Elas alastraram-se muito além dos ubers e ifoods. Eliminam direitos e capturam renda em dezenas de profissões, todos os níveis de instrução e faixas etárias. Vamos examiná-las a fundo. Texto sobre seu avanço na advocacia abrirá a série
OUTRASPALAVRAS
Ana Claudia M. Cardoso e Lucia Garcia
Publicado 02/12/2021 às 19:01
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TÍTULO ORIGINAL:
“O espraiamento das plataformas de trabalho na economia brasileira”
Por Ana Claudia Moreira Cardoso e Lucia Garcia | Imagem: Jan Van Eyck, detalhe do Díptico da Crucificação e do Último Juízo Final (1426)
Nas próximas semanas, este espaço estará dedicado a apresentação de artigos sobre o espraiamento das empresas-plataforma – sobretudo as de trabalho –, no Brasil. Diferentes atividades econômicas serão objeto de reflexão, considerando que, embora as plataformas atuem com base em fundamentos comuns, apresentam distintos modelos de negócio, formas de organização laboral, relação com clientes e com os.as trabalhadores.as. Essas análises são parte de duas edições da Revista da Faculdade do Dieese de Ciências do Trabalho, uma delas já publicada (https://rct.dieese.org.br/index.php/rct/index) e outra a ser divulgada no início de 2022.
Se em 2019 ainda havia a ideia de que as plataformas de trabalho seriam “apenas” uma forma high-tech de reproduzir o trabalho precário (como o serviço doméstico, a construção civil, e as atividades de beleza, cuidado e entrega), o contexto atual demonstra o equívoco dessa concepção.
Em diversos países da Europa e nos Estados Unidos, a presença das empresas-plataforma ficou em evidência já a partir de 2010, na esteira da Grande Crise de 2008-2009. Isto ocorreu quando o aculturamento digital de consumidores.as e a elevação do desemprego confluíram para a configuração das multidões necessárias aos negócios.
No Brasil, o cyber recrutamento da força de trabalho se desenvolveu, sobretudo, a partir de 2016, no bojo da crise política e econômica, com o encolhimento do PIB per capita, o aumento do desemprego e das formas precárias de contratação (aprofundadas pela Reforma Trabalhista de 2017), a queda nos rendimentos e a falta de perspectiva de entrada ou de retorno ao mercado de trabalho formal.
Assim, de acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua (PNADC), no período entre 2012 e 2019, os.as trabalhadores.as “Conta Própria Sem Estabelecimento e Sem Documento”, conforme denominados por Garcia1, tiveram um aumento de 54,0%, chegando a aproximadamente 4.2 milhões de trabalhadores.as potencialmente ocupados em plataformas como atividade principal.
Entre 2012 e 2019, o contingente desses.as ocupados.as cresceu em praticamente todos os segmentos, com expressiva disseminação setorial. Em 2019, já podiam ser contabilizados 34% dos.as potencialmente ocupados.as em plataformas de trabalho nos “Serviços de transporte, armazém e correio” com; 22,2% no segmento chamado de “Outros serviços”; 17% no setor de “Serviços especializados para construção”, 13% nos “Serviços de Informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas”; 9,1% nos “Serviços de Alojamento e alimentação” e, 4,4% no setor de “Educação, saúde humana e serviços sociais”2.
Como resultado, observam-se novas formas de desigualdade laboral e um perfil cada vez mais heterogêneo: há pessoas que sempre estiveram no mercado informal e aquelas que têm no trabalho em plataforma sua primeira experiência de informalidade; há pessoas com baixa escolaridade (46% têm até o ensino fundamental completo) e outras com curso universitário (quase 13% têm o ensino superior completo); pessoas brancas (43%) e negras (57%); homens (67%) e mulheres (33%); mais jovens e mais velhos/as (enquanto 22% têm entre 18 e 29 anos, 25,5% têm entre 50 e 65 anos) 3.
As análises presentes nos textos que serão divulgados nas próximas semanas mostram que: por um lado, a quase totalidade das plataformas atua com base nos mesmos fundamentos: infraestrutura e mediação digital – possibilitando ampla capacidade de dispersão da produção e manutenção do controle do processo e dos.as trabalhadores.as; dataficação – que é a forma como as plataformas se apropriam dos dados de usuários.os e trabalhadores.as para rentabilizar e extrair valor a partir deles; gamificação por meio de algoritmos – como forma de gestão realizada a partir de elementos de jogo – pontuação, competição, prêmios e punições – pressionando os.as trabalhadores.as a ultrapassar seus limites; e desconsideração das legislações, entre elas a trabalhista.
Por outro, há grande heterogeneidade entre os ofícios que estas estruturas se propõem a explorar e, assim como ocorre nas empresas “tradicionais”, esta distinção é expressiva e se manifesta nos diferentes perfis, remunerações, tempo de permanência na ocupação e jornada de trabalho. Neste caso, enquanto o número médio de horas semanais efetivamente trabalhadas pelos.as ocupados.as potencialmente em plataformas de trabalho nos “Serviços de transporte, armazém e correio” exerciam, em média, 42 horas semanais, no outro extremo, os.as da “Educação, saúde humana e serviços sociais”, trabalhavam 23 horas semanais em 2019.
Os textos que publicaremos aqui englobam três grupos de plataformas de trabalho a) aquelas conhecidas como de “trabalho por demanda” ou gig work, onde o trabalho é realizado em tempo real e o produto do trabalho é entregue localmente; b) as de “trabalho por demanda”, onde o resultado do trabalho é entregue online e c) as plataformas terceirizadas de microtrabalho. Serão abordados os seguintes setores: turismo, beleza, cuidado, jurídico, saúde, educação, personal trainer, comércio, goleiro, tecnologia da informação (TI), jornalismo, bancário, agrícola, microtrabalho e fazendas de cliques. Muitos destes setores foram estudados para além das plataformas de trabalho, considerando que estas são parte de um processo muito mais amplo de digitalização da economia.
As análises comprovam os impactos nefastos para a qualidade e a quantidade do trabalho de uma forma geral e para os setores em particular. No setor de turismo, por exemplo, a constatação foi a de que está havendo aumento do desemprego e da precarização laboral não apenas em função da entrada de plataformas de trabalho especificas do setor (Brigad), mas também da entrada de plataformas de compartilhamento (Airbnb), de intermediação(Booking) e plataformas de trabalho dos setores de entrega e de transporte individual.
Outras inquietações são explicitadas nos artigos, como a total irresponsabilidade por parte das plataformas de trabalho. No caso do setor de saúde se questiona qual instituição irá fiscalizar o trabalho realizado pelos.as profissionais de saúde nas plataformas de trabalho e fazer a formação continuada desses.as trabalhadores.as. As mesmas questões podem ser estendidas a todas as empresas-plataforma pensando do ponto de vista social, trabalhista, ambiental e de saúde laboral. Quem se responsabiliza? Os indivíduos e suas famílias? O Estado, ou seja, os contribuintes?
Vale ressaltar que no contexto da pandemia, há um aprofundamento da sociedade digital e intensificação da expansão das plataformas de trabalho, assim como as de e-comércio, lazer e compartilhamento, que também impactam de forma profunda e negativa o mercado de trabalho.
Assim, considerando-se esse espraiamento não parece fazer sentido a criação de legislações específicas para cada uma das plataformas de trabalho: primeiro, porque a própria Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seu Art. 7º (dos direitos dos trabalhadores), explicita que a proteção trabalhista não é exclusiva da forma jurídica da relação de emprego; depois, o Art.6º, parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) já prevê que os meios telemáticos e informatizados de comando “se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
Além disso, levando-se em conta a atual conjuntura brasileira, com uma correlação de forças desfavorável à classe trabalhadora, não se pode correr o risco de que uma legislação específica aprovada imponha menos direitos do que os já previstos, e reconheça legalmente a existência de “trabalhadores.as de segunda classe” 4.
1 Garcia, L. O mercado de trabalho brasileiro em tempos de plataformização: contexto e dimensionamento do trabalho cyber-coordenado por plataformas digitais. Porto Alegre: Dissertação no Mestrado de Economia da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2021.
2 Neste grupo não estão incluídos.as trabalhadores.as que realizam seu labor com telemedicina ou Educação à Distância – EAD se este não for efetivado a partir de empresas-plataforma de trabalho.
3 Garcia, L. e Calvete, C. Perfil socioeconômico dos trabalhadores potencialmente ocupados em plataformas digitais e sua relação com o tempo de trabalho. In Calvete, C, Cardoso, A.C.M., Dal Rosso, Sadi & Krein, J. D. (orgs). Por que a redução da jornada é uma condição para enfrentar os problemas do trabalho na atualidade. 2021 (no prelo).
4 Cardoso, A. C. M; Artur, K.; Oliveira, M. C. S. O trabalho nas plataformas digitais: narrativas contrapostas de autonomia, subordinação, liberdade e dependência. Revista Valore. n.5, 2020. https://revistavalore.emnuvens.com.br/valore/article/view/657
fonte: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/viagem-ao-inferno-do-trabalho-em-plataformas/
A lei da precarização ameaça os advogados
Eram liberais e autônomos. Agora, parte crescente da categoria é forçada a múltiplas formas de precarização – inclusive vender serviços avulsos em leilões. Como a lógica das plataformas insinua-se em todos os poros do DireitoOUTRASPALAVRASTRABALHO E PRECARIADOpor Magda Cibele M. S. Silva
Publicado 02/12/2021 às 19:09
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Por Magda Cibele Moraes Santos Silva | Imagem: Chloe Cushman
TÍTULO ORIGINAL:
“As plataformas digitais no setor jurídico”
O trabalho intelectual e autônomo do advogado vem sofrendo os mesmos efeitos do processo de estranhamento e exploração da classe trabalhadora em geral, no novo panorama das relações de trabalho no setor, especialmente com o surgimento das plataformas digitais.
Indo muito além da execução de funções repetitivas, inerente à atuação dos escritórios de advocacia de massa, as referidas plataformas digitais voltam-se ao atendimento das tarefas desenvolvidas nas mais variadas fases da atividade, incluindo tanto funções administrativas quanto atividades propriamente jurídicas. Seja no âmbito extrajudicial – no que se refere a consultorias, monitoramento e extração de dados públicos, gestão de processos/documentos e resolução extrajudicial de conflitos -, como também no judicial – como confecção de peças jurídicas, proposição de soluções a causas mais complexas, realização de audiências de conciliação e instrução, sustentações orais, diligências em cartório, acompanhamento em perícias, dentre outras atividades, conforme como ser observado na tabela a seguir:
TABELA 1 – Plataformas digitais do setor jurídico
FONTE: Elaboração própria a partir da análise das plataformas citadas
De um modo geral as plataformas digitais do setor jurídico operam mediante algum tipo de contraprestação. Uma delas se refere a adesão aos planos para viabilizar o acesso aos softwares – que operacionalizarão os serviços de gestão de dados ou tarefas, secretariado, alta performance, compliance, resolução de conflitos on line , consultoria jurídica, entre outros (itens entre 1 e 9 da tabela). Outra forma é a partir da adesão à planos periódicos por parte do profissional, para que este possa ofertar os seus serviços na plataforma, integrando uma rede de inumeráveis trabalhadores da advocacia on demand. Isto é, que exercem suas funções de forma parcelar, a partir da interação direta com contratantes on line e integração ao labor just in time das plataformas digitais, correspondendo. (item 10 da tabela).
No primeiro caso (itens entre 1 e 9 da tabela), observa-se a clara externalização de atividades típicas, especialmente das bancas do contencioso de massa, as quais são endereçadas a vasto número de processos repetitivos das empresas. Empresas que, em sua grande maioria, não mais possuem departamento jurídico próprio, oriundo do processo massivo de terceirização dos referidos setores no país, a partir da década de 1990.
Neste caso, a adoção de softwares fornecidos pelas plataformas tem como resultante imediato um impacto na redução do número de postos de trabalho ofertado pelas empresas da advocacia, além da simplificação profunda da atividade laboral, intensificação dos ritmos no trabalho em função de prazos exíguos e metas diárias e consequente redução significativa das faixas salariais da categoria.
As plataformas de trabalho (item 10 da tabela), que viabilizam o acesso mundial à rede de profissionais cadastrados, intensificam o processo de desprofissionalização da atividade. Dentre os impactos mais relevantes, destaca-se a alienação operacionalizada em função da dispersão espacial de etapas ínfimas do processo de trabalho. O fazer profissional é transformado em migalhas, sendo estas dispostas na forma de uma linha de produção virtual. De forma que a atuação do profissional da advocacia, caracterizada historicamente pela resolução integral da causa jurídica, passa a ser realizada por diversos trabalhadores – a multidão de plataformizados – constituída por estudantes de direito, estagiários, bacharéis e advogados titulados e, inclusive, pós-graduados.
Cada tarefa – como confecção de peças, protocolo dos processos, realização de audiências de conciliação ou instrução, sustentação oral, diligências no cartório, cópias de processos, carga de processos físicos – pode ser solicitada pelos “usuários clientes” das plataformas. Estes, geralmente, são gestores das empresas de advocacia, dos departamentos jurídicos das corporações, advogados da causa ou, ainda, interessados na resolução do litígio que, ao realizarem a solicitação na plataforma de trabalho, possibilitam que todos os milhares de cadastrados ofertem o seu preço pela realização parcelar do serviço demandado.
Dispersos pelo país, mas “lado à lado”, esses trabalhadores operam e disputam, em forma de leilão, as tarefas e a ultrajante remuneração da atividade, cuja escolha do preço caberá exclusivamente ao “usuário cliente”. Nenhuma das plataformas estabelece limites mínimos de taxação das tarefas ofertadas – mesmo que a oferta de serviços advocatícios por valores aviltantes seja prática proibida pelo Estatuto da OAB e penalizada pelo Código de Ética e Disciplina com pena máxima de expulsão dos quadros da OAB o advogado que, de forma reincidente, não se abster de tais contratações.
Entretanto, são os trabalhadores que as sustentam1, embora as plataformas também recebam subvenções das bancas de advocacia – caso do Migalhas – e investimentos do capital mundializado – caso do JusBrasil.
No que se refere ao controle sobre a prestação dos serviços, este é operacionalizado pelos próprios clientes com base em critérios obscuros ou simplesmente inexistentes, e o sistema de punições pode ser aplicado pelas plataformas de trabalho com fundamento na “justa razão” das queixas recebidas pelos clientes, sem possibilidade de contestação por parte dos trabalhadores punidos.
Mesmo exercendo o controle e definindo as regras, as plataformas de trabalho têm conseguido se livrar das responsabilidades trabalhistas e previdenciárias, o que tem encontrado lastro na natureza institucionalmente declarada de suas atividades na Receita Federal: “portais, provedores de conteúdo e outros serviços de informação na internet”. A desresponsabilização das referidas plataformas, ampara-se, ainda, no suporte ideológico fundado numa suposta ausência de regulamentação para os trabalhadores de plataformas digitais no Brasil.
Entretanto, ambas as argumentações não se sustentam. No primeiro caso, por não refletir a realidade, visto tratar-se de plataformas de trabalho e não de empresas de tecnologia. Quanto à segunda argumentação, a realidade explicita a subordinação algorítmica onde os comandos e formas de controle da jornada ocorrem através dos aplicativos. Assim, trata-se, de fato, de vínculo empregatício estabelecido entre as plataformas de trabalho e os trabalhadores – sejam eles estudantes, bacharéis ou advogados -, regido, portanto, pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
1 A forma de remuneração das plataformas de trabalho varia, sendo identificadas ao menos duas modalidades. A mais comum é a adesão aos planos para integração do trabalhador à sua “rede de profissionais” e, a segunda, além do pagamento do plano, envolve a taxação no percentual de 9 a 15% sobre o valor da transação quando a modalidade de pagamento for on line –, circunstância em que a plataforma se torna a destinatária do pagamento.
fonte: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/a-lei-da-precarizacao-ameaca-os-advogados/