“A Igreja espera de vocês, religiosas e religiosos, uma decisiva opção de partir em saída rumo à Amazônia”, afirma Dom Cláudio Hummes

Às portas de completar um ano da Assembléia do Sínodo para a Amazônia e no marco do Tempo da Criação, a Confederação Latianoamericana de Religiosos – CLAR, organizou, de 9 a 11 de setembro, um Seminário Virtual sobre Vida Religiosa e Amazônia, cujo tema é “Amazônia: Novos Caminhos para a Vida Religiosa e uma Ecologia Integral“, tendo como foco o olhar da Vida Religiosa no contexto pan-amazônico.

A reportagem é de Luis Miguel Modino.

Segundo a Secretária Executiva da CLAR, “o objetivo é poder aprofundar e aplicar as iluminações do Sínodo da Amazônia para a vida religiosa, procurando favorecer o encontro e a reflexão coletiva com a vida religiosa, mas incluindo também os leigos e leigas que caminham na Amazônia, acrescentando a dinâmica da escuta das realidades amazônicas, sempre à luz do processo sinodal”. Trata-se, afirma a Irmã Daniela Cannavina, de “discernir compromissos concretos em defesa da vida na Amazônia, que nos disporão para a missão em rede e em itinerância, que são dois pontos centrais”. O Seminário foi dirigido, lembra a irmã, “à vida religiosa que tem presença na Amazônia, ou àqueles que gostariam de ter uma, para poder fazer esta rede”.

O seminário está enquadrado em uma conjuntura na qual se destaca “a importância cada vez maior da Amazônia no contexto local e internacional e na salvaguarda do planeta, em contradição com o risco crescente de devastação de sua biodiversidade, de suas comunidades ancestrais e urbanas”, afirma a secretária da CLAR. A partir daí, “é que a vida religiosa quer refletir e buscar uma ação muito mais ética e atualizada no contexto amazônico“, de acordo com a religiosa. Nessa perspectiva, ela reconhece que “esse encontro tende a colocar esses pilares e nos ajudar a um contínuo e profundo discernimento para termos realmente uma presença ativa e de incidência na defesa do território amazônico“.

É preciso fazer “uma leitura do que está acontecendo na Amazônia e das ações que podem ser realizadas”, afirmou Dário Bossi, que vê a Amazônia como parte de um sistema maior, o capitalismo, que atingiu seus limites, baseado em um círculo vicioso de destruição, o que o tornou mais agressivo. Segundo o provincial dos Missionários Combonianos no Brasil, a Amazônia é uma das últimas fronteiras deste sistema, incentivando o extrativismo predatório, com o apoio de países que flexibilizam as leis ambientais, reduzem controles e multas, exportam commodites, facilitando a destruição e o acesso aos bens por poucos, em detrimento de muitos.

Neste contexto, a pandemia da COVID-19 chegou como um novo ataque, que se soma a um ataque estrutural, segundo o Padre Bossi, explicitando e amplificando as desigualdades. A pandemia é uma evidência do racismo estrutural que existe em nossas sociedades. Como exemplo, no Brasil, 48% dos indígenas hospitalizados morrem, 36% entre a população negra e 28% da população branca, uma leitura que poderia ser feita desde uma base econômica, segundo o religioso, que adverte sobre a perspectiva de um mundo mais pobre, com menos oportunidade de emprego, que vai inflamar os nacionalismos.

Diante das crises, Dário Bossi destaca a força da organização social e comunitária, que mostra soluções esperançosas, com organizações que pressionam os Estados do ponto de vista judicial e político, com maior organização política dos povos indígenas e posições eclesiásticas corajosas. Neste sentido, citou alguns exemplos, como a Assembléia Mundial da Amazônia, como espaço de encontro, a Campanha Amazoniza-te, as denúncias internacionais, no campo político e financeiro, a auto-proteção de líderes e comunidades ameaçadas, ou o compromisso urgente e concreto da CLAR, de pressionar para que o Acordo de Escazú seja aprovado.

Vida Religiosa é chamada a contribuir para que a consciência amazônica seja fortalecida, de acordo com Birgit Weiler. A religiosa destacou a importância da escuta no processo sinodal, “que nos transforma a Cristo e a seu Evangelho”, ajudando a “fazer da realidade um caminho de transformação que Deus quer fazer em nós”. Uma metanoia é necessária, uma conversão da mente e do coração, em relação a Deus, à Terra e aos outros, insiste a perita sinodal, que vê a necessidade de escutar o grito da Terra, mas também as mensagens de vida em meio ao sofrimento.

Como Igreja, é necessário “ser aliados daqueles que conhecem o valor de seu território e protegem a Amazônia. Escutar o grito da Terra e dos povos, que é o mesmo, e fazê-lo junto com os povos, como companheiros na luta”, segundo a religiosa. Ela vê necessário passar da escuta à conversão integral, buscar o que nos une e não o que nos separa, ver como o Espírito nos impele a gerar alianças. Isto deve ser traduzido em um diálogo inter-religioso com os povos originários e os afrodescendentes, em aprender a discernir juntos, em um processo sinodal, como irmãos e irmãs que caminham juntos e decidem escutar o Espírito, tornando possível uma Igreja disposta a “desaprender, aprender e reaprender” (IL 102).

Weiler refletiu sobre a importância dos sonhos em alguns povos amazônicos, seu potencial de transformação, levando à descoberta de seu potencial de resistência e resiliência em meio a ameaças. Neste sentido, ele afirmou que “os sonhos apresentados pelo Papa Francisco nos mostram que as coisas podem ser diferentes, elas nos encorajam”. Isto se concretiza nas diferentes dimensões, como a social, que deve promover o diálogo, ou a cultural, baseada na ideia do poliedro amazônico, do qual o Papa Francisco fala no número 29 da Querida Amazônia, que nos chama a ver a Amazônia como um laboratório onde podemos aprender a viver juntos na diversidade, a transformar espaços de violência, de tráfico humano, de fome, como um lugar teológico, a ter uma boa vida como fonte de inspiração.

No caso da dimensão ecológica, que tem como caminho a ecologia integral, ela deve nos levar a promover a ética do encontro e do cuidado. Quando falamos da dimensão eclesial, que parte da sinodalidade, somos chamados a fortalecer as relações da Igreja em nível global, a valorizar o papel e o trabalho das mulheres, a superar mecanismos de clericalismo, de machismo, a encontrar na sinodalidade uma forma de ser irmãos e irmãs para gerar caminhos alternativos, enfatizou Birgit Weiler. A religiosa encerrou sua intervenção recordando as palavras do recém falecido Dom Pedro Casaldáliga: “Viver significa colocar um pé e um coração atrás do outro, no caminho que se abre”.

Falar de missão deve nos levar a entender que “a Igreja é essencialmente missionária, como nos recordou o Concilio Vaticano II, seguindo o mandato de Jesus Cristo de anunciar o Evangelho” uma reflexão partilhada por Dom Cláudio Hummes. Segundo o presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônia – REPAM, e da Conferência Eclesial da Amazônia – CEAMA, o Papa Francisco retoma este mandato missionário para nosso tempo no seu documento programático, Evangelii Gaudium, onde aparece que “hoje todos somos chamados a esta nova saída missionária”. Ele chama a “uma conversão pastoral e missionária que não pode deixar as coisas como estão”, dizendo sonhar com “uma opção missionária, capaz de transformar tudo, procurando mais a evangelização do mundo atual do que a autopreservação”.

Segundo o cardeal Hummes, “o Sínodo especial para a Amazônia nasceu deste impulso missionário do Papa Francisco“. Ele lembrava o encontro do Papa Francisco com os bispos do Brasil no Rio, onde lhes apresenta a Amazônia como teste decisivo, banco de prova para a Igreja e a sociedade brasileira. Naquele encontro, lembrava Dom Claúdio, “o Papa Francisco falou sobre a importância de consolidar um clero autóctone e o rosto amazônico da Igreja”. A partir dai a Amazônia tornou-se um dos temas fundamentais do Papa, segundo o presidente da CEAMA. Nesse sentido, ele destaca que “o contexto mundial também indicava nessa direção, pois a crise climática e socioambiental no mundo todo, crescia e ameaçava o futuro do Planeta. A Amazônia mostrou ter importância fundamental para o futuro saudável da nossa casa comum“.

Papa intuiu que a Igreja missionária na Amazônia precisava ser relançada, o que foi se desenvolvendo até a decisão de convocar um Sínodo para a AmazôniaDom Cláudio define esse momento como um processo muito intenso, durante o qual foi criada também a REPAM, “que se tornou o principal serviço de preparação do Sínodo no território”. Nesse sentido, ele insiste em que “a REPAM continua sendo esse grande serviço missionário e sinodal, agora ao lado, intimamente conectada com a CEAMA“.

Para o cardeal brasileiro, “o Documento Final do Sínodo e Querida Amazônia, são documentos que continuam todo esse processo e o iluminam, insistindo no relançamento da Igreja na Amazônia, uma Igreja em saída missionária, encarnada, inculturada e intercultural, com rosto amazônico, que deve cuidar da nossa casa comum, num projeto de ecologia integral“. Nessa perspectiva, a CLAR quer convocar e encorajar os religiosos e as religiosas para esta missão, segundo o cardeal Hummes, que afirma que “o Papa confia em que no processo de aplicação das indicações sinodais, a vida religiosa assuma a missão e se sinta chamada a caminhar com os povos da Amazônia“.

Querida Amazônia e o Documento Final mostram as pistas sobre como deve ser essa missão da vida religiosa na Amazônia, falando em apostar em uma vida religiosa com identidade amazônica, fortalecendo as vocações autóctones. Dom Cláudio falava que “a vida consagrada deve ter a coragem evangélica de priorizar a missão”. Esta missão, segundo o purpurado, exige caminhar junto com todos, mas preferencialmente com os povos indígenas e os pobres e vulneráveis da região, sem renunciar à proposta de fé que recebemos do Evangelho, levando aos outros a proposta da vida nova, anunciando um Deus que ama cada ser humano. Por isso, ele insistia em que “a Igreja espera de vocês, religiosas e religiosos, uma decisiva opção de partir em saída rumo à Amazônia, onde sempre estiveram”.

fonte: http://www.ihu.unisinos.br/602735-a-igreja-espera-de-voces-religiosas-e-religiosos-uma-decisiva-opcao-de-partir-em-saida-rumo-a-amazonia-afirma-dom-claudio-hummes


Região Trans-Purus, a última floresta intacta: A ameaça da rodovia AM-366

“No caso da AM-366, vários grupos de atores podem ser esperados e que aproveitarão da oportunidade, como grandes grileiros, pequenos posseiros, sem-terras organizados e madeireiros. A grande área de terras devolutas nessa área faz com que ela seja especialmente atraente para grileiros, e a sucessão de “leis de grileiros”, a terceira da quais está atualmente avançando na Câmara dos Deputados, aumentam este perigo. A possibilidade da chegada de empresas de biocombustíveis representa outro risco”, escrevem Philip M. Fearnside, doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM). É membro da Academia Brasileira de Ciências e recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), Lucas FerranteAurora M. Yanai e Marcos Antonio Isaac Júnior, pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em artigo publicado por Amazônia Real, 07-09-2020.

Eis o artigo.

A proposta da rodovia AM-366 e estradas associadas dariam acesso ao enorme bloco de floresta na região Trans-Purus a partir da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho). A AM-366 cruzaria o rio Purus em Tapauá e ligaria a BR-319 (ManausPorto Velho) a TeféCoari e Juruá [1] (Figura 8).

Figura 8. Estradas laterais planejadas a partir da rodovia BR-319, incluindo a AM-366, que abriria a região Trans-Purus à entrada de desmatadores. Fonte: Fearnside & Graça [1].

AM-366 passaria pelo Parque Nacional Nascentes do Lago Jari e pelas Terras Indígenas Apurinã Iagarapé Tauamirim e Apurinã Igarapé São João para chegar a Tapauá a partir da BR-319, uma estrada federal que foi abandonada em 1988, mas que está sendo “mantida” desde 2015 enquanto aguarda a aprovação de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) federal antes de ser “reconstruída” [2, 3]. O decreto que cria o parque nacional contém uma cláusula que exclui uma faixa de terra que divide o parque especificamente para permitir a passagem da AM-366 [4].

Uma vez aberta, a estrada construída dará acesso a floresta intacta e grande parte dos eventos que se seguem estarão fora do controle do governo. O anúncio de planos para governança ao longo das estradas não altera este quadro, como mostrado pela história de outras estradas como a BR-364 (CuiabáPorto Velho [5] e BR-163 (SantarémCuiabá) [6]. Na BR-319 os eventos já estão indo em direção contrária dos planos para governança, como mostrado pelo surgimento de um ramal ilegal adentrando em uma área protegida a partir da rodovia [7].

No caso da AM-366, vários grupos de atores podem ser esperados e que aproveitarão da oportunidade, como grandes grileiros, pequenos posseiros, sem-terras organizados e madeireiros. A grande área de terras devolutas nessa área faz com que ela seja especialmente atraente para grileiros, e a sucessão de “leis de grileiros”, a terceira da quais está atualmente avançando na Câmara dos Deputados [8], aumentam este perigo. A possibilidade da chegada de empresas de biocombustíveis representa outro risco [9].

Há também grupos internacionais com interessa na área, como as empresas malasianas de plantação de dendê que tentaram comprar áreas nessa área a partir de Tefé em 2008 [10], e as empresas madeireira malasianas e chinesas que tentaram comprar áreas a partir do rio Purus em 1997 [11].

Notas

[1] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central. Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.

[2] Fearnside, P.M. 2018. BR-319 e a destruição da floresta amazônica. Amazônia Real, 19 outubro de 2018.

[3] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2020a. BR-319: O caminho para o desmatamento da Amazônia. Amazônia Real, 07 de agosto de 2020.

[4] Brasil, PR (Presidência da República). 2008. Decreto de 8 de maio de 2008. Dispõe sobre a criação do Parque Nacional Nascentes do Lago Jari, nos Municípios de Tapauá e Beruri, no Estado do Amazonas, e dá outras providências. PR, Brasília, DF.

[5] Fearnside, P. M. 1989. A Ocupação Humana de Rondônia: Impactos, Limites e Planejamento. CNPq Relatórios de Pesquisa No. 5. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasilia, DF, 76 p.

[6] Fearnside, P.M. 2007. Brazil’s Cuiabá-Santarém (BR-163) Highway: The environmental cost of paving a soybean corridor through the Amazon. Environmental Management 39(5): 601-614.

[7] Fearnside, P.M., L. Ferrante & M.B.T. de Andrade. 2020. Ramal ilegal a partir da rodovia BR-319 invade Reserva Extrativista e ameaça Terra Indígena.Amazônia Real, 09 de março de 2020.

[8] Fearnside, P.M. 2020. O perigo da “lei da grilagem”. Amazônia Real, 22 de maio de 2020.

[9] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2020. Os planos de biocombustíveis do Brasil impulsionam o desmatamento. Amazônia Real, 13 de janeiro de 2020.

[10] Amazonas em Tempo. Malaios querem terras do Amazonas. Amazonas em Tempo 22 de agosto de 2008, p. C-8.

[11] Edson, L. 1997. Embaixador da Malásia depõe sobre madeireiras asiáticas. Amazonas em Tempo, 26 de junho de 1997, p. A-4.

Leia mais

fonte: http://www.ihu.unisinos.br/602701-regiao-trans-purus-a-ultima-floresta-intacta-3-a-ameaca-da-rodovia-am-366

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