Apesar de a indústria brasileira estar em franco declínio e o desemprego em patamares negativos assustadores, o que deveria preocupar os empresários, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) tem apoiado o governo de Jair Bolsonaro desde sempre. A entidade publicou em seu site uma pesquisa segundo a qual, em agosto, o índice de confiança no setor vinha crescendo. “Empresários de todos os setores estão confiantes”, diz a entidade, apesar de não haver nenhum sinal de plano governamental que aponte para a retomada do crescimento.
A própria CNI constata, em outra publicação, que a indústria do país está em trajetória de queda desde 2009. “Com a nova retração em 2019, a indústria nacional mantém perda de relevância no cenário global e passa a ocupar a 16ª posição”, diz a entidade.
Como se explica tal contradição? “Você acha que eles vão deixar de apoiar o governo porque a indústria está numa situação ruim? Não há uma relação de uma coisa com a outra”, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. “Não é absurdo, é da vida contemporânea. Eles se agarram ao que corresponde mais à ideologia deles. As pessoas agem contra o que seriam os seus interesses”.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, que episodicamente é dado como praticamente fora do governo, continua apoiado pelo mercado, embora o país esteja “uma lambança, uma desorganização, uma confusão”, na avaliação do economista.
“A aposta deles (do mercado) é nas reformas e no Paulo Guedes, e eles acabam tolerando algumas violações”, diz Belluzzo. Para ele, o teto de gastos, instituído ainda no governo de Michel Temer, é “insustentável”. “É uma das ideias mais esdrúxulas que eu já vi.”
E a agenda de Paulo Guedes segue no Congresso Nacional, com apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). “O Maia parece que é preparado, mas é despreparado. Ele está sempre com essas posturas e atitudes liberaloides, e o país está à deriva”, constata o economista.
Insensível à crise econômica e no mercado de trabalho, a ideia do governo de instituir a carteira de trabalho verde e amarela continua em pé. Embora a Medida Provisória 955/20, que criava o contrato instituindo a “novidade”, tenha perdido a validade em agosto, Bolsonaro já afirmou que vai apresentar um novo texto.
Na opinião de Belluzzo, a ideia do governo é mais do que uma forma de se dispensar as empresas de respeitar os direitos dos trabalhadores, já que a proposta cria legalmente o salário por hora. “É muito grave, porque vamos retornar ao regime de contrato de trabalho anterior à revolução industrial, o regime do putting-out, em que você pagava por hora, ou por peça etc. Ou seja, você está dissolvendo as relações salariais”, afirma o economista, em entrevista à RBA.
A entrevista é de Eduardo Maretti, publicada por Rede Brasil Atual, 06-09-2020.
Eis a entrevista.
O mercado parece que continua apostando em Paulo Guedes, embora sempre tenha o boato de que ele pode cair a qualquer momento…
O mercado está apostando em qualquer coisa. E não é porque Paulo Guedes vai ter umas derrotas que vai sair. Ele vai tentar ficar o tempo inteiro. Eles acabaram de retirar (o pedido de urgência) da reforma tributária da Câmara. Está tudo uma lambança, tudo uma desorganização, uma confusão. E ele está brigando com o Maia. O fato é que o país está à deriva.
Eles podem brigar, mas Rodrigo Maia continua apoiando a agenda de Paulo Guedes, não é?
O Maia parece que é preparado, mas é despreparado. Ele está sempre com essas posturas e atitudes liberaloides, mas o país está à deriva, e todas essas reformas, e a maneira como estão propostas, não vão chegar a lugar nenhum. Não têm nada a ver com a possibilidade de recuperar o crescimento.
Segundo analistas políticos, o mercado é que tem sustentado o governo e Paulo Guedes. Ou seja, a situação de sustentação continua…
Sim, e eles estão tolerando inclusive claras violações do regime orçamentário. Mas o mercado é assim. A forma de coordenação da economia e de controle está no mercado financeiro, estruturalmente. Se as pessoas não sabem isso, não dá para entender nada. Mas eles exercem esse poder de uma maneira muito peculiar. A aposta deles é nas reformas e no Paulo Guedes, e eles acabam tolerando algumas violações, porque preferem observar as violações, não fazer nada e continuar apoiando.
Violações de que tipo?
Violações das regras que eles considerariam adequadas para a gestão fiscal, por exemplo. Vai ocorrer um momento em que o teto de gastos vai ser violado, porque é impossível cumprir, é insustentável. É uma das ideias mais esdrúxulas que eu já vi. Aliás, a reforma da Previdência era apresentada como a bala de prata das reformas que ele estava pretendendo. O que aconteceu? Teve reforma da Previdência e não aconteceu nada.
Só perda de direitos…
Sim, só isso. Agora querem o projeto de lei que estabelece a carteira de trabalho verde e amarela. O que é isso? Salário por hora, que também é uma forma de você dispensar as empresas de respeitar os direitos dos trabalhadores. É muito grave o salário por hora, porque vamos retornar ao regime de contrato de trabalho anterior à revolução industrial, o regime do putting-out, em que você pagava por hora, ou por peça etc. Ou seja, você está dissolvendo as relações salariais. E o efeito disso sobre a economia vai ser muito grave. Porque vai deprimir violentamente o poder de compra da massa de trabalhadores.
Fora que a indústria está cada dia pior, mais deprimida…
Sim, claro. E agora a CNI se deu conta de que o Brasil está caindo no ranking dos países em desenvolvimento. No final dos anos 1970, era o país mais industrializado entre eles e ocupava entre a quinta e a sexta posição no ranking global.
Não é curioso que a CNI tem apoiado o governo desde sempre?
É isso. E você acha que eles vão deixar de apoiar o governo porque a indústria está numa situação ruim? Não há uma relação de uma coisa com a outra. As pessoas pensam que tem, mas não tem. São os paradoxos da vida social brasileira. Os industriais e a indústria estão se ferrando, mas os industriais continuam apoiando o governo que está ferrando a indústria.
Como se explica esse absurdo?
Não é absurdo, é da vida contemporânea. Eles se agarram ao que corresponde mais à ideologia deles. As pessoas agem contra o que seriam os seus interesses.
Mas os industriais não estão ganhando em aplicações no mercado financeiro, em vez de investir na produção?
Sim, mas isso é assim em todo lugar do mundo. Tirando a China, as empresas industriais viraram propiciadoras de ganhos financeiros. No mundo inteiro, e no Brasil é assim também. E eles não têm espírito de corpo, espírito de classe. Não existe aqui uma corrente industrialista como já existiu no Brasil. Existiam industriais que eram comprometidos com o projeto da industrialização. Partindo do Roberto Simonsen, indo até Antônio Ermírio de Moraes. Mas essa turma acabou.
Conservadores, mas industrialistas…
Sim, conservadores mas industrialistas. Perfeitamente, é isso mesmo.
O que achou da proposta de reforma administrativa?
Acho que está muito confusa, estão tentando preservar os militares. Vai ser difícil incluir a magistratura, o Judiciário nisso, que vai apresentar sua própria reforma, e eles são muito cientes das suas prerrogativas. Vai acabar afetando fundamentalmente a faixa de menor renda do funcionalismo, porque o resto vai resistir muito, como já está ficando claro.
A reforma administrativa que tinha que fazer é pensar numa arquitetura institucional entre o governo, os bancos públicos, as empresas públicas. Mas isso não passa… Aliás, você já ouviu a palavra “indústria” da boca de algum dos membros da equipe econômica? Eles nunca pronunciaram essa palavra, porque isso não está no horizonte deles. Não sabem exatamente o que significa isso. Eles estão falando de tudo, menos da indústria.
Leia mais
- No Brasil das reformas, retrocessos no mundo do trabalho. Revista IHU On Line. Edição N° 535
- “Que país se espera?”. Eis a questão a ser respondida pela superação da crise econômica. Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo
- O “velho capitalismo” e seu fôlego para dominação do tempo e do espaço. Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo
- O “velho capitalismo” e seu fôlego para dominação do tempo e do espaço. Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo. Parte II
- “Cortar direitos trabalhistas não gera emprego”
- Contrato verde amarelo aprofunda os prejuízos dos trabalhadores
- Para o Dieese, MP 905 é novo desmonte de direitos, uma ‘bolsa-patrão’
- Plano mais Brasil e a subordinação da cidadania ao equilíbrio fiscal. Entrevista especial com Felipe Calabrez
- Plano de Guedes constitucionaliza drenagem de recursos dos pobres para os ricos
- Juízes do Trabalho criticam programa ‘verde e amarelo’. Empresários elogiam
- Programa de estímulo à contratação de jovens alivia empresas e prejudica desempregados
- Em dois anos de reforma trabalhista, emprego CLT vira miragem
- Menos empregos geram… bicos muito piores!
- IBGE: Brasil bate recorde com 38 milhões de trabalhadores na informalidade
- Com MP do INSS de Bolsonaro, só as empresas saem ganhando
- Flexibilização de direitos não resulta na criação de novos postos de trabalho, afirma Anamatra
- Como iludir falando verdades
- Desemprego que não cai, informalidade e desânimo: recessão dos pobres é mais longa que a dos ricos
- Pesquisa de Emprego e Desemprego do DIEESE e Seade descobriu o que estava oculto
- MP da Liberdade Econômica. “Não podemos ter um governo que diga que tudo aquilo que garante a saúde e a dignidade do trabalhador é um obstáculo a ser superado”. Entrevista especial com Ruy Braga
- Desemprego aumenta e RS tem mais de 500 mil pessoas sem trabalho
- PED 451 – Há mais de três décadas, leitura inovadora sobre a dinâmica do mercado de trabalho
- Trabalho sem salário fixo e com jornada reduzida avança e já representa 12% das novas vagas formais
- Baixo investimento e alto desemprego: as armadilhas da estagnação econômica
- Emprego formal evapora e frustra discurso de recuperação
- O recorde do desemprego e da subutilização da força de trabalho no Brasil
- A crise mais prolongada e profunda do emprego formal no Brasil
- Preço do gás e desemprego elevam uso da lenha para cozinhar no Brasil; Queima trará efeitos negativos para saúde e meio ambiente
- Desemprego de longo prazo cresce 42,4% entre 2015 e 2019
- Geração de emprego continua desafio para 2019. 27 milhões de pessoas querem trabalhar e não encontram vagas ou estão subutilizadas
- “É assustadora a bomba-relógio que temos pela frente”. 80% dos trabalhadores brasileiros são pobres e vivem com renda de até 1.700 reais. Entrevista especial com Waldir Quadros
fonte: http://www.ihu.unisinos.br/602666-belluzzo-com-carteira-verde-e-amarela-retornaremos-ao-regime-anterior-a-revolucao-industrial