“Concluímos que o racismo não é estático, é um processo dinâmico que ocorre nas ações e omissões que moldam a opinião pública − da educação ao entretenimento − e na construção de políticas institucionais. Ele faz com que lidemos com comportamentos racistas que afetam o nosso aparelho psíquico, resultando na baixa autoestima e desencadeando doenças relacionadas à saúde mental. E quando institucionalizado, impacta coletivamente”, escreve Ricardo Corrêa, especialista em Educação Superior e Tecnólogo industrial.
Eis o artigo.
Os homens e as mulheres da África, e de descendência africana, tem tido uma coisa em comum – uma experiência de discriminação e humilhação imposta sobre eles por causa de sua origem africana. Sua cor foi transformada tanto na marca como na causa de sua pobreza, sua humilhação e sua opressão.
− Julius Nyerere
No dia 13 de maio de 1888, o Brasil iniciou uma nova etapa da sua história. A princesa regente − Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bourbon e Bragança −, conhecida como Princesa Isabel, assinou a Lei Áurea e aboliu o regime escravagista que durava há quase quatro séculos. E neste mês em que se completa 134 anos da abolição, os negros não têm nada a celebrar. Nós divergimos frontalmente dos discursos que consideram a princesa Isabel como a salvadora dos escravizados, afinal, é abundante a quantidade de questões que não foram resolvidas com a abolição.
A Lei Áurea impôs aos ex-escravizados a marginalização social e não disponibilizou mecanismos que assegurassem condições dignas de sobrevivência. Ou seja, foi inaugurado caminhos para a perpetuação da opressão deixando intacto o pensamento que nos consideram menos humanos em comparação aos brancos. Nesse sentido, a reflexão do sociólogo W.E.B. Du Bois (1935) sintetiza o nosso ponto “o escravo libertou-se, ficou ao sol por um breve momento, e então retornou a escravidão”.
Aliás, a hierarquização entre brancos e negros, brancos e indígenas, é um dos pontos fundamentais na manutenção do racismo. Na obra “Sociologia do Negro Brasileiro” (1988), o sociólogo Clóvis Moura explica que após o dia 13 de maio foram estabelecidos mecanismos de barragem e hierarquização étnica “o aparelho ideológico de dominação da sociedade escravista gerou um pensamento racista que perdura até hoje. Como a estrutura da sociedade brasileira, na passagem do trabalho escravo para o livre, permaneceu basicamente a mesma, os mecanismos de dominação, inclusive ideológicos, foram mantidos e aperfeiçoados”.
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Ainda que a narrativa oficial sobre a escravidão seja distorcida e romantizada, principalmente nos livros didáticos, temos a certeza de que o passado colonial foi fundado na prática de violências contra os africanos e indígenas. Ocorriam violências profundas que tinham a finalidade de animalizar os escravizados e desmobilizar qualquer insurgência, porém, os colonizadores não conseguiram sucesso. A organização dos escravizados − por meio dos quilombos − foram essenciais no processo de resistência e libertação.
E mesmo que estejamos sobrevivendo numa sociedade de classes, a essência daquele período continua presente. Isso se confirma com o racismo estrutural. Da senzala às periferias, os negros detêm compulsoriamente o monopólio do sofrimento, como escreveu a jornalista Ida B. Wells (1895) “na época da escravidão, o negro era mantido subserviente e submisso pela frequência e severidade do açoite, mas, com a liberdade, um novo sistema de intimidação entrou em voga. O negro não foi apenas açoitado e açoitado. Ele é morto”.
Com o racismo estrutural, os negros não têm acesso aos mesmos direitos gozados pelos brancos, inclusive o direito à vida − segundo o “Atlas da Violência 2021”, a chance de uma pessoa negra ser assassinada é 2,6 vezes maior que uma não-negra. Esse racismo está enraizado em todos os espaços sociais, opera de maneira complexa e dinâmica em prol de um capitalismo que beneficia a elite econômica. Para se ter uma ideia, a World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais) − integrante da Escola de Economia de Paris − divulgou um relatório, em 2021, que apontava o Brasil como um dos países com maior desigualdade social e de renda[1]. Dentro desse contexto, nós sabemos muito bem qual a cor da população que ocupa, majoritariamente, a camada mais pobre e miserável da sociedade brasileira.
Diante disso, concluímos que o racismo não é estático, é um processo dinâmico que ocorre nas ações e omissões que moldam a opinião pública − da educação ao entretenimento − e na construção de políticas institucionais. Ele faz com que lidemos com comportamentos racistas que afetam o nosso aparelho psíquico, resultando na baixa autoestima e desencadeando doenças relacionadas à saúde mental. E quando institucionalizado, impacta coletivamente.
Existem inúmeras pesquisas apontando que estamos desamparados no sistema de justiça, no acesso a saúde e segurança, habitação, emprego e educação de qualidade, na organização política, econômica e social. Por fim, a luta contra o racismo exige o engajamento das pessoas que sonham com uma sociedade justa e igualitária, caso contrário, jamais considere que estamos em uma democracia.
Referências Bibliográficas
ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2018.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMIA APLICADA (IPEA). Atlas da Violência.Brasília: IPEA, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 07 mai. 22.
MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
SANTOS, Joel Rufino dos. Zumbi. São Paulo: Ed. Moderna, 1985.
Nota
[1] O novo mapa da desigualdade global. Disponível aqui. Acesso em: 07 mai. 22.
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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/618405-da-senzala-as-periferias-o-racismo-continua-implacavel
“Volta para a senzala”: relator teria enviado e-mail com ofensas a vereador de Curitiba
Assessoria do vereador Sidnei Toaldo diz que não reconhece mensagem e irá entrar com denúncia por crime cibernético.
A reportagem é de Lia Bianchini, publicado por Brasil de Fato, 09-05-2022.
Através de sua conta de e-mail oficial da Câmara de Curitiba, o vereador Sidnei Toaldo (Patriota) teria enviado mensagem com ofensas ao também vereador Renato Freitas (PT), nesta segunda (09). Toaldo é relator do Processo Ético Disciplinar (PED) do qual o petista é alvo.
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Na mensagem assinada por Toaldo, afirma-se que o “advogadozinho de porta de cadeia” de Freitas não conseguirá “evitar o inevitável”, que seria a cassação do petista. O texto ainda diz que a Câmara de Vereadores não é lugar para Freitas e o manda voltar para a senzala. “Eu não tenho medo de você ou dos esquerdistas vagabundos que te defendem, seu negro”, lê-se, em trecho.
“A câmara de vereadores de Curitiba não é seu lugar, Renato. Volta para a senzala. E depois de você vamos dar um jeito de cassar a Carol Dartora e o Herivelto“, continua o texto da mensagem, referindo-se aos outros dois vereadores negros da Casa.
O e-mail é finalizado com as frases: “vamos branquear Curitiba e a região Sul, queira você ou não. Seu negrinho.”
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Com o assunto “Mensagem para o vereador Renato“, o texto ainda ofende outra vereadora da Câmara, sem citar nome, chamando-a de “vagabunda”, que teria vazado áudios em que o vereador Márcio Barros expõe articulação no Conselho de Ética para cassar o mandato de Freitas.
As ofensas se estendem, ainda, ao ex-presidente Lula e ao ex-governador do Paraná, Roberto Requião, que estariam entre os defensores de Freitas. “Eu não tenho medo do Requião, ou melhor, do Requiladrão, aquele safado que devia estar preso junto com o cachaceiro analfabeto do Lula“, diz trecho do texto enviado pela conta do relator.
Crime cibernético
A reportagem do Brasil de Fato Paraná entrou em contato com a assessoria de comunicação do vereador Sidnei Toaldo. Por telefone, a assessora informou que o e-mail não foi enviado “de dentro da Câmara e não saiu da caixa de mensagem do vereador.”
Disse ainda que o vereador irá entrar com denúncia por crime cibernético para levantar o IP (endereço que identifica uma rede ou um dispositivo na internet) do qual saiu a mensagem.
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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/618438-volta-para-a-senzala-relator-teria-enviado-e-mail-com-ofensas-a-vereador-de-curitiba