Agosto está quase acabando. Setembro está quase aí. E para cada vez mais cristãos, essa mudança de meses também sinaliza a chegada do Tempo da Criação.
A reportagem é de Brian Roewe, publicada por National Catholic Reporter, 28-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Do que se trata?”, você pode estar se perguntando.
Fique tranquilo, “a” pergunta desta semana encontra todas as suas respostas e antecedentes em um período eclesial que está se tornando mais proeminente para mais cristãos a cada ano e que cada vez mais inclui católicos.
O que é o Tempo da Criação?
O Tempo da Criação é uma observância orante de um mês que convoca os 2,2 bilhões de cristãos do planeta a rezarem e a cuidarem da criação de Deus. É um momento para refletir sobre a nossa relação com o ambiente – não apenas a natureza “distante”, mas, crucialmente, o lugar onde vivemos – e as formas pelas quais os nossos estilos de vida e decisões como sociedade podem colocar em perigo o mundo natural e aqueles que o habitam, tanto humanos quanto outras criaturas.
O comitê ecumênico que planeja e promove esse período a cada ano o apresenta desta forma:
“O Tempo da Criação é um período para renovar a nossa relação com o nosso Criador e com toda a criação por meio da celebração, da conversão e do compromisso juntos. Durante o Tempo da Criação, nos unimos às nossas irmãs e irmãos da família ecumênica em oração e ação pela nossa casa comum.”
É um momento de oração, contemplação e, cada vez mais, um chamado à ação.
O Tempo da Criação é apoiada por uma série de organizações cristãs importantes, incluindo o Conselho Mundial de Igrejas, a Christian Aid, a Federação Luterana Mundial, a Rede Ambiental da Comunhão Anglicana, o Movimento Católico Global pelo Clima e o Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano. Todas elas fazem parte do comitê do Tempo da Criação.
Quando é o Tempo da Criação?
O Tempo da Criação abrange 34 dias.
Ele começa no dia 1º de setembro, Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, e se conclui no dia 4 de outubro, festa de São Francisco de Assis, padroeiro da ecologia.
Esse período está alinhado com a estação da colheita do outono [no hemisfério Norte] – uma época em que o estado da Terra pode estar na mente de muitas pessoas.
Há quanto tempo ocorre o Tempo da Criação?
Os cristãos ortodoxos celebram o Tempo da Criação há décadas. Ele começou em 1989, quando o Patriarca Ecumênico Dimitrios I proclamou o dia 1º de setembro como um dia de oração pelo ambiente. Na realidade, esse dia marca o início do ano da Igreja Ortodoxa Oriental.
Naquela época, o foco no ambiente estava aumentando em todo o mundo. Dois anos antes, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento divulgou o seu relatório “Nosso Futuro Comum”, a partir do qual foi desenvolvida a “Carta da Terra” – uma declaração que delineia os princípios éticos para o desenvolvimento sustentável em todo o mundo.
A carta foi o foco central da Cúpula da Terra de 1992 no Rio de Janeiro, que formou a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Em 2015, as negociações decorrentes desse processo deram origem ao Acordo de Paris, que traça um plano global para limitar o aumento das temperaturas do planeta.
Ao longo do tempo, o dia de oração se expandiu para um período inteiro, e o Conselho Mundial de Igrejas desempenhou um papel de liderança. Uma das primeiras celebrações organizadas do Tempo da Criação foi realizada no ano 2000 em uma igreja luterana em Adelaide, Austrália. Em 2003, a Igreja Católica das Filipinas começou a pedir aos católicos que observassem o Tempo da Criação.
Mais recentemente, o Tempo da Criação tornou-se uma celebração mais ecumênica entre todos os cristãos. E os últimos anos viram-no ganhar força entre os católicos. Para isso, você pode apontar para o Papa Francisco.
Poucos meses depois de publicar sua encíclica Laudato si’ sobre o cuidado da nossa casa comum, em 2015, o Papa Francisco acrescentou formalmente o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação no calendário católico como um dia anual de oração. E, no ano passado, ele convidou oficialmente os católicos a celebrarem o período completo.
“É hora de redescobrir a nossa vocação de filhos de Deus, de irmãos entre nós, de guardiões da criação. É tempo de se arrepender e de se converter, de voltar às raízes”, escreveu ele. “Somos as criaturas prediletas de Deus, que, na sua bondade, nos chama a amar a vida e a vivê-la em comunhão, conectados com a criação. Por isso, convido veementemente os fiéis a se dedicarem à oração neste tempo que, a partir de uma iniciativa oportunamente nascida em âmbito ecumênico, se configurou como Tempo da Criação.”
É apenas um tempo de oração?
A oração certamente é uma parte central disso.
Nos últimos anos, os organizadores ecumênicos sugeriram temas como uma forma de unificar as celebrações entre as comunidades e de chamar a atenção para os desafios ecológicos que o mundo enfrenta. No ano passado, por exemplo, o Tempo da Criação colocou os holofotes sobre a biodiversidade, em um momento em que os cientistas previam taxas de extinção “sem precedentes”, que poderiam exterminar até 1 milhão de espécies nas próximas décadas.
Neste ano, os organizadores sugeriram o tema “Jubileu pela Terra: Novos Ritmos, Nova Esperança”. Jubileu, em termos bíblicos, refere-se a um período de restauração a cada 50 anos, quando a terra descansa, e a justiça é restaurada. O tema, em parte, é uma referência à 50ª celebração do Dia da Terra, ocorrida em abril.
O fato de a pandemia global do coronavírus ter ocorrido à medida que o planeta se aproxima de pontos de inflexão climática mostra como as realidades sociais, econômicas e ecológicas estão interconectadas, disse o comitê do Tempo da Criação ao explicar o tema.
“Durante o período deste ano, entramos em um tempo de restauração e esperança, um jubileu para a nossa Terra, que requer formas radicalmente novas de viver com a criação”, disse o comitê, incluindo “a necessidade de sistemas justos e sustentáveis” para cuidar melhor das pessoas e do planeta.
O Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano destacou o tema no início deste ano, ao anunciar uma celebração especial de um ano pelo quinto aniversário da Laudato si’. Ele expressou esperança de que a próxima década possa se tornar um “tempo de ‘Jubileu’ para a Terra”, alinhando-se com o prazo que os cientistas dizem ser crucial para reduzir quase pela metade as emissões globais de gases do efeito estufa e colocar o planeta dentro do limite do aumento da temperatura média em 1,5ºC.
Como as pessoas podem observar o Tempo da Criação?
Os exemplos são incontáveis.
Ritos especiais de oração e liturgias que refletem sobre a sacralidade da criação são comuns.
Alguns celebram “missas verdes”. Assim como as “missas vermelhas” (para os profissionais jurídicos) e as “missas azuis” (para os agentes da segurança pública), as “missas verdes” homenageiam aqueles que trabalham na proteção e na sustentabilidade ambiental, convocando a todos para o cuidado da criação.
Os bispos irlandeses produziram uma série de podcasts [disponíveis aqui, em inglês], abrangendo a teologia do cuidado da criação, junto com a ciência das mudanças climáticas e aquilo que as paróquias podem fazer a respeito. E a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos elaborou um encarte com informações e orações para o período [disponível aqui, em inglês].
Alguns realizam celebrações tradicionais da festa de São Francisco, incluindo a bênção dos animais. A Catholic Climate Covenant produz programas anuais para o dia da festa do santo de Assis, que podem ser usados durante todo o período [disponíveis aqui, em inglês].
E alguns católicos têm usado o Tempo da Criação como um momento para se comprometer a implementar a Laudato si’.
Muitos começaram a plantar árvores, como na Arquidiocese de Indianápolis; Lancaster, Inglaterra; Manila, capital das Filipinas; e Papua-Nova Guiné.
Em 2015, a Igreja filipina usou o período como um momento para coletar assinaturas para um Abaixo-Assinado Climático Católico, que foi entregue no fim daquele ano aos líderes mundiais presentes na cúpula do clima da ONU em Paris. A Arquidiocese de Chicago exortou os católicos a defenderem a legislação ambiental federal.
Alguns grupos católicos têm usado o período para declarar publicamente o seu compromisso de desinvestir financeiramente dos combustíveis fósseis, como a Diocese de Assis, na Itália, e mais de 30 instituições em 2017. E, no ano passado, a Geração Laudato si’, liderada por jovens, junto com outros católicos, uniu-se às greves do clima que ocorreram em todo o mundo.
No Vaticano, Francisco usou a sua mensagem para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação de 2016 para sugerir que os cristãos acrescentem o “cuidado pela nossa casa comum” às obras de misericórdia corporais e espirituais. No ano seguinte, ele e o Patriarca Ecumênico Bartolomeu divulgaram uma mensagem conjunta, instando os líderes políticos e empresariais a responderem aos apelos pela “cura da nossa criação ferida”. E, em 2019, o papa participou do plantio de árvores nos Jardins do Vaticano antes do Sínodo para a Amazônia.
O que as pessoas farão neste ano?
Em poucas palavras, muito.
O Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano tornou o Tempo da Criação um ponto focal do ano de aniversário da Laudato si’ e encorajou os bispos e os órgãos eclesiais a aumentarem a conscientização sobre o período, “ajudando os fiéis a perceberem que ‘viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial de uma existência virtuosa’ (Laudato si’, n. 217)”.
O site do Tempo da Criação lista eventos programados em todo o mundo. Como é a norma atualmente, haverá webinars. O primeiro é um rito de oração online. Outros webinars examinarão o que é uma transição justa em diferentes partes do mundo e o investimento ético na África. Um retiro sobre a Laudato si’ está marcado para o dia 12 de setembro, a ser seguido por um rito de oração global inspirado na Laudato si’ no dia 2 de outubro.
Para aqueles que ainda estão pensando sobre os seus próprios planos, o site do Tempo da Criação oferece recursos para várias denominações – anglicana, católica, luterana, ortodoxa e reformada –, assim como para programas ecumênicos e inter-religiosos. Também produziu um extenso guia de celebração, folhetos promocionais e postagens para mídias sociais.
O padre jesuíta James Hug compilou um guia litúrgico do Tempo da Criação [disponível aqui, em inglês], que fornece às paróquias católicas orações e sugestões de cantos para cada domingo. Ele inclui informações básicas para situar o período no contexto das múltiplas crises que o mundo enfrenta hoje.
Da mesma forma, as Irmãs de São José disponibilizaram reflexões diárias [disponíveis aqui, em inglês].
Aqui no EarthBeat, o premiado fotógrafo Paul Jeffrey levará os leitores a refletirem sobre as histórias por trás de algumas das suas impressionantes fotos de todo o mundo, todas as quais nos lembram que cuidar da criação é uma questão de justiça.
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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/602371-o-que-e-o-tempo-da-criacao
Tempo da Criação. Não há progresso com base na destruição da natureza, afirma Bartolomeu I
Em sua Mensagem para o Dia de Oração pela Proteção da Criação em 1º de setembro, o Patriarca Ecumênico Ortodoxo é claro: biodiversidade destruída e equilíbrio climático em colapso requerem uma ação conjunta de indivíduos e governos, “o desenvolvimento econômico – escreve ele – não pode permanecer um pesadelo para a ecologia”.
A reportagem é de Alessandro De Carolis, publicada por Vatican News, 29-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A pergunta que surge no meio da mensagem leva a parar um pouco e refletir: por quanto tempo mais a natureza suportará discussões e consultas infrutíferas e todo novo adiamento em tomar medidas decisivas para sua proteção? ”É uma questão que não pode ser contornada e sobre a qual o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, articula seu mensagem para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação no próximo dia 1º. de setembro.
Um imperativo categórico
A questão é precedida por uma discussão baseada no realismo: “É uma convicção compartilhada – escreve Bartolomeu I – que, em nosso tempo, o ambiente natural está ameaçado como nunca antes na história da humanidade” e a extensão da ameaça é evidenciada, diz ele, pelo fato de que “O que está em jogo não é mais a qualidade, mas a preservação da vida em nosso planeta”. Assistimos, enumera, “a destruição do meio natural, da biodiversidade, da flora e da fauna, da poluição dos recursos aquáticos e da atmosfera, do progressivo colapso do equilíbrio climático” e outros excessos. Um complexo de situações, observa Bartolomeu I, que demonstra como “a integridade da natureza” seja um “imperativo categórico” para a humanidade contemporânea. E, no entanto, não é compreendida em sua importância em todos os níveis.
A ilusão de uma natureza “autorregenerativa”
Se no plano pessoal, dos grupos e das organizações se destaca uma “grande sensibilidade e responsabilidade ecológica“, o mesmo não acontece – ressalta o Patriarca de Constantinopla – se o olhar se desloca para os administradores da coisa pública. “As nações e os agentes econômicos são incapazes – em nome das ambições geopolíticas e da “autonomia da economia”- de adotar as decisões corretas para a proteção da criação”, observa o Patriarca Ortodoxo, e aliás cultivam ”a ilusão” de que “o ambiente natural tem o poder de se renovar”.
Chega de pesadelos
A crise de Covid, diz ele, em vez disso, mostrou o impacto da atividade humana na criação, com a diminuição da poluição registrada durante o lockdown. Portanto, é a convicção de Bartolomeu I, se a indústria de hoje, os transportes, o sistema econômico baseado na “maximização do lucro” têm um “impacto negativo no equilíbrio ambiental”, uma “mudança de rumo para uma economia ecológica constitui uma necessidade inadiável. Não existe nenhum verdadeiro progresso baseado na destruição do meio ambiente natural”. “É inconcebível – afirma ainda – que as decisões econômicas sejam tomadas sem levar em conta também suas consequências ecológicas. O desenvolvimento econômico não pode ser um pesadelo para a ecologia”.
Igreja, “ecologia aplicada”
Na parte final da mensagem, Bartolomeu I recorda o grande compromisso do Patriarcado Ortodoxo com as questões ecológicas e a necessidade de colaborar de forma ampla nesse sentido. No fundo, ele conclui, “a própria vida da Igreja é uma ecologia aplicada. Os sacramentos da Igreja, toda a sua vida de culto, a sua ascese e a vida comunitária, a vida quotidiana dos seus fiéis, exprimem e geram o mais profundo respeito pela criação”.
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Tempo da Criação. “O futuro da humanidade não é homo œconomicus”. Mensagem do Patriarca Ecumênico de Constantinopla Bartolomeu I
Por ocasião do início do novo ano eclesiástico, 1º. de setembro, que tradicionalmente coincide com o Dia de Oração pela Proteção do Meio Natural instituído pelo Fanar, o patriarca ecumênico, arcebispo de Constantinopla, divulgou uma mensagem sobre a proteção da criação, que publicamos na íntegra.
O texto é publicado por L’Osservatore Romano, 29-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a mensagem.
Caríssimos irmãos hierarcas e amados filhos no Senhor, é uma convicção comum que, nos tempos atuais, o meio ambiente esteja ameaçado como nunca antes na história da humanidade. A magnitude dessa ameaça se manifesta no fato de que o que está em jogo não é mais a qualidade, mas a preservação da vida em nosso planeta. Pela primeira vez na história, o homem está em condições de destruir as condições de vida na terra. As armas nucleares são o símbolo do titanismo prometeico do homem, a expressão tangível do “complexo de onipotência” do “homem-deus” contemporâneo.
No uso do poder que deriva da ciência e da tecnologia, o que se revela hoje é a ambivalência da liberdade humana. A ciência serve à vida; contribui para o progresso, para enfrentar as doenças e muitas condições que até agora foram consideradas “fatais”; cria novas perspectivas positivas para o futuro. No entanto, ao mesmo tempo, fornece ao homem meios extremamente poderosos, cujo uso indevido pode ser transformado em destrutivo. Estamos vivenciando os desdobramentos da destruição do meio natural, da biodiversidade, da flora e da fauna, da poluição dos recursos aquáticos e da atmosfera, o progressivo colapso do equilíbrio climático, bem como outras ultrapassagens de limites e medidas em várias dimensões da vida. O santo e grande concílio da Igreja Ortodoxa (Creta, 2016) decretou de forma justa e acertada que o “científico não mobiliza a vontade moral do homem, que conhece os perigos, mas continua a agir como se não soubesse” (Encíclica, 11).
É evidente que a proteção do bem comum, da integridade do meio ambiente natural, é responsabilidade comum de todos os habitantes da terra. O imperativo categórico contemporâneo para a humanidade é viver sem destruir o meio ambiente. No entanto, embora a nível pessoal e ao nível de muitas comunidades, grupos, movimentos e organizações, existe uma demonstração de grande sensibilidade ecológica e responsabilidade, as nações e os agentes econômicos são incapazes – em nome das ambições geopolíticas e da “autonomia da economia” – de tomar as decisões corretas para a proteção da criação e, em vez disso, cultivam a ilusão de que a alegada “destruição ecológica global” seja uma criação ideológica dos movimentos ecológicos e que o ambiente natural tenha o poder de se renovar. No entanto, a questão crucial permanece: por quanto tempo a natureza suportará discussões e consultas infrutíferas, bem como todo outro adiamento na tomada de medidas decisivas para sua proteção?
O fato de que, durante o período da pandemia do novo coronavírus – covid-19, com as restrições obrigatórias à circulação, o fechamento de fábricas e a diminuição da atividade e da produção industrial, observamos uma redução da poluição e de sua carga na atmosfera, demonstrou a natureza antropogênica da crise ecológica contemporânea. Mais uma vez ficou evidente que a indústria, os meios de transporte contemporâneos, o automóvel e o avião, a prioridade não negociável dos indicadores econômicos e assim por diante, têm um impacto negativo no equilíbrio ambiental e que uma mudança de direção rumo a uma economia ecológica é uma necessidade firme. Não existe nenhum verdadeiro progresso baseado na destruição do meio ambiente natural. É inconcebível que as decisões econômicas sejam tomadas sem levar em conta também suas consequências ecológicas. O desenvolvimento econômico não pode permanecer um pesadelo para a ecologia. Temos certeza de que, além do economismo e da orientação da atividade econômica para a maximização do lucro, existe uma via alternativa de estrutura e desenvolvimento econômico.
O futuro da humanidade não é homo œconomicus. O Patriarcado Ecumênico, que nas últimas décadas foi pioneiro no domínio da proteção da criação, continuará as suas iniciativas ecológicas, a organização de conferências ecológicas, a mobilização dos seus fiéis e especialmente dos jovens, a promoção da proteção do meio ambiente como tema fundamental para o diálogo inter-religioso e iniciativas comuns das religiões, os contatos com os líderes políticos e as instituições, a cooperação com organizações ambientalistas e com os movimentos ecológicos. É evidente que a colaboração para a proteção ambiental cria novas vias de comunicação e possibilidade de novas ações comuns.
Repetimos que as atividades ambientais do patriarcado ecumênico são uma extensão de sua autoconsciência eclesiológica e não constituem uma simples reação circunstancial a um novo fenômeno. A própria vida da Igreja é uma ecologia aplicada. Os sacramentos da Igreja, toda a sua vida de culto, a sua ascese e vida comunitária, a vida quotidiana dos seus fiéis, exprimem e geram o mais profundo respeito pela criação. A sensibilidade ecológica da ortodoxia não foi criada, mas emergiu da crise ambiental contemporânea. A luta pela proteção da criação é uma dimensão central da nossa fé. O respeito ao meio ambiente é um ato de doxologia do nome de Deus, enquanto a destruição da criação é uma ofensa ao Criador, totalmente inconciliável com os princípios fundamentais da teologia cristã.
Ilustres irmãos e filhos amadíssimos, os valores favoráveis à ecologia da tradição ortodoxa, precioso patrimônio dos Padres, constituem uma barreira contra a cultura, cujo fundamento axiológico é o domínio do homem sobre a natureza. A fé em Cristo inspira e fortalece o empenho humano mesmo diante de desafios imensos. Na perspectiva da fé, podemos descobrir e avaliar não só as dimensões problemáticas, mas também as possibilidades e as perspectivas positivas da civilização contemporânea. Pedimos aos jovens homens e mulheres ortodoxos que entendam a importância de viver como cristãos fiéis e pessoas contemporâneas. A fé no destino eterno do homem fortalece nosso testemunho no mundo.
Nesse espírito, do Fanar, desejamos a todos um novo ano eclesial propício e abençoado, fecundo de ações a exemplo de Cristo, para o benefício de toda a criação e para a glória do Criador onisciente de todas as coisas. E invocamos sobre vocês, pelas intercessões da Santíssima Theotokos, da Pammakaristos, a graça e a misericórdia do Deus das maravilhas.
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