Acesso à água no Semiárido: uma questão de Direito Humano, uma prioridade para 2022

IHU – O acesso à água de consumo humano no Semiárido impulsiona outras mudanças nas vidas das famílias, a exemplo da conquista da segurança alimentar e nutricional. Na região, um milhão de famílias ainda não têm acesso ao recurso e vivem à margem deste Direito Humano.

Na Serra do Urubu, famílias transportam água no lombo do jegue – Foto: Acervo Cactus 

A reportagem é de Adriana Amâncio, publicado por Articulação do Semiárido – ASA, 05-01-2022.

O ano de 2022 começou de forma bem distinta para a adolescente Estefany Lima, de 13 anos, que mora na comunidade Caruá, município de Vertentes, no Semiárido de Pernambuco, e para Suzana Pereira, de 37 anos, que mora na comunidade Serra do Urubu, município de Mata Grande, região semiárida de Alagoas. A adolescente, que “não conhece o que é seca”, como ela mesma diz, pois nasceu com a cisterna de 16 mil litros perto de casa, e está de férias da escola, vive, agora, o momento de plantio de hortaliças e a produção de mudas. Para isso, ela e a família contam com a água de produção, disponível na cisterna de 52 mil litros, outra tecnologia que a família possui.

Já para Suzana, que não possui sequer a cisterna de 16 mil litros, o ano começa sem descanso. Todos os dias, ela acorda às 4h, e, ao lado das filhas, percorre cerca de 3km com a ajuda de um jegue, até a fonte mais próxima, no meio da Serra, para pegar água. Até às 6h10, quando ela sai para o centro da cidade onde trabalha como babá de duas crianças, são duas viagens. Ao chegar, às 13h, Suzana retoma as viagens em busca de água, desta vez, sem a ajuda das filhas, encerrando tudo às 19h. Segundo a agricultora, o cansaço é tanto que, às vezes, ela apela para cair chuva do céu. “Tem vezes que eu tô tão cansada, que fico olhando para ver se cai chuva. Quando a chuva vem, eu me levanto e em cada goteirinha da minha casa, eu boto um balde. Eu faço uma coleção de baldinho. Água aqui é ouro ”, afirma.

Estefany, que vai iniciar o 1º ano do Ensino Médio, teve uma infância marcada pela transição agroecológica da área onde vive que, antes, era seca, e após à chegada da cisterna, foi tomada pelo verde dos legumes, que fizeram com que a família passasse a “comer alimento saudável, não só na época da chuva, mas o ano todo”, destaca. Hoje, ela saboreia o seu alimento preferido: o alface, produzido na horta, e comercializa produtos medicinais, cultivados também nos arredores de casa. Tudo o que ela conhece da seca foi repassado pelo pai e pela mãe, que quando tinham a sua idade, saiam às 2h da madrugada e enfrentavam longas filas em busca de água. Por essa razão, o pai de Estefany, por exemplo, entrou na escola apenas aos 17 anos.

Criada pela mãe e pela avó, Suzana, desde os dez anos de idade, enfrenta longas caminhadas em busca de água. Quando a mãe saía para trabalhar, ao lado das duas irmãs mais novas, ela buscava água com baldes na cabeça. Uma vez que a fonte mais próxima era de “minação” ou seja, secava no verão, a solução era buscar água na fonte mãe, que jorrava água o ano todo, porém ficava bem mais distante. “Era uma grota, a gente subia com os baldinhos na cabeça. Era uma ladeira tão alta, que se a gente olhasse para trás, a gente caia, então, a gente subia direto. Quando a gente queria tomar um fôlego, parava, olhando para frente mesmo, pra seguir”, relembra.

Mesmo com todo o sufoco, Suzana concluiu o Ensino Médio. “A gente dava as viagens e na última já ia para tomar banho, para ir para a escola”, recorda. Ela casou e permaneceu na comunidade onde nasceu, e, hoje, quando o marido sai para trabalhar fora, realiza as viagens da manhã ao lado das filhas. Ao longo do dia, Suzana realiza cinco viagens em busca de água. Tanto esforço tem explicação: garantir a produção de alguns alimentos com água trazida da fonte. “Nós temos limão, laranja, laranja – cravo, abacate, tudo o que nós plantamos e já tá dando”, afirma.

 

Direitos Humanos

Na definição da coordenadora da organização não governamental Gabinete de Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop), Edna Jatobá, Direitos Humanos, de forma simples, são as “conquistas históricas da população com relação a tudo que é preciso para se viver em sociedade”. Esse conceito inclui necessidades básicas para se viver com dignidade, a exemplo do acesso à água, à educação e à moradia.

Ainda segundo Edna, o Direito Humano à água não está entre os direitos sociais previstos na Constituição. Entretanto, completa ela,“existe um amplo marco legal que coloca a água como um Direito Humano, afirmando que à União cabe o dever de cooperar com os agricultores e agricultoras para que eles tenham acesso à água”, esclarece. Edna finaliza avaliando que o termo “cooperar é muito fraco diante dos desafios que se tem para a convivência com o Semiárido. Ela reforça: “como é possível ter água se não tiver terra? E sem água e terra, como é possível garantir a dignidade da família, a segurança alimentar e hídrica”, questiona.

Acesso à água e à vida digna andam de mãos dadas. Ao conhecer ambas as histórias, Edna avalia que Suzana, considerando o esforço que esta faz para buscar água, “não tem direito a descansar, descansar para ela significa não ter água. [Ela] não tem direito a existir para além de sobreviver”. Uma vida digna, na avaliação de Edna, envolve o direito ao lazer, à socialização, e viver isso após um dia de viagem quando o seu corpo tomba após realizar tanto esforço físico, é uma crueldade”, conclui.

Certamente, a vida de Suzana com água perto de casa, podendo dedicar mais tempo à relação com a família e às outras atividades seria bem diferente. Da mesma forma, a relação das suas filhas com os estudos seria bem diferente caso não houvesse a necessidade de fazer longas viagens em busca de água ao lado da mãe.

Por outro lado, Edna avalia que Estefany, que já nasceu com água perto de casa, vive o direito humano materializado no acesso às condições para estar bem e com dignidade no lugar que ela escolheu viver: o Semiárido. “Veja só, não chove [com regularidade] em Alagoas, mas também não chove em Vertentes. No entanto, Estefany tem acesso à água através da cisterna, à segurança alimentar através da sua plantação, das suas plantas medicinais, ou seja, não falta nada nesse lugar para ela, que é o que a gente espera que aconteça com as outras tantas famílias do Semiárido brasileiro”, explica.

 

Conquistas e desafios

No Semiárido brasileiro, 1 milhão e 200 mil famílias conquistaram o Direito Humano à água, por meio da mobilização deflagrada pelas mais de 3 mil organizações que compõem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), que traçou como meta a construção de 1 milhão de cisternas na região e dando origem ao Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). Quando o P1MC surgiu, resgata o coordenador do programa Rafael Neves, “foi para resolver, não como um todo, mas os principais problemas do Semiárido que eram: a morte de milhares de crianças por inanição e o fato de que uma mulher perdia 36 dias no ano para conseguir água, ficando impossibilitada de realizar outras atividades.”

Ainda segundo ele, entre as décadas de 1970 e 1980, houve uma grande estiagem que provocou milhares de mortes na região. Nessa direção, a ASA criou o programa para levar acesso à água às famílias, que, de forma autônoma, poderiam suprir as suas necessidades básicas na região. A cisterna, que foi abraçada pelo Governo Federal e passou a ser disseminada como política pública, por meio do Programa de Cisternas, surge como “uma tecnologia social, que possui baixo custo, fácil aplicabilidade e envolve o engajamento da comunidade em sua construção”, explica Rafael.

O programa impactou positivamente nas vidas das famílias do Semiárido, com ênfase especial às mulheres, principais afetadas pela falta de acesso à água de consumo humano. Em 2017, a iniciativa conquistou o troféu de prata do Future Policy Award 2017, ou Prêmio Política para o Futuro, concedido pela World Future Concil e considerado o Oscar das Políticas públicas.

Entretanto, ainda hoje, outras 1 milhão de famílias ainda convivem na região sem acesso à água de consumo humano. O atendimento a essas famílias segue lento devido à redução de recursos no Programa Cisternas nos últimos quatro anos. “Nós conseguimos ainda aqui na comunidade quatro cisternas, só que a minha não veio dessa vez”, lamenta Suzana. De acordo com a técnica da Cactos, Joelma Soares, o município de Mata Grande possui uma demanda de mais de 1 mil cisternas de água para consumo humano, porém, devido a redução de recursos, a Cactus só construiu 100 unidades.

Segundo o coordenador do P1MC, Rafael Neves, hoje, “o programa enfrenta um total descaso por parte do poder público. Foram pequenas ações, ações que o governo tem privilegiado no nível da politicagem, que é isso que ele tem feito, opta por estados, municípios e organizações do seu gosto. E não executando o dinheiro público tal como tem que ser para os lugares que mais necessitam e com as organizações mais capazes de executar o recurso”, critica.

 

Ausência do Estado, negação dos Direitos Humanos

Na avaliação de Edna Jatobá, quando o Estado deixa de empreender recursos em uma política que garante um bem essencial à sobrevivência humana, está ferindo os Direitos Humanos. “Chega a ser uma ação criminosa, a gente tá falando de famílias que não tem acesso a condições de sobreviver com dignidade, são abandonadas pelo poder público, sem o bem mais vital e valioso que é a água”, conclui.

Rafael reforça que “garantir o acesso à água é garantir o mínimo de dignidade para uma família. É inaceitável uma nação com o tamanho do Brasil, com o PIB do Brasil, ter pessoas que não têm acesso à água para o consumo humano”, sentencia. Para retomar as construções de cisternas no âmbito do P1MC, a ASA lançou em setembro de 2021, a Campanha Tenho Sede, visando arrecadar recursos de doadores/as individuais e de Companhias de Abastecimento e Saneamento de alguns estados da região Nordeste.

Em seu lançamento, a campanha ganhou o apoio do cantor Gilberto Gil, que regravou a canção Tenho Sede, composta por Dominguinhos e Anastácia, e no lançamento do clipe conclamou o apoio da população ao P1MC, por meio da doação de recursos para a construção de cisternas para as famílias do Semiárido no âmbito da campanha. Após quatro meses de lançamento, a campanha já conquistou a adesão de doadores/es em todas as regiões brasileiras e também fora do país. Para conhecer mais sobre a iniciativa ou para realizar uma doação, acesse: tenhosede.org.br

 

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/615734-acesso-a-agua-no-semiarido-uma-questao-de-direito-humano-uma-prioridade-para-2022