Titula Brasil transfere fiscalização de títulos rurais a investigados por trabalho escravo e invasão de terras indígenas

No Maranhão e no Mato Grosso, há prefeitos ruralistas, outros na ‘lista suja’ do trabalho escravo; territórios indígenas estão ameaçados e desmatados

Os conflitos de interesse relacionados à implementação do Programa “Titula Brasil” não se restringem apenas ao avanço de políticos locais sobre os assentamentos localizados em terras públicas federais. Ao repassar às prefeituras a obrigação de vistoriar e georreferenciar as áreas sob domínio da União, o programa joga no colo de latifundiários a gestão de conflitos rurais.

Do Maranhão ao Mato Grosso, a reportagem identificou violações de direitos humanos contra povos indígenas e trabalhadores rurais envolvendo prefeitos e servidores diretamente responsáveis pela condução dos Núcleos Municipais de Regularização Fundiária (NMRFs), em parceria com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)

Um desses casos é protagonizado pelo prefeito de Alto Alegre do Pindaré, Francisco Dantas Ribeiro Filho, mais conhecido como Fufuca Dantas (PP-MA), de 65 anos, que já esteve na lista suja do trabalho escravo, divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, e acumula mais de R$ 450 mil em bens. Assim como 44% dos mandatários dos municípios da Amazônia Legal que já aderiram ao Titula Brasil, ele é um proprietário de terras.

A série “Brasil, país que grila” feita pela equipe de O Joio e O Trigo e do observatório De Olho nos Ruralistas está mostrando como sob o discurso da “modernização”, o programa Titula Brasil esconde conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo: “Titula Brasil promove conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo”.

Como o programa do governo federal terceiriza às prefeituras as atribuições de fiscalização da titulação, o processo em Alto Alegre caberá a um pecuarista acusado de explorar a mão de obra de 12 trabalhadores. O caso aconteceu em 2005, na Fazenda Piçarreiras, porém, começou a tramitar em abril de 2013. A ação penal foi retomada em 2017 pelo Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF-1).

Na propriedade, Fufuca e seus aliados costumam realizar reuniões políticas. E nem sempre elas são pacíficas. Blogueiros maranhenses contaram que um desses encontros, em 2016, acabou em tiroteio. A briga teria ocorrido entre filiados ao Partido Progressista.

Influência do clã Fufuca vai de Cunha a Dino

Essa é a quarta vez que o fazendeiro administra o município, um dos mais pobres do estado. Ele esteve à frente do cargo em 1997-2000, 2991-2004 e 2017-2020. O atual mandato termina em 2024. Apenas outros dois políticos assumiram o Executivo municipal na história.

A cidade de 32 mil habitantes e 26 anos possui um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,542, considerado baixo pela Organização das Nações Unidas (ONU), e uma economia baseada na agricultura.

Fufuca é pai do ex-secretário do Meio Ambiente no governo de Flávio Dino (PCdoB), o engenheiro ambiental Rafael Carvalho Ribeiro, e do deputado federal André Fufuca (PP-MA), o Fufuquinha, que ficou conhecido nacionalmente após presidir a Câmara dos Deputados por alguns dias durante viagem do então presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Deputado Federal André Fufuca, o “Fufuqinha”. Foto: Agência Senado

Fufuquinha é amigo pessoal de Eduardo Cunha e votou contra a cassação do ex-deputado no Conselho de Ética da Casa. A família também tem ligação com os Sarney. O patriarca foi secretário de Minas e Energia durante a gestão de Roseana.

O clã é visto como dono da cidade. Para se ter uma ideia, em fevereiro de 2020, Dino inaugurou, ao lado dos “Fufucas”, o Estádio Municipal de Alto Alegre do Pindaré. O nome não podia ser mais apropriado: Francisco Dantas Ribeiro, o Fufucão. O local tem 30 mil metros quadrados de área e campo com metragem oficial no padrão Fifa.

Dos R$ 450 mil em bens que Fufuca declarou no ano passado, R$ 35 mil correspondem a uma fazenda de 1.000 hectares, localizada no povoado Sapucaia, e R$ 25 mil são de 25 hectares no povoado Bacuri. Mais da metade de seu patrimônio, R$ 250 mil, está guardada em espécie. Curiosamente, a lista é maior do que a da eleição anterior, quando ele declarou R$ 535 mil, incluindo outra gleba, de 300 hectares, no povoado Barraca do Sal.

Fufuquinha não especificou os bens. Em 2018, ele informou R$ 681 mil ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sendo R$ 120 mil em dois terrenos e R$ 105 mil em outros bens e direitos. Pai e filho possuem patrimônios maiores que o Produto Interno Bruto (PIB) do município, que é de R$ 134 mil, segundo cálculos de 2008 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Genocídio dos Guajajara

No município de Amarante do Maranhão, na Amazônia maranhense, o prefeito eleito possui nada menos que dez propriedades rurais, além de 1.463 cabeças de gado. Valderly Gomes Miranda, o Vanderly do Comércio (Patriotas-MA), informou ao TSE um patrimônio de R$ 4,3 milhões, quinze vezes maior que o PIB do município, de R$ 285 mil. Assim como em Alto Alegre do Pindaré, o IDH da cidade é baixo: 0,555.

“É um município com uma vasta extensão, onde a zona rural é enorme”, relata Gilvânia Ferreira da Silva, do MST. De acordo com ela, há na região muitas terras públicas, assentamentos de reforma agrária e comunidades antigas, tradicionais, que não têm o título da terra. “O poder latifundiário é muito grande e a gente já sabe o que vai acontecer”, diz.

Até 2013, Amarante liderou o ranking de desmatamento no estado, sendo alvo constante de madeireiros e pecuaristas. Após a implementação de ações de controle, os índices foram reduzidos, levando à promoção do município da lista daqueles com desmatamento crítico para o rol de regiões com desmatamento sob controle, com área desmatada nos últimos quatro anos inferior a 40km².

Se o desmatamento cai por um lado, os conflitos aumentam por outro. Amarante é um dos 56 municípios beneficiados pelo Titula Brasil que integra o Mapa de Conflitos da Fiocruz. Conforme o relatório, o povo Guajajara, que compõe uma das etnias mais numerosas do país, sofre com a violência de madeireiros e com incêndios criminosos. Foi ali que, em novembro de 2019, foi assassinado o Guardião da Floresta Paulo Paulino Guajajara, crime de ampla repercussão internacional devido à sua militância em defesa das florestas. Dias depois, em dezembro, Erisvan Guajajara, de apenas 15 anos, foi encontrado esquartejado na sede do município. Ao todo, cinco indígenas foram assassinados em apenas cinco meses.

Cerimônia de enterro de um dos caciques assassinados. Foto: Mídia Índia

Amarante do Maranhão fica a 170 quilômetros de distância de Açailândia, onde Jair Bolsonaro esteve em maio de 2021, para entregar 287 títulos de propriedade definitiva a famílias que vivem no assentamento Assaí. A cerimônia, que visava promover o programa Titula Brasil, provocou aglomeração e tumulto. De acordo com o MST, a titulação da área ocorreu sem diálogo, favorecendo a mercantilização da terra pelo agronegócio. “Açailândia também é um município imenso, com muitos assentamentos de reforma agrária”, conta Gilvânia. “Há terras públicas e muitas griladas, que foram regularizadas de 2010 para cá. Fizeram muita regularização para a ‘fazendeirada’ e os camponeses nem sabem ainda”.

Aumento da concentração fundiária

Vivendo em uma terra indígena demarcada e homologada localizada a 50 quilômetros do município de Brasnorte, no Mato Grosso, o povo Myky reivindica a revisão dos limites de seu território. A área demarcada possui uma extensão total de 47.094 hectares e, com a revisão dos limites da demarcação, incorporaria mais 100 mil hectares.

Enquanto segue o impasse sobre a terra, a região está sendo desmatada. E os indígenas sofrem com os impactos da monocultura de soja, milho, algodão e girassol, além da pecuária e extração de madeira, explica Natália Filardo, coordenadora adjunta do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Mato Grosso. “A situação é de muita tensão e o assédio é muito grande. A área sub judice está sendo desmatada”, afirma ela.

Nos últimos anos, os Myky também têm sido obrigados a combater queimadas nas terras em que vivem. Em 2019, por exemplo, foram identificados 18 focos de incêndio, de acordo com o Relatório de Violência contra os Povos Indígenas, produzido pelo Cimi.

Sob a gestão de Edelo Ferrari (DEM), Brasnorte foi um dos primeiros municípios mato-grossenses a assinar o termo de adesão ao programa Titula Brasil. Em junho de 2021, foram nomeados os integrantes do Núcleo Municipal de Regularização Fundiária (NMRF) e entre eles está o Secretário Municipal de Administração, William Braz Oliveira. Um dos responsáveis pela execução do programa em Brasnorte, Oliveira é também radialista e incitou a violência contra os Myky após veicular uma denúncia falsa contra os indígenas feita pelo presidente da Associação dos Comerciantes de Brasnorte – sócio de uma olaria e dono de terras na área reivindicada pelo povo Myky.

Prefeito Edelo Ferrari com o termo de adesão ao Programa Titula Brasil. Foto: Divulgação

De acordo com a coordenadora do Cimi, o Titula Brasil pode aumentar ainda mais a concentração fundiária e os ataques contra indígenas no município. “Ele desvincula os assentamentos da reforma agrária e aumenta a concentração de terra no Mato Grosso, que já é uma região de fronteira agrícola”, avalia Filardo. “E é um projeto que virá como todo o pacote de desmatamento, agrotóxicos, mais pressão sobre os territórios”.

Indígenas sob cerco

Igualmente no Arco do Desmatamento e na região amazônica do Mato Grosso, Nova Canaã do Norte tem um ruralista como prefeito. Rubens Roberto Rosa (PDT), conhecido como Rubão, é dono de 7.334 cabeças de gado e de um patrimônio de R$ 25 milhões. Entre a série de propriedades rurais mencionadas em sua declaração à Justiça Eleitoral estão áreas em que ele cita “melhorias de investimento, barracão e casa” ou o nome de quem teria vendido a propriedade para ele, além de uma fazenda de 1.160 hectares.

Rubão também foi incluído na “lista suja” do trabalho escravo em 2013, quando foi indiciado por submeter oito trabalhadores a condições degradantes. Segundo a denúncia do MPF, reproduzida pela Agência Pública, os empregados “eram sujeitos a dormirem em barracos sob a proteção de lonas plásticas, alimentação precária, sem disponibilidade de água potável, dividindo o ambiente com animais peçonhentos, vivendo sem quaisquer condições de higiene”.

Prefeito de Nova Canaã do Norte, Rubens Roberto Rosa, aderiu ao Programa Titula Brasil. Foto: Divulgação

Além do perfil do prefeito, como em outros casos, a região é de conflitos de terras, em especial com indígenas. A Terra Indígena Batelão, dos Kawaiwete, fica na divisa do município com Juara e Tabaporã. Também conhecidos como Kayabi, eles lutam pela demarcação de 117 mil hectares. Apesar do território já ser delimitado, existem diversas sobreposições com fazendas, incluindo uma propriedade de 18,8 mil hectares ligada à gigante Terra Santa Agro. Em 2019, o Ministério Público Federal entrou com uma ação para que fosse determinada a devolução à União de áreas que estão sob posse de terceiros e que incidem na área. Na ação, pretende a declaração de nulidade dos títulos de propriedade sobrepostos à área indígena e a desocupação pelos invasores. A TI Batelão também esteve sujeita, em 2010, a uma operação da Polícia Federal que descobriu um esquema fraudulento de extração e “esquentamento” de madeiras nobres retiradas da área que teria movimentado mais de R$ 1,7 bilhão.

Segundo dados do Incra, todos os dez assentamentos em Nova Canaã do Norte estão aptos a ingressar no programa Titula Brasil.

fonte: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/04/titula-brasil-transfere-fiscalizacao-de-titulos-rurais-a-investigados-por-trabalho-escravo-e-invasao-de-terras-indigenas/

 

Titula Brasil faz parte da maior ofensiva de grilagem pós-ditadura

Governos LulaTemer e Bolsonaro produziram leis responsáveis por passar cerca de 190 milhões de hectares de terras públicas para domínio particular; processo de apropriação vem desde FHC, mas na gestão atual avança de forma avassaladora.

 

A reportagem é de Mariana Franco Ramos, publicada por De Olho Nos Ruralistas e O Joio e O Trigo, 12-04-2022.

 

“Como deputado, em 100% das vezes votei acompanhando a bancada ruralista”. Foi assim que o presidente Jair Bolsonaro começou seu discurso em um nada prosaico café da manhã oferecido a membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), no dia 4 de julho de 2019, em Brasília. “E vocês sabem que votar com a bancada ruralista é quase como parto de rinoceronte, recebendo críticas da imprensa, de organizações não governamentais e de governos de outros países”, prosseguiu o presidente. “Esse governo é de vocês”, finalizou.

Desde então, Bolsonaro vem provando que não só o governo, como o país, é sim da FPA e de quem a financia.

Lançado em 10 de fevereiro de 2021 pela ministra da Agricultura, Pecuária e AbastecimentoTereza Cristina, uma das autoridades presentes naquele encontro, o Titula Brasil foi a cereja do bolo de uma série de iniciativas que beneficiam invasores de terras e estimulam o crime, a violência e o desmatamento no campo.

Por isso, logo que saiu do papel, ele ganhou, de ambientalistas, camponeses e organizações de defesa dos direitos humanos, o apelido de “Invade Brasil”.

A série de reportagens “Brasil, país que grila” feita pela equipe de O Joio e O Trigo e do observatório De Olho nos Ruralistas está mostrando como sob o discurso da “modernização”, o programa Titula Brasil esconde conflitos de interesse, grilagem violência contra povos do campo: “Titula Brasil promove conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo”.

O programa busca, segundo o governo, “agilizar o processo de regularização fundiária”, por meio da parceria entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e as prefeituras municipais. Foi criado pela Portaria Conjunta nº 1, de dezembro de 2020, da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (Seaf), comandada por Luiz Antônio Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) e um autodeclarado inimigo da reforma agrária.

Na prática, a proposta terceiriza aos municípios as atribuições de regularização fundiária de áreas da União. A instrução estabelece que as parcerias do Incra com os municípios devem ser feitas por meio de Acordos de Cooperação Técnica (ACT), sem previsão de repasse de recursos entre as partes.

Transferência de terras públicas para domínio privado

 

Antes da portaria, em dezembro de 2019, o governo federal já tinha publicado a Medida Provisória 910/2019, conhecida como MP da Grilagem, que possibilitava ampla transferência de terras públicas invadidas por grileiros até dezembro de 2019. A MP acabou caducando, mas integrantes da FPA se articularam para aprovar projetos de lei que, com pequenas variações, repetem as mesmas proposições. São os casos do PL 2633/2020, assinado pelo deputado Zé Silva (SDD/MG), e do PL 510/2021, ainda em tramitação, de autoria do senador Irajá Abreu (PSD-TO), filho da senadora Kátia Abreu (PP-TO).

“O que está em questão em meio à pandemia do novo coronavírus é a transferência de cerca de 60 a 65 milhões de hectares de terras públicas para o domínio privado”. A afirmação é de um grupo de professores de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), que inclui Ariovaldo Umbelino de OliveiraCamila Salles de FariaCarlos Alberto FelicianoGustavo Francisco Teixeira PrietoJosé de Sousa SobrinhoMaurício TorresSandra Helena Gonçalves Costa e Tiago Maika Muller Schwab.

No livro “A grilagem de terras na formação territorial brasileira”, eles alertam para o perigo de novas formas privadas de dominação e desmatamentos. “Não surpreende ninguém, mas ressalta-se que o governo Bolsonaro tem colocado em primeiro lugar a defesa dos interesses de latifundiários, madeireiros e garimpeiros, ou seja, do agronegócio e do rentismo à brasileira no centro da antipolítica fundiária. É um governo de grileiros e, como sabemos, estes não fazem home office.”

Retrocessos vêm desde FHC, mas ganham escala com Bolsonaro

 

Para o geógrafo Paulo Roberto Raposo Alentejano, doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o cenário geral é de ofensiva sobre terras ainda públicas no Brasil. “Há um processo de expandir a incorporação dessas terras ao mercado”, diz. “Isso vale tanto para terras devolutas, aquelas fruto de grilagem, principalmente, mas não só, na Amazônia, como para aquelas situadas em assentamentos, que também são alvo de uma nova tentativa de titulação generalizada”, analisa.

O professor explica que o processo não começou agora. Fernando Henrique Cardoso fez, no final do segundo mandato, “um movimento significativo, já expressivo, que depois arrefeceu bastante durante os governos petistas, foi retomado com força no governo Michel Temer e com o Bolsonaro virou prioridade absoluta”. No contexto mais amplo, o geógrafo fala em avanço da mercantilização das terras públicas. “São esses dois movimentos principais, somados a um terceiro, que é a mercantilização plena, a questão da liberação de arrendamento de terras indígenas para o agronegócio e a mineração”.

Prieto vai na mesma linha. Segundo ele, é preciso entender o grilo para além da fraude: “Com a grilagem, a luta pela terra é transformada em negócio”, opina. “Grila-se uma terra e ainda se recebe indenização do Estado quando as pessoas são desapropriadas. É algo estrutural para o conjunto do agronegócio”.

A hegemonia do agronegócio, de acordo com os geógrafos, é realidade desde o final dos anos 1990, quando houve a crise do Real, com a desvalorização da moeda, e a promulgação da Lei Kandir, que isenta as tributações incidentes nas exportações dos produtos primários. O setor foi, assim, ganhando poder de interferir nas decisões governamentais. “Isso se propaga para o primeiro governo Lula, quando o Roberto Rodrigues, então presidente da Abag, foi indicado para o Ministério da Agricultura”, lembra Alentejano, sobre a Associação Brasileira do Agronegócio.

Outras lideranças fundamentais do agronegócio também alçaram na época cargos no primeiro escalão, como Blairo Maggi e Kátia Abreu. “Há um processo de neutralização da reforma agrária, desconstruído ao longo do tempo, que se acentua, a ponto de o Lula chamar os usineiros de heróis”, acrescenta o professor. Ou seja, essa simbiose com o agronegócio era realidade já nas administrações petistas. “Fortaleceram os segmentos mais retrógrados, mais atrasados da sociedade brasileira, e agora estamos pagando o pato”, completa.

Alentejano reforça que as exportações foram alavancadas fortemente ao longo desse período. “Saltam dos 12 milhões de hectares colhidos de soja no Brasil nos anos 90, para o patamar de quase 40 milhões, um crescimento exponencial”. O volume de crédito também foi gigantesco. Tais medidas, juntas, fortaleceram um setor “tradicionalmente retrógrado e aliado ao que há de mais atrasado na política brasileira”. O cenário propício, que se reforçou mais com Temer e Bolsonaro, já estava então criado. “No governo Bolsonaro há um apoio absoluto desse setor, conectado com a agenda dele”.

Conforme cálculos dos pesquisadores da USP, sintetizando e somando a legalização jurídica e nacional da grilagem entre 2009 e 2020 chega-se a 190 milhões de hectares. São 67 milhões do Programa Terra Legal, implementado por Lula em 2009 e que autoriza a transferência sem licitação a particulares de terrenos da União na Amazônia Legal, mais 60 milhões de “regularização fundiária” de Temer em 2017 e mais 65 milhões de hectares do governo Bolsonaro.

“A ordem é simplificar e titular”

 

“Pra mim, o Titula Brasil é grilagem por app”, resume Gustavo Prieto, em referência aos aplicativos de smartphones. “A própria pessoa faz a declaração sobre a ocupação mansa e pacífica”, comenta. De acordo com ele, a tática é implementar a MP 910, que caducou, “na marra”.

O perigo, porém, é que a anistia aos grileiros passa a ser ad infinitum. “Você faz de duas formas: a primeira é garantir a grilagem no passado e estabelecer possibilidades de que aquilo vai ser nacionalizado ou no futuro vai ser garantido um novo marco temporal”, explica. “E a segunda é a mobilização constante do termo segurança jurídica”.

Como forma de tentar confundir a população, em torno dessa grande ideologia da bancada ruralista se estabelece um novo vocabulário do agro. “Esse léxico estabelece aquilo que está rotineirizado pela Tereza Cristina e pelo Luiz Nabhan: a grilagem nunca aparece; aparecem áreas públicas federais não regularizadas, adquirentes de boa fé etc”, diz Prieto. E, para complementar, há uma confusão jurídica entre posseiros e grileiros. “Nos vídeos institucionais, aparecem cidadãos de baixa renda acessando pela primeira vez um título”, comenta.

Na audiência pública que marcou o lançamento do programa, em 25 de março do ano passado, a ministra afirmou que o Titula Brasil tem como objetivo “facilitar a concessão de títulos”. Ela também argumentou que a aprovação do PL 510/2021, do senador Irájá (PSD-TO), “auxiliará na desburocratização do processo”. Segundo dados do Incra, em 2021 foram emitidos 137 mil títulos de terra, contra 109 mil documentos em 2020.

“As palavras de ordem são simplificar e titular”, define Prieto. “São os dois mantras: automatizar e desburocratizar”. O professor fala em grilagem por app pois paira a dúvida de como a União e os técnicos dos municípios vão fiscalizar esse processo, já que o Incra vem sendo “esvaziado” nos últimos anos. “São 166 mil imóveis só na Amazônia”, lembra. Na avaliação dele, há ainda uma flagrante inconstitucionalidade. Isso porque a operação acontece em escala municipal, entretanto, as terras são da União.

Orçamento do Incra é quase todo para pagamento de precatórios

 

Outra questão diz respeito ao baixo orçamento do Incra. Em 2021, a autarquia executou R$ 3,4 bilhões em verbas, sendo a maior parte dos recursos destinada ao pagamento de precatórios. A Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef/Fenadsef) e a Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (CNASIAN) informaram que as verbas para créditos, melhorias de assentamentos, monitoramento de conflitos fundiários e reconhecimento de territórios quilombolas sofreram um corte de 90%.

“Os servidores públicos vão de fato averiguar os dados declaratórios dos latifundiários?”, questiona o pesquisador. Fala-se, por alto, de regularização fundiária de 300 mil famílias, que serão cadastradas por funcionários municipais, cabendo ao Incra a checagem remota. “Para além da pressão política local, esses apps de georreferenciamento e funcionamento remoto vão ser operados por quem, em locais onde não há nem internet?”

A falta de transparência na descentralização do processo para os municípios, onde a pressão política local pode influenciar quem vai receber os títulos, favorecendo interesses particulares, é a principal crítica de organizações sociais. Para o Greenpeace, titulação sem justiça social e ambiental não funciona. “Ao defender a facilitação na concessão de títulos, o governo Bolsonaro tenta maquiar a realidade, porque não está preocupado em dar o título de terra para quem realmente tem direito e em prol do interesse coletivo”, escreve a ONG, em nota.

Acirramento dos conflitos em assentamentos

 

Paulo Alentejano menciona ainda a questão das florestas públicas, que também são objeto de um movimento de concessão privada. Todas essas propostas são fruto, de acordo com o professor, da dinâmica expansiva do agronegócio no Brasil.

Em relação aos governos anteriores, ele destaca duas diferenças fundamentais. “Essa ofensiva ocorre diante de um desmonte generalizado de todas as políticas de sustentação e de apoio ao desenvolvimento dos assentamentos”. Bolsonaro acabou com ou enfraqueceu políticas de assistência técnica, de educação, caso do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), voltado para a formação de estudantes do campo, e de apoio à comercialização, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

“Isso tudo, somado à entrega do título de propriedade privada, aumenta a fragilidade dos assentados”, opina. O geógrafo prevê que, com a possibilidade de venda das terras, uma vez tituladas privadamente, ocorra uma reconcentração fundiária muito maior. “Os processos de grilagem são legitimados por esse governo, que legitima também a violência no meio rural, com liberação de armas e incentivo ao porte”, afirma. Trata-se, conforme o professor, de uma “combinação explosiva”, que potencializa os conflitos.

De acordo com Alentejano, a grande diferença do governo Bolsonaro para os demais é a escala. “Algo disso já vinha do governo Temer e, mais longe ainda, desde FHC, que é a construção de uma hegemonia do agronegócio”, afirma. “Essa hegemonia atravessou os governos petistas sem contraposições mais expressivas”.

Na opinião de Gustavo Prieto, essa é a maior ofensiva de grilagem pós-ditadura. “Eu acho que sim e que está associada a um outro processo: uma tentativa de liquidação de projeto de reforma agrária, ou seja, de reinserção de terras de assentados no mercado formal de terras”. O professor destaca o fato de não se estabelecer a concessão de direito real de uso, mas sim um título definitivo: “É não só grilar a terra do estoque de terras públicas brasileiras, mas junto disso reverter a nossa tímida reforma agrária, sobretudo em áreas onde o valor médio de hectares é alto, como no sudeste, e onde há forte especulação imobiliária. Não é só um processo de impacto pro campo brasileiro. É também para a área urbana”, define.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/617770-titula-brasil-faz-parte-da-maior-ofensiva-de-grilagem-pos-ditadura

 

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