Administrador paroquial em BH, ele defende que a ressurreição de Cristo inspira compromisso com justiça social
Por Jean Silva, publicado no Portal Brasil de Fato
Em meio a guerras, desigualdades e o avanço de discursos de ódio, qual é o sentido da Páscoa nos dias de hoje? Para o padre Manoel Godoy, administrador da Paróquia São Tarcísio, no bairro Nova Cintra, em Belo Horizonte (MG), a celebração da ressurreição de Cristo carrega uma dimensão radical de transformação social e compromisso com os mais pobres.
Em entrevista ao Brasil de Fato MG, ele convida cristãos e cristãs a viverem a Páscoa como gesto concreto de solidariedade, partilha e construção de um mundo mais justo, livre de todas as formas de morte — físicas, sociais e simbólicas.
“Fé alienada é um paradoxo insuportável”, afirma o padre, que também alerta para os riscos do individualismo, da mercantilização dos símbolos religiosos e da atuação reacionária dentro da própria Igreja.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato MG – Qual é o significado profundo da Páscoa para os cristãos em um mundo marcado por desigualdades, guerras e crises sociais?
Padre Manoel Godoy – Celebrar a Páscoa na conjuntura atual é um grande desafio, mas desde sempre foi assim. Imaginemos o povo hebreu chegando na terra da promessa com tudo por construir, por fazer, pois foi assim que celebraram a primeira Páscoa. Tal celebração consistia em uma refeição com vários elementos de valor simbólico, como as ervas amargas e os pães ázimos.
E, nessa celebração, se fazia memória da Pessach, que significa passagem ou pulo, que lembrava o pulo do anjo exterminador da última praga do Egito. Com o sangue do cordeiro consumido na ceia, untava-se a porta da casa; e a porta untada era pulada pelo anjo na sua passagem terrível, exterminando os primogênitos. Por isso, Páscoa significa essa passagem do anjo protegendo os filhos dos hebreus, que se preparavam para sair do Egito, com ou sem a permissão do Faraó do Egito.
Fazendo essa memória, o povo hebreu passava de geração a geração a libertação da escravidão do Egito. Depois de Jesus Cristo, esse evento simboliza a sua vitória sobre a morte, pela força da ressurreição. Portanto, para os cristãos, Páscoa tem aroma de utopia, de sonho, de superação de todas as desigualdades, de todos os conflitos e todas as crises sociais. A força da ressurreição de Cristo funciona como motor de arranque para uma sociedade totalmente nova e livre de todas as desigualdades e todos os preconceitos.
A Páscoa é uma celebração de libertação e esperança. Como essa mensagem pode ser vivida concretamente pelas comunidades em meio às adversidades atuais?
Padre Manoel Godoy – As comunidades cristãs celebram a Páscoa afirmando que todas as adversidades podem ser superadas, por meio de gestos concretos de solidariedade que acontecem nos seus espaços e fora deles.
Um dos escândalos cristãos mais contundentes está na intolerância entre as mais diversas denominações que dizem se inspirar nos Evangelhos. Como justificar os diversos ataques que as agremiações cristãs fazem entre elas? É um péssimo testemunho que se dá ao mundo não cristão. Jesus Cristo dizia que os cristãos seriam reconhecidos como tais pelo amor que circulava entre eles.
Portanto, superar as adversidades atuais é questão de autenticidade e identidade cristãs. A Páscoa como festa da libertação tem esse germe de superação das adversidades e é semente de uma sociedade mais justa e igualitária.
Páscoa tem aroma de utopia, de sonho, de superação de todas as desigualdades, de todos os conflitos e todas as crises sociais
Muitas pessoas reduzem a Páscoa a símbolos comerciais, como ovos de chocolate. Como a Igreja pode resgatar o sentido transformador dessa data, especialmente entre os mais jovens?
Padre Manoel Godoy – O capitalismo é implacável na sua sanha idolátrica. Idolatria é tudo o que ocupa o lugar de Deus. Ter símbolos para marcar a data da Páscoa não é ruim, pois, os símbolos indicam uma realidade mais profunda. Porém, o que o capitalismo faz é tornar os símbolos um valor em si mesmos, não mais um valor indicativo de algo mais importante.
Assim, chocolates, coelhos e ovos são idolatrados como se o evento se resumisse no consumo daquilo que não deveria passar de símbolo. Para os jovens, é preciso tirar a Páscoa do campo teórico e mostrar o que é a força da ressurreição de maneira prática.
Quando se é solidário, então é Páscoa. Quando se promove a partilha, então é Páscoa. Quando se luta por um mundo novo, então é Páscoa. Quando se cultiva sentimentos de autenticidade, de justiça, de amor e perdão, então é Páscoa. Nesse sentido, sobretudo para os jovens, é preciso tirar a Páscoa do campo teórico e ajudá-los a perceber seus efeitos em tudo o que é promoção do bem maior.
A tradição bíblica mostra que Jesus ressuscitou em meio aos pobres e marginalizados. Como essa dimensão social da Páscoa se reflete na atuação da Igreja hoje?
Padre Manoel Godoy – Jesus nasceu e viveu em meio aos pobres e enfermos; junto de todos os que eram descartados pela sociedade palestinense de seu tempo. Impossível dissociar a ressurreição de Jesus do todo de sua trajetória. Ressuscitando, Jesus traz consigo todos os pobres pelos quais de maneira muito especial deu a sua vida.
Jesus Cristo dizia que os cristãos seriam reconhecidos como tais pelo amor que circulava entre eles
Não é possível celebrar a ressurreição de Jesus sem anunciar uma nova vida para os pobres e denunciar todas as injustiças das quais eles são vítimas. O ressuscitado era um marginalizado, um fora da lei, assassinado como bandido e levantado na cruz entre bandidos. A Instituição Católica, como todas as instituições, sofre de ambiguidades e contratempos internos.
No Brasil, ela já foi mais profética, mais comprometida com as causas sociais. Hoje, vê crescer no seu seio uma força reacionária que, em nome de uma antiga tradição, a puxa para traz, sob o slogan de que sua missão precípua é salvar almas. Ora, não se salva almas sem salvar a pessoa na sua integridade.
Nesse contexto, a Páscoa quer trazer a instituição para os trilhos da profecia novamente. A força da ressurreição pode fazer esse movimento libertador novamente, tirando a instituição de sua letargia e a colocando em pé de utopia libertadora outra vez.
Em um contexto de crescente individualismo, como a mensagem pascal – que fala de solidariedade e vida nova – pode inspirar mudanças na sociedade?
Padre Manoel Godoy – É importante ressaltar que a mensagem pascal está em profunda conexão com a proposta de ecologia integral assumida pela Campanha da Fraternidade da quaresma de 2025.
Deixar claro que tudo está interligado no planeta é propor uma superação do espírito individualista que assola a sociedade. Estar interligado com todas as criaturas do planeta, significa que a luta contra o individualismo não é somente vencer o egoísmo social que toma conta das relações humanas. É também fazer emergir uma consciência de que somos todos dependentes uns dos outros, quer seja no mundo animal, quer seja no mundo vegetal, mineral e na globalidade das criaturas planetárias.
Somente com o respeito ao ecossistema seremos um planeta em vias de superação de todo o individualismo. A Páscoa tem essa força, pois Jesus vence a morte de maneira integral, não somente a morte humana, mas também a morte de todos os seres que se movem e respiram.
Além das celebrações litúrgicas, que ações concretas a Igreja pode promover para traduzir o espírito da Páscoa em gestos de justiça e fraternidade?
Padre Manoel Godoy – A cada ano, a Igreja propõe um foco concreto de ações para ser meditado e vivido no período quaresmal. Neste ano, o foco é a ecologia integral. Porém, de maneira mais sistemática, a Igreja anuncia três campos de ação, que fortalecem a espiritualidade cristã e fomentam ações solidárias: o jejum, a oração e a caridade.
O jejum deve provocar a solidariedade com todos os que passam fome, carências na alimentação. Esse é o jejum autêntico que leva à partilha dos bens com todos os que não os tem.
A oração precisa estar conectada com toda a realidade na qual o povo, sobretudo os pobres, estão mergulhados. Oração sem prática de justiça é alienação. E se há alguma coisa que Cristo nunca foi é homem alienado da realidade dos pobres e enfermos de seu tempo.
E a caridade é a marca da Igreja. Caridade no sentido de assistência imediata às necessidades dos pobres, mas também caridade no sentido sócio-político. Essa se faz em aliança com todos os movimentos populares e de trabalhadores; na defesa dos direitos humanos num sentido muito agudo e amplo; na atuação concreta contra todas as forças reacionárias e exploradoras, que roubam a dignidade de todos os descartados sociais.
A Igreja tem uma vasta experiência nesse campo, e a Páscoa deve ser um motivo renovador de seus compromissos com uma sociedade que acredita que outro mundo é possível.
Como o senhor vê a relação entre fé e compromisso social, especialmente em um tempo que exige esperança ativa diante das injustiças?
Padre Manoel Godoy – Não há fé autêntica sem compromisso com a realidade dos pobres e oprimidos. O culto que agrada a Deus, segundo a profecia, é libertar os cativos, socorrer os pobres, devolver a vista aos cegos, fazer andar os coxos. Quem são os cativos de hoje? Quem são os cegos e os coxos da atualidade?
A fé deve funcionar como uma mola propulsora de libertação de todas as precariedades pelas quais passa o povo. Fé alienada é um paradoxo insuportável. Somos seguidores de um líder assassinado pelos seus compromissos com os pobres; não fazer essa mesma opção é trair os propósitos de Jesus. Só há Páscoa autêntica se ela apontar para a vitória de todas as modalidades de morte.
Há quem critique que a Igreja prega a esperança, mas muitas pessoas ainda sofrem com fome, violência e exclusão. Como responder a essa contradição, à luz da Páscoa?
Padre Manoel Godoy – A igreja, como todas as instituições, têm seus limites. Ela sofre junto com os pobres todas as suas deficiências e carências. Porém, ela nunca abrirá mão de anunciar a esperança, pois esta é profundamente vinculada à fé e à caridade. Fé, esperança e caridade não são três realidades autônomas. Estão numa conexão profunda e inseparáveis.
O que o capitalismo faz é tornar os símbolos um valor em si mesmos, não mais um valor indicativo de algo mais importante.
Não fomentar a esperança seria trair sua missão. Mas é bom insistir que não se trata de uma esperança somente para o além. Não, é preciso ser sinal de esperança aqui e agora, profundamente articulada com a esperança maior: a vitória sobre a morte. Se Cristo não ressuscitou, em vão os cristãos creem.
Ressurreição é a esperança maior, mas devemos ir fomentando sinais concretos de ressurreição no cotidiano do povo. Cada vez que lutamos contra a fome, a violência e a exclusão, estamos dizendo que um outro mundo é possível. E neste contexto, a Páscoa é um sinal iniludível, que não dá espaço para erro ou ilusão.
Em tempos de polarização e discursos de ódio, como a mensagem pascal — que fala de perdão, reconciliação e vida nova — pode inspirar caminhos de paz e união?
Padre Manoel Godoy – A polarização, como qualquer fenômeno social, também afeta a igreja. A mensagem pascal precisa ser eficaz também dentro das fronteiras eclesiais. Quantas pessoas deixaram grupos de amigos e até familiares nas redes sociais por causa de uma polarização fomentada pela extrema direita?
É bom que se diga que essa polarização é criada propositalmente no velho esquema do divide e impera. Quanto mais temos uma sociedade dividida, mais ela está sujeita a forças reacionárias e contrárias aos interesses reais da população. Vivemos um momento tenebroso no país onde o discurso de ódio estava na pauta do dia, fomentando uma sociedade extremamente preconceituosa. Discursos misóginos, homofóbicos, racistas, classistas e, sobretudo, aporofóbicos (aversão aos pobres).
Discursos violentos que sustentam que bandido bom é bandido morto. Porém, o conceito de bandido é profundamente manipulado, pois os que realmente roubam e matam a vida do povo não são identificados como bandidos. Esses, no geral, são identificados com os pobres, pretos e periféricos. O regime democrático, com todos os seus percalços, ainda é a ferramenta mais adequada para a superação desses preconceitos, desses discursos polarizados.
Somos, infelizmente, reféns de uma mídia burguesa e aliada com os poderes políticos, empresariais e elitistas. As redes sociais são dominadas também por aqueles que sustentam uma sociedade desigual e polarizada. A igreja continua acreditando nos pequenos e descartados, pois são o retrato mais exato de seu líder máximo, Jesus Cristo, que propôs caminhos de paz e de união para toda a humanidade.
Qual mensagem o senhor gostaria de deixar para os fiéis e para a sociedade em geral nesta Páscoa?
Padre Manoel Godoy – Não há Páscoa sem atitudes concretas de superação da morte em todas as suas manifestações. Que a força do ressuscitado seja a nossa força na construção de um mundo superando as desigualdades, como sinal do reino anunciado por Jesus, que atinge sua plenitude na eternidade, mas que deve começar no aqui e agora da história.