em toda a América Latina. 

A propulsão provida por bons resultados econômicos repercutiria na performance em pesquisas de opinião pública, nas quais o líder socialista chegou a ter 64% de aprovação, em maio de 1972. Em meados desse mesmo ano, contudo, a situação começou a se inverter. Os partidos de direita e centro-direita, apoiados pelo governo dos Estados Unidos, almejavam conquistar dois terços do Congresso nas eleições previstas para março de 1973, com a clara intenção de afastar Allende através de um julgamento parlamentar. Teve início um pesado jogo político, midiático, judicial e econômico, dentro e fora do Chile, para sabotar a administração progressista.

Os tribunais passaram a reverter decisões de governo, particularmente aquelas referentes às nacionalizações de empresas e desapropriação de terras. A fuga de capitais, internos e internacionais, adquiriu ritmo assombroso. Os créditos nas instituições e bancos mundiais foram cortados. Grupos empresariais, para fugir do controle de preços, passaram a sabotar oferta de produtos, principalmente alimentos, desviando-os para o mercado paralelo.

O país rapidamente perdeu dinamismo econômico e assistiu a emergência de sérios problemas sociais, como a inflação e a escassez de bens fundamentais. A economia iria sofrer uma contração de 1,21% em 1972, piorando para 5,57% em 1973, com o custo de vida disparando para 225% e 606%, respectivamente.

Sem maioria parlamentar e com pouca influência no sistema de justiça, o governo Allende tinha suas margens de manobra estreitadas: o caminho institucional, fonte anterior de legitimidade e consenso, tornara-se fator limitador contra o movimento das classes e forças contrarrevolucionarias que operavam para sabotar a Unidade Popular.

Essas dificuldades provocavam divisões na esquerda chilena e na própria UP. O Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR, na sigla em espanhol), que não pertencia à coalizão governista, e o grupo dirigente do Partido Socialista propunham abertamente que se passasse à via revolucionária, expropriando a grande burguesia mesmo sem amparo institucional e preparando o povo para o embate armado contra um golpe que julgavam inevitável. Allende e o Partido Comunista, entre outros setores oficialistas, consideravam o respeito à institucionalidade uma regra de ouro e analisavam recuos programáticos que permitissem algum acordo para cessar a escalada conservadora.

Mesmo em um cenário adverso, o principal objetivo da direita, maioria qualificada, é frustrado nas eleições parlamentares. Enquanto a UP obteve 43,5% dos votos, a Confederação pela Democracia (CODE), coligação das legendas de direita e centro-direita, chegava a 54,6%. O impasse era tremendo. Ainda que crescendo, a esquerda não conquistara o controle do parlamento. E a direita, mesmo com o deslocamento da DC para o campo golpista, falhara em ter votos suficientes para o impeachment.

O equilíbrio de forças, ironicamente, bloqueava qualquer saída institucional. A partir daquele ponto, findado o primeiro trimestre de 1973, o golpe militar passa a ser construído pela confluência entre a burguesia chilena, os partidos de direita, os setores mais reacionários do oficialato e o governo dos Estados Unidos.

Estas frações não queriam correr o risco da UP continuar avançando eleitoralmente e eventualmente vencer a disputa presidencial de 1976. Nos cálculos geopolíticos, o Chile deveria servir de exemplo contra qualquer alternativa anticapitalista, ainda que circunscrita ao sistema institucional fundado pela própria democracia burguesa.

O deslizamento do bloco conservador para o golpismo escancarado, no entanto, criava uma assimetria estratégica de grande perigo: despreparado para enfrentar essa situação de ruptura, o governo Allende acenava com concessões que detivessem a insurgência reacionária, incluindo um plebiscito revogatório de seu próprio mandato, proposta lançada a poucas semanas do trágico final que se anunciava.

Os partidários da UP e o MIR, apesar das divisões, apelavam à mobilização popular, mas não havia acordo para transformar aquela base social numerosa e aguerrida em um contingente organizado para o combate político-militar, dividindo as próprias forças armadas e criando um bloco capaz de deter a contrarrevolução em todos os terrenos, estabelecendo uma institucionalidade extraordinária que quebrasse a coluna vertebral das classes dominantes chilenas.

Nem mesmo a frustrada intentona do dia 27 junho, conduzida pelo coronel Roberto Souper, com apoio de Pátria e Liberdade, principal organização de extrema-direita, fez o núcleo dirigente da administração nacional mudar de estratégia. O esmagamento desse levante, ao contrário, colocou novo tempero nas ilusões sobre o profissionalismo dos fardados.

A coalizão golpista, aos poucos, foi se dando conta que o allendismo somente conseguia se mover no terreno da legalidade e precipitou sua derrubada, recusando qualquer pacto que a postergasse ou a neutralizasse. A revolução se auto-impusera limites, mas não a contrarrevolução: era visível o despreparo dos partidos de esquerda para o enfrentamento aberto, que somente poderia ter sido evitado se o campo popular tivesse predominância nesse mesmo território, o da luta frontal pelo poder político, ao qual se proibiram desde os primórdios do governo.

No dia 11 de setembro, as ilusões com o paradigma de Togliatti caíam por terra. A via chilena ao socialismo, democrática e institucional, era soterrada por tanques, aviões e fuzis. Coerente até o último minuto, Allende sucumbiu no interior do Palácio de La Moneda, entregando a vida para que o povo carregasse sua morte como símbolo de resistência à ditadura militar-fascista que se instalava.

A tragédia allendista serviria de inspiração e aprendizado para outras lideranças, entre essas Hugo Chávez, com sua revolução pacífica e institucional, porém armada. A lenda da “democracia progressiva” esbarra historicamente na contrarrevolução burguesa, perante a qual se deve estar preparado ao enfrentamento até as últimas consequências, sob o risco de uma inevitável bifurcação entre derrota e capitulação.

 fonte: https://www.brasil247.com/blog/chile-ascensao-e-derrota-de-uma-revolucao-desarmada

 

20 Minutos História – Como foi o golpe militar contra Salvador Allende?


 

 


 

DOSSIÊ PINOCHET: CHICAGO BOYS NO CHILE, A INSPIRAÇÃO DE PAULO GUEDES E O MODELO PARA BOLSONARO

 

 

 


Gravidez por estupro e tortura revelam como a era Pinochet fez das mulheres troféus de guerra

Quarenta e seis anos após golpe contra Allende, livro reúne trechos de relatório que revelou atrocidades da ditadura chilena

 

 
Santiago12 SEP 2019 – 13:42 BRT – EL PAÍS

Quase todas as mulheres que foram torturadas no Chile desde o golpe de Estado de 11 de setembro 1973, há exatos 46 anos, sofreram também violência sexual, sem distinção de idade. Pelo menos 316 foram estupradas, incluindo 11 que estavam grávidas. Do total das vítimas que depuseram entre 2003 e 2004 na Comissão Nacional sobre a Prisão Política e Tortura, 12,5% eram mulheres (3.399). Dessas, 229 esperavam um filho, e algumas o perderam; outras deram à luz após serem estupradas por seus torturadores, e muitas passaram por intrincadas e recorrentes tortura sexuais que incluíam agressões físicas e humilhações diante de pais e irmãos.

“De acordo com os depoimentos, as violações hétero e homossexuais foram cometidas de maneira individual ou coletiva. Em alguns casos foi denunciado, além disso, que esse estupro ocorreu diante de familiares, como um recurso para obrigá-los a falar”, aponta o relatório da comissão, de 15 anos atrás, recordado agora no livro Así se Torturó en Chile (1973-1990), do jornalista Daniel Hopenhayn, que reúne os principais trechos do documento e explica os antecedentes históricos da tortura praticada no Chile durante os 17 anos da ditadura de Augusto Pinochet.

“A violência sexual contra as mulheres foi furiosa, desequilibrada”, afirma Hopenhayn. “Há cenas simplesmente inexplicáveis, que transbordam nossa imaginação sobre a condição humana”, acrescenta o jornalista, que considera que o Relatório Valech, como ficou conhecido o texto redigido pelo bispo Sergio Valech, que presidiu a comissão, “é um documento histórico extraordinário, que além disso está muito bem escrito”. “Mas sua própria exaustividade – tem mais de 500 páginas – limitou seu universo de leitores, relegando-o a um status de catatau institucional”. O autor diz que, passados 15 anos de sua publicação original, considerou-se que “era um bom momento para divulgar em um formato mais acessível as passagens que mais importa proteger não só do esquecimento, mas inclusive da inércia de uma memória oficial”.

Uma mulher que foi detida em 1974 na capital chilena e permaneceu dois anos presa sem nenhum processo relatou que “por causa do estupro cometido pelos torturadores, eu fiquei grávida e abortei na cadeia”. “Sofri choques elétricos, fui pendurada, posta no pau de arara, “submarinos” [ameaça de afogamento], simulação de fuzilamento, queimaduras com charutos. Obrigaram-me a tomar drogas, sofri estupro e assédio sexual com cães, a introdução de ratos vivos pela vagina e todo o corpo”, detalhou a vítima. O relato da mulher à comissão, reproduzido em Así se Torturó en Chile, é dilacerador: “Obrigaram-me a ter relações sexuais com meu pai e irmão que estavam detidos. Também a ver e escutar as torturas de meu irmão e pai. Puseram-me na churrasqueira, fizeram cortes com facão na minha barriga. Eu tinha 25 anos”.

Os membros das Forças Armadas e agentes secretos da ditadura de Pinochetagiam sem sombra de humanidade. Uma estudante de 14 anos, detida em 1973 na região de Maule (sul), foi obrigada a fazer sexo oral em três militares. “Não sei quem foram ou como eram, porque estavam encapuzados. Só sei é que minha vida nunca voltará a ser como antes”, diz o depoimento dela reproduzido no livro.

Capa de 'Assim se torturou no Chile'
Capa de ‘Assim se torturou no Chile’

Uma jovem de 16 viveu o inferno supostamente em um recinto da Direção de Inteligência Nacional (DINA), que funcionou entre 1974 e 1977: “Fui estuprada, punham-me correntes, me queimaram com cigarros, me davam chupões, puseram ratos (…). Me amarraram a uma maca onde cães adestrados me estupraram”. Também na DINA, em Santiago, uma jovem de 17 anos foi estuprada reiteradamente e sofreu queimaduras em seu útero: “Vivi torturas e sessões de masturbações por parte dos encarregados do recinto”.

Estupradas e grávidas

A Comissão reuniu depoimentos de 20 mulheres que, por causa das torturas, perderam suas gestações. “Depois de 30 anos, continuo chorando”, relatou uma chilena que estava grávida de três meses quando um dirigente sindical foi obrigado a estuprá-la e ela foi amarrada com corrente pelos seus peitos, garganta, ventre e pernas. Ocorreu na região de Puerto Montt, 1.000 quilômetros ao sul de Santiago. Os filhos e as filhas de mulheres grávidas que foram torturadas também tiveram sequelas indeléveis: “Minha infância foi uma vida cheia de tristezas, trauma e depressão devido ao dano emocional de meus pais, que produziu o fim do seu casamento”, contou uma mulher que estava no ventre de sua mãe, grávida de cinco meses, quando esta foi detida e torturada em 1975 na capital do país.

Houve 15 presas que tiveram seus bebês na prisão. No Relatório Valech, mulheres que foram estupradas contam que ficaram grávidas. Muitas delas abortaram de maneira espontânea ou provocada. Outras tiveram esses filhos. Uma chilena de 29 anos —filha de uma detida de 15 anos que foi estuprada por seu torturador— relatou: “Eu represento a prova explícita, represento a dor  mais forte que minha mamãe viveu em sua vida…”. “Depois que me contaram, comecei a beber, bebia todo o fim de semana, escondida. Por isso sinto que tenho muitas lacunas na minha adolescência”, disse. “Sinto que nós, crianças nascidas como eu, fomos tão prisioneiras e torturadas como as que estiveram presas.”

Houve alguns recintos de tortura especialmente enfocados na violência sexual. Como o Venda Sexy e La Discotéque, um centro da DINA que funcionava na capital. “Tinha música ambiente permanente, em alto volume […]. Nesse recinto se praticou com especial ênfase a tortura sexual. Eram frequentes as humilhações e violações sexuais de homens e mulheres, para o que se valiam também de um cão adestrado”, diz o livro. As vítimas de violência sexual —a maioria mulheres, mas também homens— tiveram que enfrentar consequências emocionais e físicas impossíveis de apagar.

Para Hopenhayn, “quando você encara estes relatos, percebe que uma sociedade não pode saber que torturou se não souber como torturou”. “Não se trata de pensar duas vezes antes de voltar a torturar, porque então acabará torturando. Trata-se de abominar isso só de pensar”, analisa o jornalista chileno.

RELATÓRIO VALECH: “ÚNICO EM SUA ESPÉCIE”

R.M.

O livro de Daniel Hopenhayn se centra nos métodos que a ditadura utilizou para torturar, com que objetivos específicos, como as vítimas foram escolhidas e em virtude de qual política institucional. Así se Torturó en Chile explica, além disso, que a escolha dos métodos de tortura não foi casual.

“Muitos desses métodos de tortura podem ser rastreados já na antiga Grécia, mas os aplicados no Chile eram os do manual da guerra antiterrorista que o exército francês concebeu nos anos cinquenta —depois de ser derrotado pelo Viet Minh na guerra da Indochina— e que estreou na Batalha de Argel (1957)”, conta o jornalista chileno.

“Dali surgiu o que na América Latina se chamou Doutrina de Segurança Nacional˜.  Hopenhayn diz que nos anos sessenta essas técnicas de tortura foram ensinadas nas academias militares norte-americanas pelos militares franceses que tinham atuado na Argélia. E depois “repassadas aos Exércitos latino-americanos com o objetivo de impedir uma insurreição comunista na região”, afirma.

Para o autor, o relatório da Comissão Nacional sobre a Prisão Política e Tortura, formada no Governo do socialista Ricardo Lagos (2000-2006), é “único em sua espécie”. “Durante o século XX houve dezenas de países cujos Estados fizeram da tortura uma política pública, mas acredito que nenhum fez um esforço desta magnitude para reconstruir os fatos”. Daí que, segundo o jornalista, o resultado seja não só crucial para a memória histórica do Chile como também do interesse de qualquer um que deseje compreender a adoção institucional, territorial e social de uma política sistemática de tortura.

 

fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/10/internacional/1568135550_217522.html

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