“Para aqueles na hierarquia que se deixaram sugestionar pela ideia de seguir à risca as instruções higiênicas, o papa argentino quis lembrar que a fé tem alguns espaços que não podem ser suprimidos e que não valem menos que um supermercado ou uma farmácia”, escreve Marco Politi, vaticanista, jornalista, escritor, professor universitário, e autor do livro intitulado “A solidão de Francisco: Um Papa profético, uma Igreja na tempestade“, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 16-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Era cento e cinquenta anos que um pontífice não se encontrava prisioneiro no Vaticano. Desde que as tropas piemontesas entraram em Roma em 20 de setembro de 1870.
A epidemia cancelou tudo. Audiências de massa na Praça São Pedro, encontros de peregrinos e turistas para o Angelus. Museus fechados, arquivos do Vaticano fechados, fechada a van usada como correio móvel. Nada de cantinas para os funcionários da Cúria. Nada de fiéis para a missa matinal de Francisco na capela de Santa Marta. O cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, convocou uma reunião de emergência nos últimos dias para garantir os serviços essenciais para o funcionamento do governo central da Igreja católica.
O papa Francisco quis romper o cerco do vírus indo a Santa Maria Maggiore no domingo para rezar diante do ícone da Nossa Senhora “salvação do povo romano”. Depois, realizando como demonstração uma centena de passos na via del Corso, ele foi à igreja de San Marcello, onde está exposto o crucifixo que protegia a cidade da peste do século XVII. Um gesto simbólico para enfatizar que a Igreja realmente respeita todas as normas sanitárias, mas não “fecha”.
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Foto: Vatican Media
No que diz respeito ao gesto precipitado do cardeal Vigário De Donatis, que proclamou o bloqueio de todas as igrejas, Francisco interveio para que as igrejas paroquiais romanas permanecessem abertas para a oração e para que se soubesse que os sacerdotes estavam ao lado de seu povo (também a basílica de San Pietro, fora dos limites para os turistas, é acessível para quem quer rezar respeitando as distâncias de segurança). Para aqueles na hierarquia que se deixaram sugestionar pela ideia de seguir à risca as instruções higiênicas, o papa argentino quis lembrar que a fé tem alguns espaços que não podem ser suprimidos e que não valem menos que um supermercado ou uma farmácia.
A praga de Covid-19 também é uma ocasião para uma reflexão sobre o estado das coisas no mundo. O Vaticano, encruzilhada de realidades geopolíticas em todos os continentes, é um excelente ponto de observação. Francisco está preocupado com o forte enfraquecimento nos últimos anos do princípio e do ideal do multilateralismo: a ideia segundo a qual os problemas do mundo devem ser enfrentados juntos, em colaboração entre potências grandes e médio-grandes, na perspectiva do que João Paulo II – de a quem Francisco se sente herdeiro legítimo em termos de presença geopolítica do papado – chamava de “globalização com rosto humano“. Desde o início de seu pontificado, indo a Lampedusa, o Papa Bergoglio havia denunciado uma atitude oposta e, portanto, destrutiva: o “globalismo da indiferença“. Uma atitude de egoísmo míope que não diz respeito apenas ao fenômeno histórico da imigração, mas às crescentes desigualdades em todos os lugares, às novas escravidões, aos desastres de uma exploração da natureza que causa catástrofes sociais.
Soberanismo identitário, darwinismo político e social, política externa marcada pelo mais cego egoísmo são hoje – do ponto de vista do atual pontificado – os grandes males da era contemporânea. Um conjunto de vírus que danificam diretamente o desenvolvimento das nações e da humanidade.
A pandemia surgiu, mostrando que a ideologia da fortaleza autossuficiente é ilusória.
Mais do que nunca, são necessários esforços comuns: hoje para combater o vírus, amanhã para se recuperar economicamente. Do alto da cúpula, as antenas do Vaticano capturam muitos aspectos do teatro internacional. A inconsistência política da União Europeia é preocupante. Aqueles que hoje clamam pela ausência da União são os mesmos que há anos se empenham arduamente em bloquear todos os processos rumo a uma maior integração.
Os movimentos políticos soberanistas têm suas responsabilidades. Mas também vários círculos políticos na Europa Oriental que sempre consideraram a União um caixa eletrônico, mas não o primeiro passo para um estado federal europeu. A mesma miopia é encontrada em muitas elites dos estados nórdicos, para os quais importa que a União seja um espaço econômico-financeiro funcionante, mas nada mais.
O darwinismo social do primeiro-ministro Boris Johnson, na Grã-Bretanha, é preocupante. Seu aviso à população: “Acostumem-se a perder seus entes queridos” não tem nada de heroico. É uma triste imitação de Churchill. Significa apenas – como os círculos científicos mais sensíveis notaram imediatamente – deixar a deriva os mais idosos, os mais pobres e os mais fracos. É a “política de descarte“, como Francisco declarou em outras ocasiões, referindo-se a uma mentalidade econômica e tecnocrática que “joga fora” o que não é necessário.
Mas onde a distância entre a visão do Vaticano e uma capital política parece sideral hoje está na relação entre a Igreja de Francisco e o líder que se instalou em Washington. Trump tem sido nos últimos anos o destruidor mais determinado do princípio multilateral, caro à Santa Sé. Ele não assinou a convenção da ONU sobre os direitos dos refugiados, retirou-se do acordo climático, sabotou o acordo com o Irã sobre a energia nuclear, retirou-se da UNESCO e da Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos, denunciou o acordo sobre mísseis nucleares (INF) com a Rússia, não se poupou em incentivar o Brexit e espalhar veneno na União Europeia, chegando a propor ao presidente francês Macron a saída da União. Não são elementos temperamentais, são sinais de uma política irresponsável.
Hoje, o L’Osservatore Romano publica na capa, entre os vários artigos sobre a epidemia, “Também os EUA buscam soluções”. Existe toda a fineza da eloquência do Vaticano por trás da imagem de uma repentina pressa depois de passar semanas negando o perigo.
Existe a irresponsabilidade de Trump, que por muito tempos definiu os alarmes contra o vírus de “engano” dos democratas e das mídias liberal. Quem teve a coragem de declarar que o vírus um dia chega e “outro dia se vai”. Que ainda em 10 de março, tuitava que não era nada comparado à gripe e afirmava inconscientemente: “Nada está parado, a vida e a economia continuam”.
O Império Romano também teve imperadores desequilibrados. Nos arquivos do Vaticano, há provas de que essa doença não permaneceu confinada aos primeiros séculos de nossa era.
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