Uma ação protocolada esta semana no Supremo Tribunal Federal pede que o governo tome medidas para proteger os povos indígenas da pandemia da Covid-19. O novo coronavírus já se espalha por Terras Indígenas (TIs) em todo o Brasil e contaminou ao menos 9.414 indígenas, provocando 380 mortes. A petição tem autoria da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em conjunto com o PSB, PCdoB, PSOL, PT, REDE e PDT.
O principal objetivo é que o governo execute um plano emergencial para proteger os povos indígenas do Brasil, em especial os isolados, que não têm contato com outros indígenas e não-indígenas e são especialmente vulneráveis à pandemia da Covid-19. A peça contém um pedido de medida cautelar, ou seja, um pedido para o Judiciário determinar a ação imediata do poder público.
Um relatório elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA), que embasou a ação, mostra o avanço das invasões sobre terras indígenas durante a pandemia. O estudo faz um alerta para a possibilidade de aumento dessas invasões no segundo semestre, fenômeno que tem sido tendência nos últimos anos. Garimpeiros, grileiros e desmatadores não paralisaram suas atividades durante a pandemia. Pelo contrário: elas foram intensificadas. A situação é crítica, pois os invasores estão em constante circulação entre as cidades e as TIs e podem levar o coronavírus a esses territórios.
Medidas cautelares
A ação solicita que o governo instale barreiras sanitárias nas 31 Terras Indígenas com presença de povos indígenas isolados e de recente contato, impedindo a entrada dos invasores. Algumas das TIs vivem um cenário dramático. É o caso da TI Uru-Eu-Wau-Wau. Dados do Deter (sistema de alertas do Inpe) mostram que o desmatamento nos primeiros meses de 2020 já foi maior que no mesmo período do ano anterior. Em abril deste ano, uma liderança Uru-Eu-Wau-Wau foi assassinada dentro da sua própria terra. O principal suspeito é um invasor. “A disseminação do coronavírus entre os índios isolados da TI Uru-Eu-Wau-Wau representa risco real de extermínio em massa desses grupos. Em razão disso, é urgente que o Estado brasileiro retire os invasores da TI”, aponta o relatório.
A ação também solicita que a União retire os invasores das Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá, que estão entre as mais afetadas da Amazônia brasileira. O relatório do ISA mostra o avanço das ameaças em cada um desses territórios.
A arguição também solicita que todos os indígenas sejam atendidos pelo Sesai, sistema de saúde indígena vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS). Desde o início da pandemia, apenas indígenas que vivem em aldeias estão recebendo atendimento especial. Os que vivem nas cidades penam para conseguir atendimento no sistema geral. Nesses locais, as demandas específicas desses povos são ignoradas, o que contraria direitos constitucionais dos indígenas brasileiros.
Outro pedido da ação é para que o governo execute com urgência um plano de enfrentamento à Covid-19 nas terras indígenas. Esse plano deve ser idealizado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), com auxílio da Fundação Oswaldo Cruz, Abrasco e representantes dos povos indígenas e conselhos distritais de saúde indígena. Além disso, o governo deve criar uma Sala de Situação, ou seja, um espaço físico ou virtual que dê suporte às decisões durante a crise. O grupo deve contar com a participação de representantes indígenas.
Até agora, os órgãos competentes não fizeram o suficiente para conter o avanço da pandemia entre os povos indígenas. Diversos estudos demonstraram que eles são um dos grupos mais vulneráveis neste contexto. Hábitos culturais dos povos indígenas, como o compartilhamento de casas e utensílios, dificultam a contenção do vírus entre o grupo em caso de contaminação. Além disso, a maioria vive em regiões afastadas dos grandes centros urbanos e não tem acesso a hospitais e equipamentos essenciais no tratamento da Covid-19, como respiradores. É urgente que o governo tome medidas para proteger esses povos, antes que o massacre seja ainda maior.
Com informações da Comissão Pastoral da Terra.
Para antropólogo da UFMG, negligência com indígenas na pandemia é política genocida
Mais de cinco mil indígenas da etnia Yanomami podem ser infectados pela covid-19 em aldeias próximas a zonas de garimpo na Amazônia, caso nenhuma medida seja tomada para conter o avanço da doença na região. Isso representa 40% da população que vive nessas áreas. É o que revela estudo realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), que contou com a participação de pesquisadores da UFMG e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Até esta semana, foram registrados 174 casos de covid-19 entre os povos Yanomami e cinco mortes.
A reportagem de Alessandra Ribeiro, publicada no sítio da UFMG, 01-07-2020.
A situação se agrava nas aldeias, uma vez que começam a ser notificados casos de contaminação no âmbito das terras indígenas, rompendo com registros anteriores de casos de infecção pelo novo coronavírus, que tinham ocorrido apenas na Casa da Saúde Indígena em Boa Vista. As regiões próximas a garimpos são as mais afetadas.
Em entrevista ao programa Conexões, da Rádio UFMG Educativa, nesta terça-feira, dia 30, o professor Rogério do Pateo, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, explicou os riscos gerados pelas atividades garimpeiras à saúde dos povos indígenas: “Os garimpos são vetores de vários tipos de doenças, mesmo antes da covid-19, como a malária. A presença dos garimpos em terras indígenas também gera vários outros tipos de violência, como assédio sexual e estupro, aliciamento de jovens e problemas ambientais. Em decorrência disso, surgem complicações sanitárias e nutricionais para a saúde dos indígenas“, enumera o antropólogo.
Com a pandemia da covid-19 no Brasil, a situação sanitária nas aldeias Yanomami, que já era precária, tornou-se ainda mais preocupante, segundo o antropólogo. “A terra Yanomami é extensa e coberta por uma floresta densa, com poucos acessos terrestres, o que dificulta o atendimento às pessoas que vivem nesses territórios”, explica o professor. “Além da vulnerabilidade biológica dos Yanomami em relação às doenças ‘de fora’, a estrutura de funcionamento da sociedade deles implica grande circulação entre as aldeias, para troca de conhecimentos e objetos, o que aumenta a chance de disseminação do vírus. Muitos vivem em casas coletivas, onde há constante comunhão de utensílios e alimentos, dificultando o isolamento. Por fim, ainda devemos ressaltar que a maioria dos indígenas não fala português e não consegue compreender bem os termos científicos e as formas como se dá a propagação da doença”, lamenta Rogério do Pateo.
Para o professor e antropólogo da UFMG, as atitudes do governo federal frente às invasões de terras indígenas têm corroborado os abusos sofridos pelo povo Yanomami. “Esses garimpos são fruto de invasões ilegais, por isso não há nenhum controle do Estado sobre as pessoas que entram no território. Enquanto o governo tenta legalizar a exploração mineral nessas áreas, por baixo dos panos existe um desmonte total da estrutura de controle e fiscalização, levando os invasores de terras indígenas a se sentirem protegidos”, afirma.
Violação de direitos
Um artigo publicado pela jornalista Eliane Brum, na semana passada, no jornal El País Brasil, denuncia a dor de mulheres Yanomami que tiveram suas crianças enterradas em um cemitério local e não conseguem localizá-las. Se isso já é uma tragédia do nosso ponto de vista, enterrar um corpo é uma grande violação cultural para os Yanomami, que fazem a cremação, seguida de uma série de rituais de despedida que envolvem toda a comunidade.
“Essa questão é absolutamente revoltante, é difícil mensurar o tamanho da violência que isso representa para os povos Yanomami, com base em sua compreensão da morte e dos rituais que ela envolve. Para eles, ter um parente enterrado é uma das maiores ofensas que se pode sofrer”, explica o professor Rogério do Pateo. “Esse fato escancara o preconceito que muitos profissionais têm sobre os povos indígenas. Não os enxergam como pessoas detentoras de direitos, cidadãos brasileiros como todos nós”, ressalta o professor da Fafich.
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