Dentre os casos de violência policial registrado contra a população de rua, 50,8% são contra mulheres e 49,2% contra homens.
A reportagem é de Karla Maria, publicada por O Lutador, 25-07-2020.
Às 10h da manhã a área externa da Paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca, já está recebendo água e sabão. O dia ali começa cedo, às 7h, com a distribuição do café da manhã, roupas, atendimento social, jurídico e espiritual, com a benção do padre Julio Lancellotti, atuando a 35 anos naquela paróquia, ao lado do povo mais pobre.
Aguardava a entrevista com a advogada do Vicariato do Povo da Rua para falar sobre violência policial, quando conheci João*. Alguém que está cansado desse papo de denuncia e nenhuma mudança. “O que vai resolver eu te dizer alguma coisa? Pra eles me baterem de novo?”, respondeu, com um corpo cansado de dez anos de rua e violências distintas. Perguntei se tinha alguma esperança de a situação poder melhorar, e a resposta soou alta. “Melhorar como, com esse governo aí só vai piorar”.
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Foto: O Lutador/Cláudia Pereira
O nome João* é fictício, mas a história de violência que ele, um homem preto, vive nas ruas de São Paulo se repete diariamente. “A violência contra a população de rua aumentou demais. Os casos são quase diários, por exemplo, de uma pessoa que sofreu violência do rapa [Polícia Militar], que retirou coisas e pertences, inclusive documentos e picotou na frente da pessoa. Retiram até muletas até. Do final de 2018 para cá aumentou demais. Os casos são semanais, diários, toda vez que eu venho para cá fazer atendimento tem um caso para relatar”, conta a advogada do Vicariato, Juliana Costa Hashimoto Bertin.
Giulia Grillo defensora dos direitos humanos que atua na região da Cracolândia, no centro da capital, interferiu em uma abordagem violenta e tornou-se vítima. “Testemunhei uma abordagem agressiva, um GCM [Guarda Civil Metropolitano] chutou o cara e eu falei que eles não podiam agir daquela maneira, aí me levaram para a delegacia. Lá, a delegada me tratou bem, mas um dos GCM tentaram me ligar ao tráfico, um absurdo”.
Giulia atua a três anos na região e admite que há “GCMs que são mais humanos, mas há os que são treinados para bater, que tratam e chamam os usuários [de drogas] de lixo”, diz. São Paulo conta com 16 mil pessoas morando em suas ruas, e é aqui que se concentra o maior número de registros de violência contra esta população. Segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde, entre 2015 a 2017, foram registrados 788 casos. Os jovens que vivem nas ruas, com idades de 15 a 24 anos são o principal alvo da violência: 38%. A maioria das vítimas se declara negra, com 54% das notificações.
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Foto: O Lutador/Cláudia Pereira
A agressão física é a mais comum e acontece em 92% dos casos, sendo que, em 19% deles, os ataques se repetiam. Apesar de os homens serem maioria nas ruas, as mulheres são as que mais sofrem. Elas são 50,8% frente a 49,2% deles. As mulheres mais jovens e de pele negra, com idades entre 15 e 24 anos de idade somam 38% dos casos.
Para o ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, Elizeu Soares Lopes, os casos de violência contra a população em situação de rua, devem ser analisados individualmente. “A atividade policial tem de estar circunscrita à lei, qualquer atividade fora da lei as pessoas podem denunciar 0800-177070. Esperamos que a lei sirva para todos”.
Para Lopes, as iniciativas do governo Dória, como a aplicação de câmeras nas fardas dos policiais militares e a atualização na formação dos agentes públicos protegem a população e o policial. “Este é o chamado controle remoto da atividade policial. Não só a câmera no colete, mas também na viatura de alta resolução. E também sensor de controle da viatura, para saber onde ela está indo. Possibilita também o controle de peso. São instrumentos importantes para fiscalizar”.
Segundo relatório de prestação de conta da Ouvidoria de 2019, durante aquele ano, foram registradas 848 denúncias classificadas como Abuso de Autoridade, sendo 714 casos (84%) envolvendo policiais militares, 113 casos (13,5%) relativos a policiais civis e 20 (2,5%) envolvendo membros das duas forças. A Polícia Técnico-Científica recebeu 1 denúncia por Abuso de Autoridade naquele período. Questionado sobre estes dados e diferentemente de sua colega Juliana, Lopes não acredita que a atuação violenta da polícia seja uma política de atuação.
“No Brasil temos uma cultura de violência. Não é um sintoma particular de uma instituição. […] porque os protocolos não ensinam que as pessoas têm de ser abusivas”.
As denúncias por Abuso de Autoridade em 2019 foram registradas, principalmente, na Capital, Grande São Paulo e Região de Ribeirão Preto e foram apresentadas, em sua grande maioria, contra a Polícia Militar.
Para Dimitri Nascimento Sales, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condep) a violência policial contra a população em situação de rua, como a retirada de barracas não é algo isolado. “Há uma deliberação, ainda que não seja explícita para que estes atos ocorram e permaneçam impunes. Você tem discursos que autorizam a violência policial e você tem situações em que os processos não sejam levados a julgamento, o enfraquecimento da Corregedoria, entre outros”, destaca Sales.
O Condepe com outras entidades da sociedade civil solicitaram do governo estadual informações detalhadas sobre as iniciativas de controle da atividade policial anunciadas pelo governo Dória, e até o fechamento desta reportagem não obtiveram resposta.
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Foto: O Lutador/Luciney Martins
“Estamos acompanhando agentes da segurança pública agindo fora da legalidade praticando crimes como tortura, ameaça, lesão corporal. Tivemos que denunciar recentemente um policial famoso na Cracolândia pelo número de agressões e de extorsão. Os policiais tentam extorquir e quando não conseguem plantam a droga e fazem o flagrante de tráfico de drogas. Essa pessoa vai ser levada para a penitenciária e vai ficar seis anos[…] Temos uma estrutura da segurança pública permeada por racismo, por transfobia, homofobia…”, avalia o presidente do Condepe.
Pedidos da sociedade civil ao governo do Estado para um maior controle da ação policial:
– Adoção de medidas urgentes para a instalação do Conselho Consultivo da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo;
– Adoção de medidas urgentes para instalação de plantão para recebimento e acompanhamento de denúncias de violação de direitos humanos pela Ouvidoria da Polícia nos finais de semana;
– Criação de Câmara Técnica para acompanhamento da apuração dos casos de violência e letalidade policial no âmbito da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo;
– Reforço do diálogo com o Ministério Público do Estado de São Paulo para a implementação, no âmbito das Promotorias de Justiça Criminais da Comarca da Capital, do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública (GAESP), a fim de promover efetivo controle externo das atividades policiais.
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